Há 98 anos, as tropas portuguesas sofriam uma das maiores derrotas da sua história militar, em La Lys, na Flandres. Ao mesmo tempo, na frente africana, 20 mil homens combateram, milhares perderam a vida. Hoje ninguém os conhece.

No aniversário da batalha de La Lys, a mais conhecida da participação portuguesa na I Guerra Mundial, o JPN recorda a frente do conflito que o país esqueceu. Longe dos holofotes da guerra na Europa, a frente africana, que Manuel Carvalho colocou em livro, foi amplamente ignorada. “A Guerra que Portugal quis esquecer” é uma obra do jornalista do Público sobre os combates em Moçambique que envolveram mais de 20 mil homens, entre 1914 e 1918.

Em entrevista ao JPN, o ex-diretor do Público destaca a desumanidade de uma guerra em que “o número de mortos foi muito maior que o oficial”. Em Moçambique, morreram muitos mais portugueses do que na frente europeia. Manuel Carvalho conta as histórias das gentes portuguesas que partiram para África, para um cenário que não conheciam. Durante quatro anos, houve cinco expedições – a quinta “limitou-se a assistir às feridas do final da guerra” -, ao mesmo tempo que vários governos rodavam no poder em Lisboa.

A guerra na frente africana não se estuda nas escolas.

“Exato. Daí “A Guerra que Portugal quis esquecer”. E conseguiu.

Como é possível termos esquecido uma guerra que foi nossa?

“É possível quando temos pelo meio um regime ditatorial que impõe a censura e controla completamente os mecanismos de liberdade intelectual.

A seguir à guerra, em 1918, temos uma série de publicações e de memórias de alguns soldados e oficiais. Depois do golpe de 28 de maio de 1926, há um abrandamento das publicações. O que acontece depois de 1933 é que, com exceção de alguns estudos militares, as memórias vividas da guerra deixam de aparecer.

Há um livro, publicado apenas em 1979, de um sargento da altura chamado Cardoso Mirão. Ele tenta publicar o livro por volta dos anos 30 e há uma nota da censura proibindo esse intenção, porque essas memórias desprestigiavam o exército português. Ou seja, para a ideologia do Estado Novo, que se alicerçava muito na grandeza do Império, o pior que podia acontecer era mexer nas memórias dolorosas e ressuscitar tudo aquilo que aconteceu de mau.”

Mas como é possível, em democracia, não falarmos nem estudarmos a frente da I Guerra Mundial em África?

“Não há nada que justifique o apagamento da história da I Guerra Mundial e que Moçambique e Angola não tenham a atenção que merecem. Portugal mobilizou dezenas de milhares de soldados europeus e africanos para lá. A devastação do território de Moçambique, onde houve guerra, foi brutal.

Evidentemente que o esforço de guerra que Portugal fez para a Flandres e a importância estratégica que aquilo representou para um país como o nosso, em 1916, é incomparavelmente mais importante que aquilo que aconteceu em Moçambique. Mas numa história sobre a participação de Portugal na guerra, dois terços de um artigo ou de um livro seriam para Flandres e um terço para Moçambique. Agora, aquilo que acontece é que 97% é para a Flandres e 2 ou 3% para Moçambique. Isso aí é que não é um retrato exato do que foi a participação de Portugal na Guerra Mundial.”

Porque é que era mais importante a guerra da Flandres?

“O esforço de mobilização de Portugal para a frente europeia foi muito maior, quer em termos de homens, quer em termos de recursos: aquilo custou muito mais dinheiro a um país que estava no limiar da indigência. Por outro lado, do ponto de vista da nossa história diplomática foi muito importante, dado o processo de negociação com a Inglaterra e com a França para nos aceitarem como beligerantes, que era aquilo que a República queria.

Portugal entrar na guerra ao lado dos Aliados seria um forma de branquear esse processo e ser aceite como um par no concerto europeu das nações. Quando em 1916, finalmente os ingleses aceitam Portugal como um parceiro em igualdade de circunstâncias na guerra europeia, isso é um acontecimento que tem impacto nas diferentes feições da história. Tem muito mais consequências diretas na vida do país do que o envio de 20 mil homens para Moçambique numa guerra distante. Da guerra de África sabia-se muito pouco, não aparecia nos jornais com o impacto que a guerra na Europa tinha.

