O auditório do Instituto Superior da Maia recebeu na terça-feira à tarde o seminário “Norte Urbano”. Capicua, Lazy, Kaines e Lagaet viajaram pelos mitos, desafios e subgéneros da cultura hip hop.

Às 14h30, o auditório do Instituto Superior da Maia (ISMAI) já estava repleto de expectativa. O seminário “Norte Urbano”, organizado por três finalistas de Ciências da Comunicação, começou uma atuação dos “61”, composto por Desatino e Upgrade, que integram também a banda “Bonsai”. O mote lançado para uma discussão aberta sobre o que move (e o que trava) a cultura urbana, mais especificamente o hip hop.

Luís Humberto Marcos, diretor do curso de Ciências da Comunicação do ISMAI, deu as boas vindas aos convidados. O professor garantiu que o hip hop e a cultura urbana em geral podem “baixar as asas ao medo” e ter um papel “forte naquilo que é a intervenção”. Luís Humberto Marcos rejeita rótulos de “malandros” e “violentos” associados aos amantes do movimento e relembrou o poder de intervenção em zonas “onde as pessoas são mais frágeis”.

Lagaet, “bboy”, foi o primeiro artista a subir ao palco, para responder às perguntas das estudantes de Ciências da Comunicação. O dançarino nasceu nas Caraíbas e está cá há dez anos e tem “Portugal no coração”. Na ilha onde vivia, a arte do “bboying” não era compreendida.

O “bboy” ficou em primeiro lugar, em 2011, no Red Bull BC One Europe Cypher, em Barcelona. Desde então, tem vencido várias competições, por todo o mundo. Foi jurado do Euro Battle no Brasil e de outras competições nacionais e internacionais. A mais recente vitória foi no passado fim de semana: ganhou um campeonato europeu, mas lamentou a falta de divulgação.

O membro dos Momentum Crew garantiu que o seu objetivo não é “ser conhecido, mas sim ser reconhecido”. “Porque são muitas horas… As horas que um médico, arquiteto vai demorar a estudar e praticar, para nós, é o mesmo”, vincou.

Ouvida a história de Lagaet, foi a vez de Kaines e Lazy darem o seu testemunho. Kaines, com uma experiência de sucesso em batalhas de improviso, casos da Poesia Violenta ou Batalha do Conhecimento, revelou sentir-se numa nova fase, e definiu-se como “rapper”.

Já Kaines não tem dúvidas: “É o estilo de música que tem mais sumo. De onde se pode extrair mais conteúdo” isto, claro está, “não menosprezando os outros géneros”. Apesar disso, lembra que nem sempre a paixão pelo hip hop foi bem aceite: “Eu fui um bocadinho censurado em casa por gostar deste tipo de música”, admite.

O seu primeiro álbum ficou em 13º lugar na votação dos melhores álbuns de 2015, na Rap Notícias. Lazy já fez parte de vários grupos de rap: “Último Plano”, “Novo Manifesto” e “Os Grito Cru”. O artista apaixonou-se pelo hip hop há cerca de quinze anos, mas prefere as batidas às rimas, apesar de se dedicar a ambas. Em 2013 lançou-se a solo e gravou o seu primeiro álbum “Amanhã Acordo Cedo”.

Ambos os artistas reconheceram a importância das redes sociais no seu sucesso. O sucesso não tem sido só de Lazy e de Kaines, mas do movimento em geral. “Tem evoluído bem. Começamos a ter hip hop em festivais, a passar em rádios”, referiu o segundo.

Lagaet voltou a subir ao palco. Desta vez, para pôr em prática o que sabe fazer melhor: dançar “break-dance”, “a dança quebrada”, brincou o “bboy”. Entre movimentos de “top rock”, “footwork” e “power moves”, o dançarino deixou todo o auditório de boca aberta. Ficou evidente para todos o porquê do sucesso de Lagaet na modalidade.

A cabeça de cartaz, Capicua, esteve, por fim, à conversa sobre “Norte Urbano”. A cantora portuense entrou no mundo da arte urbana pelo “graffiti”, mas foi na música que encontrou “uma ferramenta para observar o mundo, para refletir e para transmitir a minha militância e a minha cidadania”. A artista acrescentou que pela sua formação, familiar e musical, a “música sempre esteve associada à palavra e, mais do que à palavra, ao discurso, à mensagem de intervenção”.

Antes de descobrir o mundo da música, Ana Matos Fernandes, licenciou-se em Sociologia, em Lisboa. “O curso, mais do que conteúdos, deu-me um conjunto de ferramentas e um olhar crítico da sociedade”, admitiu.

Capicua é uma das artistas mais reconhecidas em Portugal e confessou: “Nunca pensei viver do ‘rap’”. Influenciada por José Mário Branco, a portuense define três pilares na arte: a estética, a técnica e a ética. Quanto à última, garantiu: “Tento manter esta ética intacta”.

“É uma coisa que nunca vai estar acabada”

A luta dos artistas de cultura urbana passa por eliminar mitos, preconceitos e alcançar apoio e reconhecimento. Apesar dos avanços, Capicua garantiu que “é uma coisa que nunca vai estar acabada”.

O hip hop é um género musical, muitas vezes, associado a preconceitos. Capicua assegurou que tem sido feito “um trabalho profundo na desconstrução desses mitos e reputação desprestigiante”. A cantora lembrou que nos anos 90, o hip hop era “desprestigiado”, mas que, sem ele, não existiria “o retrato da realidade geral do país”.

“Os media ajudaram a reproduzir esses estereótipos de marginalidade da cultura hip hop, mas acho que as pessoas já não acreditam neles”, confessou.

Os meios de comunicação são assunto sensível para Capicua. “Senti que muitas pessoas diziam bem do meu trabalho por comparação aos outros ‘rappers’, como se o meu fosse bom por ser diferente do deles. Louvarem-me a mim desprestigiando os meus pares é injusto, redutor e dissemina o preconceito em relação ao ‘rap’”, contestou a artista portuense.

“Nunca esperei chegar a pessoas de idades tão diferentes”, revelou Capicua. “Quando comecei, fazia música para o nicho de cultura hip hop, não pensava na questão geracional”, declarou. Hoje em dia, reconhece que o seu trabalho ultrapassou fronteiras etárias.

O caminho do hip hop poderia ser menos atribulado se o movimento tivesse mais apoios. Lagaet defendeu que, em Portugal, as dificuldades dos artistas são fruto da falta de aposta na cultura.

Capicua não pensa assim. Embora saiba que os apoios são importantes, prefere manter a independência e viver fora da “gaiola dourada”. O auge da carreira, segundo a cantora portuense, ainda está longe. Quer fazer muito mais e, ao mesmo tempo, poder dedicar-se apenas ao que mais gosta.

 

Artigo editado por Sara Gerivaz