“As prisões são espaços legítimos para se estar e fazer”: a frase, retirada do documentário de Patrícia Poção, ilustra os locais onde durante dois meses o projeto ECOAR pôs os reclusos em contacto com a arte. Em três estabelecimentos prisionais do Porto, o projeto de reinserção social da associação PELE reconheceu competências e certificou 112 reclusos. O documentário do projeto, que está perto do fim, foi esta quinta-feira apresentado no MIRA FORUM, em Campanhã.

“Um recluso faz um grande esforço para que o aceitem como um Homem como os outros”, expôs o guarda Gomes, para a câmara de Patrícia Poção. “Eles são capazes de tudo, o que precisam é de estímulo”, a frase é anónima, mas no projeto todos concordam. No início, apenas os coordenadores acreditavam: “A maior parte dos reclusos ficou surpreendida com os aspetos positivos sobre eles”, relatou um dos membros da PELE. Em contexto prisional, os reclusos não estão habituados a serem reconhecidos nem a que lhes perguntem o que querem fazer.

“Descobri competências que não sabia que tinha. Agora faço coisas que nunca imaginei fazer”, confessou um dos reclusos. A abertura de horizontes, o trabalho em equipa e o reforço da autoestima são alguns dos reconhecimentos mais importantes do projeto. “Agora escutamo-nos todos uns aos outros, olhamos nos olhos”, é o relato de um recluso.

Ao início, os exercícios intrigavam-nos e “parecia tudo muito estranho”. Há medida que os dias foram passando, havia quem mal pudesse esperar pela hora: “Agora não faria sentido sem aquilo. No fim, é enorme. Nunca pensei que conseguisse fazer aquilo. A fazer isto sou livre.” Agora, independentemente da PELE sair de cena, há reclusos que querem continuar. Pedem mais. Quando há mais?

Depois de um ano e quatro meses de atividade, fizeram-se dois meses de artes nas prisões, uma apresentação pública das performances, vários debates, uma exposição e um documentário. No final, 112 reclusos foram certificadas pelo projeto. Este mês, o ECOAR chega ao fim. A PELE continua e lançaram-se as sementes para uma possível exportação do projeto para o sul do país, em breve. Pela sala, espera-se que “continue a ecoar”, esta que é, para reclusos e coordenadores, “a arte que conseguiu passar para a vida”.

 “O Direito fica à porta do estabelecimento prisional”

“Quantos euros dará à nação um projeto destes? Esta reabilitação social dos reclusos?” é uma das questões levantadas no documentário. Há quem responda: “Teríamos de atribuir valor à paixão e seria rentável”. Estava dado o mote aos comentários de Valter Hugo Mãe, o escritor, e André Lamas Leite, professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP).

Segundo o advogado e professor, os 14 mil reclusos em Portugal “mantêm a totalidade de direitos, tirando os que lhes foram retirados na condenação”. “A partir do momento em que um recluso entre num EP, deve começar a sua reinserção”, completa um guarda prisional participante do documentário. A reinserção social, apesar de ser um compromisso decorrente da lei portuguesa, é ainda realidade para muito poucos.

Lamas Leite atribui as causas à falta de recursos, sejam agentes de reinserção social, sejam meios de inclusão através da arte, da qualificação profissional e Ensino Superior. “Não há guardas suficientes para levar os reclusos às aulas. Não há meios para isso, porque não é uma prioridade do sistema”, lamentou. Em Portugal, apenas na Universidade Aberta é possível frequentar aulas à distância.

“Os reclusos são os esquecidos dos esquecidos”, denunciou Lamas Leite. Esquecidos pela sociedade que “nem se lembra que eles estão lá” e esquecidos pelo poder político, mesmo em período de campanha eleitoral. Segundo o jurista, os votos entre os presos são muito poucos, apesar de serem vários os que têm, após a condenação, os seus direitos políticos.

Para o jurista e professor na FDUP, o “Direito fica à porta do estabelecimento prisional”. “Nós só ensinamos na faculdade até à condenação”, salientou, destacando a falta de acompanhamento dos reclusos após o julgamento e a impreparação dos profissionais da área.

“O legislador leva a esperança da reinserção quando condena alguém”, defendeu Valter Hugo Mãe. Lamas Leite completou o escritor com base na Lei de Execução das Penas que vigora na Constituição Portuguesa: “O código diz que a prisão é nociva, que se deve reproduzir o mais possível o exterior e estabelecer o contacto com a sociedade. Isto tudo tem total cabimento legal”, reiterou o jurista em referência ao projeto ECOAR.

A conversa desta quinta-feira pretendeu desfazer os preconceitos quanto aos reclusos, mas também desfazer o romantismo que por vezes é associado ao tema. “É preciso trabalhar com estas pessoas com uma visão não ingénua. Não vamos romantizar, não estamos a salvar o mundo”, ressalvou Valter Hugo Mãe, elogiando o trabalho de “frontalidade e lucidez” do projeto da PELE.

Artigo editado por Sara Gerivaz

Artigo corrigido às 11h33 do dia 5 de abril com a alteração de “Espaço MIRA” para “MIRA FÓRUM”