Por outro lado, tudo aquilo que aconteceu a seguir na Conferência de Paz, com a própria derrota de La Lys, é muito mais ancorada naquilo que aconteceu na Flandres do que em África. Mesmo para os ingleses, para os alemães e para os belgas, a guerra africana foi muito mais esquecida do que a guerra europeia. Mas percebe-se uma coisa: a mortandade dessas tropas naquele horror das trincheiras foi absolutamente dantesca. Aí sim, justifica-se uma atenção muito mais centrada na frente europeia. No caso português, não se justificaria assim tanto.”

 Qual foi a relação das forças britânicas com o exército português? Salvadores ou carrascos?

“Essa é uma velha questão. Em relação às colónias, uma das principais preocupações de Portugal, em 1914, era o pânico de perder as suas colónias. A partir de 1885, começa aquilo que se chama «a corrida a África», com toda a gente à procura de ganhar o maior quinhão de terra possível. E no meio deste conflito de interesses, Portugal foi-se conseguindo safar.

Mas quando a guerra começa, Portugal precisa de facto do apoio dos Aliados para defender as suas colónias. E tenta-o a todo o custo. No entanto, os ingleses não são muito simpáticos com esse tipo de preocupação. Desde 1881, com o ultimato por causa do Mapa Cor-de-Rosa, fica-se claramente a perceber que, na primeira oportunidade, os ingleses se apropriariam de territórios coloniais dos dois lados das costas africanas.

Eu diria que Portugal foi sempre uma figura de terceiro plano na geoestratégia da Inglaterra. Aliás, a Inglaterra só aceita que nós entremos na guerra europeia porque estavam cerca de 70 barcos alemães ancorados nos portos portugueses. Depois dos efeitos devastadores da guerra submarina contra a marinha mercante inglesa, a única solução deles foi pedir ao Governo português para apreender esses barcos e pô-los ao serviço do esforço de guerra inglês.

Só a partir daí é que Portugal entrou na guerra. Os ingleses olhavam para nós e viam um país pobre, sem exército, sem disciplina, sem equipamento militar, que ia ser um empecilho. Como de facto se veio a provar na frente europeia.”

Como se compreende a derrota dos portugueses frente aos alemães? 

“É uma questão crucial. Portugal tem uma presença nas costas de Moçambique desde os primeiros anos do século XVI. Os alemães chegaram em 1885 à atual Tanzânia, a Zanzibar. Uma boa parte da nossa elite militar era conhecida como os ‘africanistas’ que eram oficiais de topo que tinham experiência militar na «pacificação» dos indígenas. Nós sabíamos as dificuldades logísticas, os problemas sanitários, com saúde, com a água, os problemas com as marchas pela selva… Pelo lado do saber militar e do conhecimento do terreno, nós tínhamos uma grande vantagem sobre os alemães.

A minha principal explicação é que não havia vontade de combater. A maior parte dos oficiais do exército português eram monárquicos, portanto havia um ódio visceral da elite militar em relação aos republicanos da fação que estava no poder.

E havia também um caos administrativo na máquina do Estado e instabilidade política e social que impedia que houvesse condições para planificar um esforço de guerra como aquele que era exigido. Por exemplo, foram encomendadas barcaças para os desembarques nos portos do norte de Moçambique, mas as greves e as sabotagens fizeram com que só tivessem chegado muitíssimo depois. Houve comprimidos de quinino falsificados. Houve quantidades industriais de alimentos que chegaram a África já completamente degradados.

No terreno houve elevados custos associados à falta de preparação. Há um relato que conta que 475 dos mil e poucos homens do Batalhão 31 do Porto morrem sem nunca terem saído da praia. Morrem dizimados pelas doenças.”

A informação era detida pelas chefias. Não passava para quem estava no terreno?

“Não havia a preocupação dos oficiais em cuidar dos seus soldados.

A maior parte dos que foram para África eram de Trás-os-Montes, do Minho e da Beira Alta. Muitos deles nunca tinham visto o mar. Eles tinham uma ideia muito remota de Moçambique: África para eles era um sítio de degredo, um lugar abrasador, onde se morria muito facilmente.

Para além de ser um grande mistério para eles, há relatos de que não acreditavam que a malária fosse causada por uma picada de inseto. Não lhes entrava na cabeça. E mais: acreditavam que o quinino lhes retirava potência sexual, portanto recusavam muitas vezes.

Há um único comandante militar que vemos que sabe qual é a dimensão do problema. Para além de ter levado uma grande quantidade de vacinas, obrigava os seus soldados a tomar um comprimido de quinino todos os dias numa parada. Foi o primeiro e o único. E foi, apesar de tudo, a expedição que correu melhor.

