Do palco do salão de visitas do Estabelecimento Prisional do Porto, em Custóias, saem 50 vozes que ecoam “Alguém me ouviu”, de Boss AC com a fadista Mariza. Fazem-se os ajustes finais minutos antes do espetáculo que, com orgulho e de peito cheio, seria apresentado às famílias, durante as duas horas seguintes.

O projeto, lançado há cerca de um ano, daria agora frutos. Frutos que não serão os últimos: o objetivo do projeto ECOAR é capacitar reclusos com ferramentas necessárias para a sua reinserção social. Por isso, a colheita final fica para o tempo da liberdade.

Já no pátio exterior e acabados os ensaios, o espetáculo está prestes a começar. Os reclusos reunem-se à volta de um palco improvisado, onde os artistas tomavam os seus lugares. Cinco reclusos pegavam em instrumentos musicais, como tambores, e preparam-se para começar a tocar. Outros seis, vestidos a rigor – preto da cabeça aos pés, todos a combinar – encontram-se longe do palco.

As famílias chegaram e a reação foi visível: cabeças a rodar, todos procuram por quem lhes pertencia. Todos se chegavam o mais à frente possível.

Era hora de iniciar o espetáculo. Já passava das 17 horas quando os tambores começaram a rufar e os reclusos, que se encontravam, inicialmente, longe do palco, avançaram em direção à plateia com vasos pretos a esconder a cara. Assim que chegaram ao palco, fizeram uma série de acrobacias, com bolas, andas e canas de bambu à mistura. Os reclusos que integraram o projeto PELE nas artes circenses, mostram o trabalho de um ano.

Com os tambores a abrir caminho, a plateia seguiu o grupo de reclusos até ao salão de visitas onde o espetáculo prosseguiria. As acrobacias continuaram e foram seguidas por espetáculos de dança, ou “breakdance”, como reforçou Sérgio Freira, um dos que deu corpo a essa parte da apresentação. A faltarem-lhe nove meses para poder sair em liberdade, Sérgio achou o projeto interessante e confessa que lhe possibilitou conhecimentos na área que tanto gosta: a dança.

“Ajudou-me a descobrir valores que não sabia que tinha”

Teatro, dança e música encheram o palco e os sentidos de quem lá estava durante duas horas. O orgulho dos que assistiam, assim como o dos que atuavam, era visível. Foi a conclusão de um projeto, que se espera não concluído, como explicou Luís Madureira Pires, responsável pelo “Programa Cidadania Ativa”, um instrumento de apoio às Organizações Não Governamentais (ONG), da Fundação Calouste Gulbenkian.

A PELE quis entrar nas prisões e capacitar os reclusos, através da arte, com ferramentas fundamentais para a sua reinserção.  Diogo Batista foi um dos reclusos que deu voz ao espetáculo. Faltam-lhe cumprir “quatro ou cinco meses”, não sabe bem, para sair em liberdade e participou na PELE durante três meses. “Ajudou-me a descobrir valores que eu não sabia que tinha”, confessa ao JPN. E espera que quando chegar lá fora possa seguir pela representação ou pela música: duas áreas de que gosta. “Valeu a pena!”, concluiu sem dúvidas.

O espetáculo terminou com todos os reclusos a juntarem-se em cima do palco e os temas “Alguém me ouviu”, de Mariza e Boss AC e “Chaga”, dos Ornatos Violeta, fizeram-se ouvir.

Nos bastidores do espetáculo

Além das famílias dos reclusos, também os tutores do Projeto ECOAR (Empregabilidade, Competências e Arte), organizado pela associação PELE, estavam orgulhosos daquele que é um dos resultados do trabalho feito com mais de uma centena de jovens em contexto prisional.

Na plateia, Abel Sousa era dos mais atentos. Tutor do projeto, acompanhou os jovens desde o início. Abel também já esteve em reclusão e foi ajudado por um projeto idêntico ao da associação PELE. Lembra-se bem do que é “impossível de esquecer” e, por isso, tem vontade de ajudar quem está na mesma situação. “Este tipo de projetos fazem-me perceber que tudo é possível”, afirma Abel Sousa.

O ex-recluso lembra os tempos em que a liberdade era apenas um sonho e explica que “tinha noção de que não ia ser ator nem artista, mas o saber comunicar, o saber estar e o saber cooperar com os outros” são competências que projetos como o ECOAR proporcionam a quem neles participam.

Abel Sousa agradece tudo o que viveu dentro do projeto: “A minha experiência leva-me a este tipo de iniciativas porque também já estive no lugar deles e ser tratado de igual para igual dá-nos um conforto imenso”.

Competências como saber ouvir a opinião do outro e saber trabalhar em equipa são o que Abel considera mais importante no momento de encarar a liberdade: “São valores muito precisos lá fora e que ajudam à mudança”. Uma mudança a que, segundo o tutor de projeto, todos têm direito. “É lógico que temos que pagar pelos erros que cometemos, mas temos consciência que esses erros não podem mais acontecer. Queremos que a sociedade nos veja e não ao erro que cometemos, porque somos pessoas, somos humanos”, reflete Abel.

Não se pouparam abraços nem palavras de conforto no salão de visitas do Estabelecimento Prisional do Porto. Sentado na primeira fila, junto ao palco, estava Luís Madureira Pires, responsável pelo “Programa Cidadania Ativa”, um instrumento de apoio às ONG’s, da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta é a entidade que suporta, em termos financeiros, todo o projeto PELE. “Os projetos vão a concurso e cerca de 112 são selecionados e financiados pelo programa”, explica Luís.

Programa Cidadania Ativa

O “Programa Cidadania Ativa” abrange várias componentes, ligadas aos direitos humanos e aos valores democráticos, incluindo a luta contra a discriminação, área em que se insere o projeto ECOAR. O desemprego jovem, a inclusão social e a questão da sociedade civil mais próxima do Estado são, igualmente, pontos de atuação da organização. Luís Monteiro Pires, responsável pelo programa, indica que os fundos vêm dos EEA Grants (Noruega, Islândia e Liechtenstein) que financiam 16 estados, membros da União Europeia: “Desse montante, no mínimo 10%, e no caso de Portugal 15%, são destinados a ONG’s e aos seus projetos”.

Para Luís Madureira Pires, o projeto ECOAR é “meritório” “Este foi um dos resultados, mas nunca o resultado final, porque esse apenas se mede quando os reclusos saírem daqui e se inserirem na sociedade”, aponta. Luís conta que o objetivo do programa é “dar ferramentas para que os jovens possam desenvolver um projeto de vida viável e saudável”.

O espetáculo, que durou cerca de duas horas, surpreendeu o responsável do “Programa de Cidadania Ativa”: “É extraordinário conseguir trazer estes jovens nesta situação complicada a trabalharem desta forma e a conseguirem estes resultados. A própria questão de se exporem já é complicada, é preciso trabalhá-los desde o início”. O “espírito de camaradagem” descrito por Luís Madureira Pires foi sentido por todos na sala e é algo que o membro da entidade financiadora do projeto não quer abandonar: “Num ano, muita coisa fica por fazer e é evidente que estes projetos necessitam de algum tipo de continuidade”, rematou.