São 8h34 da manhã. Susana para em frente à casa de Teresa e Joaquim. São clientes habituais, que costumam confiar nos seus serviços para longas viagens. Têm como destino o Porto e uma consulta de rotina.

Como eles, vários elegem Susana. “Tenho muitos clientes que fui fazendo ao longo dos anos e que me costumam ligar a pedir para no ‘dia x’ às ‘x horas’ os levar a algum lado. Viver desses clientes seria a vida ideal de um taxista, mas infelizmente não é assim”, explica.

Quando não tem serviços marcados, junta-se aos colegas na praça de táxis em Espinho, onde circula. Conversam sobre tudo e todos, até que um cliente apareça. “É muito difícil e cansativo fazer praça. Às vezes estamos horas à espera sem que nos apareça ninguém”, afirma Susana.

Não tem, por isso, hora para almoçar ou chegar a casa. “A vida de taxista não é fácil. Seria impensável para mim ter filhos e uma família para cuidar porque para isso é preciso estabilidade e horários, coisa que nesta profissão não existe”, confessa Susana. Na sua opinião, “talvez seja essa a explicação para que a profissão seja dominada maioritariamente por homens”. No entanto, diz que há “questões maiores” que afastam as mulheres do táxi.

“Carregar malas” é um dos problemas que Susana enfrenta diariamente. Deparando-se muitas vezes com malas com o seu peso corporal, tem de “arranjar cabedal suficiente para lidar bem com a situação” ou contar com a ajuda de quem viaja consigo. “O pior é quando as clientes também são mulheres”, brinca, divertida.

No entanto, tal não acontece muitas vezes. São poucas as mulheres que aceitam viajar com Susana: “Ao contrário do que seria de esperar, a minha experiência diz-me que as mulheres não se sentem mais seguras por viajar com outra mulher. Há casos e casos, mas já tive muitas mulheres a recusarem viajar comigo por acharem que não sei conduzir ou que não sou séria por ser taxista”, conta.

Os homens, pelo contrário, parecem apreciar a sua companhia. “Às vezes até de mais!”, exclama a taxista, entre risos. “Já tive um senhor de 93 anos a pôr-me a mão na perna e a repetir incansavelmente que eu tenho uma bela coxa, um senhor alcoolizado que não queria abandonar a viatura sem que eu fosse dançar com ele na festa onde o fui deixar e outros tantos que mandavam os seus piropos. Penso que enquanto mulheres taxistas existe esse preconceito de que somos fáceis e de que se insistirem podemos dar algo mais, e por isso muitos tentam a sua sorte. Sem sucesso, lamento”, descreve, entre risos, Susana.

Essa “falta de respeito e inferioridade face ao homem” leva a outra “dor de cabeça” que quase todos os dias atormenta a taxista. “Há vários clientes que, chegados ao destino, dizem não ter dinheiro para pagar e pedem para pôr na conta. À custa disso tenho dívidas de pessoas que até já morreram”, aponta Susana, que “por pena”, não consegue negar tais pedidos.

Apesar de todos os riscos a que está sujeita, Susana nunca viveu uma situação extrema e por isso sente-se agradecida: “Tenho muitos colegas que já viveram assaltos, tiveram armas apontadas à cabeça… Eu, graças a Deus, nunca vivi isso e portanto nunca me senti insegura naquilo que faço”.

Uma posição que admira amigos e familiares, principalmente o seu pai Manuel, dono do táxi: “Quando a Susana aos 18 anos me disse que queria pegar no táxi eu e a mãe dela não quisemos acreditar. Tudo bem que o táxi tem um botão de pânico de ligação direta às autoridades e um sistema de GPS que localiza a viatura em caso de alerta, mas isso não impede as desgraças. A força de vontade dela acabou por convencer-me e lá a deixei ir”.

Juntos fizeram do táxi um negócio de família: Manuel conduz à noite, Susana faz as manhãs e o pouco que lhe resta da tarde, porque todos os dias às 16h estaciona em frente à escola primária onde dá duas horas de aulas por dia. Quando terminou o curso de professora de 1º ciclo há 20 anos, não conseguiu emprego fixo. Até hoje.

No entanto, não desmoraliza. Até porque o táxi é o seu “segundo amor”: “Nos tempos que correm não nos podemos dar ao luxo de ficar à espera que as coisas nos caiam do céu. Faltava dinheiro e o táxi estava ali parado. Como adoro conversar e esta profissão permite-me isto, acabei por me afeiçoar ao que faço. E gosto. Temos de nos fazer à vida”.

As mulheres têm maior facilidade em assumir papéis marcadamente masculinos do que o contrário”

Ana Pinto é uma das autoras do mais recente estudo sobre influências do género em funções tradicionalmente masculinas e femininas. Para a docente da Escola Superior de Gestão de Idanha-a-Nova, “existe uma tendência cada vez maior para a desconstrução de estereótipos de género e da catalogação de profissões segundo o género por parte da sociedade”.

