“Este foi o único projeto que me cativou na prisão”. As palavras são de Carlos, um dos reclusos que esta quinta-feira marcou presença no debate “Arte e Cidadania – Diálogos em contexto prisional”, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). Carlos foi convidado a contar o seu testemunho sobre o ECOAR, projeto de inserção social dos reclusos através da arte.

“As pessoas que trabalham connosco são excelentes e sabem levar-nos a fazer coisas boas”, confessou Carlos ao JPN. O ECOAR oferece aprendizagens artísticas diversas aos reclusos, com o objetivo final de criar condições para uma melhor inserção social. Através do teatro, música, dança e artes circenses, o projeto promove a inclusão de pessoas com experiências de abandono escolar e mais afastadas da cultura, em contexto prisional. Na fase final, a associação PELE, organizadora do projeto, conseguiu certificar 112 reclusos, no âmbito de um programa de validação de competências pessoais e de empregabilidade através das artes.

Carlos, preso há seis anos no Estabelecimento Prisional de Vale do Sousa, optou pelas artes circenses. Nunca antes tinha pensado que o poderia fazer. “Aprendi coisas novas, coisas que nunca imaginei fazer. Por exemplo, acrobacias que agora faço num abrir e fechar de olhos. Às vezes estou às três da manhã a praticar na minha cela”, confessou. A participação no projeto deu-lhe a a motivação que nunca teve desde que foi preso. A melhoria da auto-estima dos reclusos e o aumento da participação em outras atividades em contexto prisional são algumas das conquistas do projeto.

O que faz a PELE?

Pessoas como Carlos “encontraram na arte uma expressão de si e permitiram que os muros se tornassem mais finos e cada vez mais esbatidos”, acredita Ana Luísa Castelo, Presidente da Assembleia Geral da PELE. A PELE é um espaço de contacto social entre populações excluídas através da cultura. Criado em 2007, a associação tem quase uma década de trabalho desenvolvido em contextos de pobreza e exclusão social. Depois de ter colaborado com pessoas em situação de sem abrigo, surdos e beneficiários do Rendimento Social de Inserção, a PELE encontrou nas prisões do Porto homens e mulheres que estão longe de serem aceites pela sociedade.

Em 2009, “o descontentamento sobre a ordem das coisas” levou a PELE a criar a iniciativa junto de mais de 200 jovens, entre os 18 e os 30 anos, inseridos num contexto prisional, explicou a coordenadora da associação. Esta quinta-feira, analisaram-se os resultados do projeto, desenvolvido desde janeiro de 2015, durante mais de 500 horas com oito grupos de trabalho de três prisões do Grande Porto: Estabelecimento Prisional do Porto, nas prisões de Santa Cruz do Bispo e no Estabelecimento Prisional de Vale do Sousa. Para além de mais de uma centena de certificados, a PELE atribuiu 31 certificados de participação.

Mas os números pouco importam a Carlos. Dentro das paredes das prisões, o ECOAR não é apenas um projeto: “O ECOAR foi uma família para mim, porque lá sempre me dei bem, nunca tive nenhum problema com ninguém e sempre me senti respeitado”, afirmou. Os assistentes e tutores responsáveis pela avaliação dos participantes frequentaram as atividades ao lado dos reclusos. O companheirismo e a proximidade foram fundamentais para o sucesso do projeto. “Eles vivem connosco o nosso momento, o nosso dia a dia, o nosso sacrifício, que é estarmos a lutar pela nossa liberdade”, afirmou.

Presente no debate esteve também Tânia Gomes, ex-reclusa e atual tutora do ECOAR. Os projetos da PELE tiveram um grande impacto na sua reinserção na sociedade quando saiu, há três anos, da prisão. “O que fiz foi muito importante para me fazer mudar de vida. Mas se nos trocam o chip lá dentro e depois nos tiram o chão, não vale de nada”, afirmou. A PELE permitiu-lhe “ter chão” e formação certificada para enfrentar a liberdade.

Hélder Carvalho, recluso no Estabelecimento Prisional do Porto, via o teatro e a dança como uma área feminina. A pressão dos colegas não ajudava: confessou que, por várias vezes, pensou em não fazer parte do projeto para não ser alvo dos comentários dos colegas. Hoje, está contente por ter feito parte do ECOAR e acredita que futuramente o ajudará: “Foi uma experiência boa e acredito que lá fora só me vai beneficiar”, confessou.

O ECOAR é também isso: uma opção à rotina das prisões, levando os reclusos a pensar mais alto e oferendo uma oportunidade de reflexão e auto-avaliação.

A última apresentação das oficinas artísticas desenvolvidas no projeto é no dia 19 de março, no Estabelecimento Prisional do Porto. A organização anunciou esta quinta-feira este extra à programação já agendada até ao final do mês.

Um projeto de competências avaliadas e certificadas

“Aqui nem toda a gente passa. É preciso cumprir os requisitos”, advertiu Tiago Neves, da equipa da FPCEUP no ECOAR. A Faculdade de Psicologia teve o papel de validar e certificar as valências adquiridas pelos reclusos. O Centro de Investigação e Intervenção Educativas da faculdade reconheceu as “soft skills” adquiridas pelos participantes.

Para além dos reclusos, também o projeto foi alvo de avaliação. A Universidade Católica do Porto (UCP) realizou relatórios de avaliação externa das atividades desenvolvidas no âmbito do ECOAR.

“Temos que tentar ter estes programas em todos os estabelecimentos prisionais. Isso é que seria igualdade”. O mote foi lançado por Celso Manata, Direitor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, mas, ao longo da manhã, a ideia foi partilhada pelos oradores. A aposta num “modelo mais sustentado, a ser desenvolvido de forma continua” foi a proposta deixada em cima da mesa por Tiago Neves, da FPCEUP.

A equipa espera que a metodologia de trabalho e a ideia não acabem com o fim do projeto Ecoar. Uma segunda edição, quem sabe. As sementes estão lançadas.

 

Artigo editado por Filipa Silva