Contudo, “a divisão sexual do trabalho continua a existir no mundo laboral, o que impede que essa fusão aconteça em pleno”. Homens e mulheres “enfrentam ainda discriminação no emprego ao entrarem num campo incongruente com o seu género”, especialmente as mulheres, que continuam a ser vistas como “menos fortes e capazes em campos tipicamente masculinos”. Por isso mesmo, “as mulheres continuam a evitar áreas como as ciências exatas e a construção em Portugal”.

No entanto, Ana Pinto considera que “as mulheres têm uma maior facilidade em assumir papéis marcadamente masculinos do que o contrário”. Talvez por terem sido “as primeiras a fazê-lo, quando nos tempos das guerras mundiais os maridos partiam e estas se viam obrigadas a combater a falta de serralheiros, construtores e mineiros”.

E foi assim, com facilidade, que Joana assumiu o papel de ajudante na oficina do pai.

 

Dividida entre a multimédia e a mecânica

São 18h30. Joana volta a casa depois de uma semana atribulada. O curso de Ciências da Comunicação, na vertente de Multimédia, tem-lhe dado bastante trabalho. “É bom finalmente poder descansar”, desabafa.

Na oficina, mesmo pegada à sua casa, o pai restaura um clássico MGB. Depressa veste o fato-macaco e prende o cabelo para se juntar a ele. A admiração por carros antigos fez com que Jorge deixasse o típico negócio de reparação, para restaurar relíquias automóveis por puro prazer. Uma paixão que Joana foi herdando ao longo dos tempos, de forma “perfeitamente natural”: “Desde pequena que estou habituada a acompanhar o meu pai na oficina. Foi assim que o bichinho por estes carros foi despertando dentro de mim e que passei a admirar não só o exterior, como o interior. Não foi nada imposto, foi surgindo, naturalmente. Há algo nesses carros que me seduz”.

Começou por chegar “uma chave de fendas aqui, uns parafusos acolá”, até que foi ganhando o jeito à coisa. O pai nunca perdeu tempo a ensiná-la. Joana foi observando, errando, tentando de novo. Até que hoje consegue resolver a maioria dos problemas sozinha. O circuito elétrico é o seu forte. De motores, pouco percebe. No entanto, pretende aprender caso “precise um dia mais tarde”.

O seu futuro é ainda incerto. No último ano da licenciatura, não sabe que área da Multimédia pretende seguir, no entanto diz ser “reconfortante ter a mecânica como escape”. Não tem problemas em dedicar-se às antiguidades, mas o ideal seria mesmo aliar as duas áreas. “Poderia utilizar a Multimédia na Mecânica. Para explicar como funciona um carro, para modelá-lo em 3D, para produzir publicidade, para melhorar o design de algum modelo”, expõe Joana.

“Possibilidades ínfimas”, como confessa, para quem a Multimédia e a Mecânica têm mais em comum do que se possa pensar: “Multimédia é conseguir conjugar imagem som e texto de forma a ter um resultado e na Mecânica é a mesma coisa. Tu só consegues fazer um carro funcionar se interligares bem as coisas. É isso que me desafia: ambas são puzzles que tenho de completar para obter um resultado. Fazer acontecer, ligando peças”, explana.

E que belo puzzle é este MGB. Joana e o pai dão voltas à procura da peça que falta “para fazer acontecer”. Sem sucesso. “Esta é uma das vantagens que temos como mulheres mecânicas face aos homens”, argumenta, divertida: “Não deixamos que a oficina fique neste caos”.

Organização, limpeza, facilidade na relação e negociação com o cliente, atenção ao detalhe são algumas das mais-valias que Joana reconhece numa mulher e que a tornam “útil num meio predominantemente masculino”. Na verdade, não consegue explicar porque existem poucas mulheres na Mecânica. “Talvez porque as mulheres crescem com a ideia de que carrinhos é coisa de meninos ou pelo hábito de levar o carro ao mecânico sempre que este se estraga e que as impede de explorá-lo. E as poucas que se apaixonam por carros costumam preferir o exterior e a sensação de conduzi-lo, a compreender o interior. Mas não percebo porquê. É tão mais interessante! E não tem porque ser sujo e másculo. Muitas vezes nem envolve força, mas sim perceber a origem do problema e resolve-lo. Não há motivo que afaste as mulheres da oficina, nem mesmo as possíveis inferiorizações por parte dos outros”, assegura.

Joana nunca sentiu essa inferiorização. As pessoas que entram na oficina “costumam olhar surpreendidas” por ver uma mulher. Um olhar que, segundo a própria, “é de admiração e não de julgamento”. A jovem garante que tudo depende da atitude: “Nenhuma mulher sabe tudo, nem nenhum homem sabe tudo. Se uma mulher deixa de escolher uma área que gosta só porque tem medo de ser rebaixada nunca vai ser feliz. Tem de enfrentar as dificuldades, mostrar que sabe o que faz e ganhar o respeito. Não devemos deixar que o género nos defina. Nunca”.

Joana e Susana quebram as regras para fazer o que mais as apaixona. Não deixaram que o género as definisse. Deram ao género uma nova definição.

 

Artigo editado por Sara Gerivaz