Nas outras, nota-se que há um desligamento. Os chefes intermédios não querem combater, não querem submeter-se ao esforço. Para eles, aquilo é tudo uma necessidade imposta pelos lunáticos que estão em Lisboa. Na cadeia de comando falta ali continuidade e quem acaba por pagar são as comunidades negras e os soldados.”

A falta de preparação dos soldados portugueses é hoje uma das questões mais apontadas para a vaga de mortes da Guerra Colonial, 43 anos depois. O que é que o exército português aprendeu neste período?

“Eu recebi bastantes ’emails’ e telefonemas de pessoas que estiveram na Guerra Colonial a dizerem: ‘Olhe, eu estava a ler o seu livro e estava-me a lembrar daquilo que nos acontecia’. A questão mantém-se: um pequeno país querer projetar uma guerra a milhares de quilómetros de distância. É uma utopia. Era impossível que toda a cadeia de abastecimento, logística e de comando tivesse funcionado bem. Em cenários onde há guerrilha, são guerras impossíveis de ganhar.

Pode-se ter aprendido alguma coisa com a I Guerra, embora seja curioso que os militares que foram para Moçambique [na Guerra Colonial], não soubessem da I Guerra Mundial ali. Em vários sítios, identifiquei militares que estiveram lá: ‘Você esteve neste sítio. Ouviu alguma vez falar de uma batalha que aconteceu ali em 1917 ou 1918?’ Não. Nenhum deles sabia. Mesmo oficiais com patentes superiores, desconheciam em absoluto.

O caso mais engraçado é a memória de um familiar meu que está na base da minha investigação. O avô do meu tio esteve numa base militar chamada Unango e o neto, que também era militar, passou pela cidade 50 anos mais tarde e não sabia que o avô tinha estado lá. Essa desconexão num tão curto espaço de história é uma coisa que, enfim, só acontece em Portugal. Nem o neto sabe que o avô tinha estado lá. Há aqui coisas que nos levam para a dimensão do mistério, quase.”

O insucesso militar dos portugueses pode dever-se a esta questão de não se saber, de não se estudar?

“Sim, isso é uma tendência que nós temos desde sempre: a de não aprendermos com a história. Não aprendemos nada com as nossas próprias frustrações, nem sequer com os nossos próprios sucessos. Queremos inventar a cada ciclo que passa. Não se estuda devidamente aquilo que é o passado recente para daí extrair lições e tentar promover consensos. Esta é um pouco a nossa sina, o nosso fado.”

Uma vez que os soldados negros não estavam integrados oficialmente no exército português, eram apenas números, vai existir sempre uma parte oculta da Guerra em África?

“Sim, sobre os africanos são apenas conjeturas. Sabemos apenas a dimensão dantesca, pelos documentos administrativos. Há um governador de uma das províncias do Sul, onde muitos homens eram recrutados, que diz ‘foram daqui 25 mil, só chegaram 5 mil completamente depauperados. Onde estão os outros?’. Ninguém sabe, não há resposta para isto. Os outros, como diz o livro do General Gomes da Costa, ‘deixaram os seus esqueletos pintar de branco os caminhos por onde andaram os exércitos portugueses’.

Não se sabe quantos africanos morreram, mas temos o suficiente para sabermos que as chacinas das comunidades que se levantaram contra a ocupação portuguesa foram uma coisa absolutamente indizível para aquilo que foram os nossos valores.”

Depois de responder ou procurar respostas para as perguntas que tinha, qual é a dúvida que mais o inquieta agora?

“Há muitas coisas que continuamos a não saber e o livro tem a pretensão de ser uma espécie de começo. Tem a preocupação de mostrar até que ponto aquilo foi uma loucura. Foi tudo um disparate do princípio ao fim. Um absurdo. O livro também quer de alguma forma prestar justiça a essas pessoas que sofreram tanto.

Mas o que me parece ser mais importante é conhecer exatamente qual era o retrato pessoal dos soldados que foram para lá. De uma forma gritante, nós não sabemos quem eram os soldados. São nomes associados a números.

Mas era interessante saber como é que eles regressaram, como é que recuperaram as suas vidas, as sequelas que trouxeram da guerra e as debilidades físicas. Até que ponto lhes dificultou uma vida normal no regresso?

Morreram tantas pessoas. Eu não acredito nos números oficiais – eles dizem que foram dois mil e qualquer coisa. Foram muitos mais! O caos administrativo era tão grande, que nós temos um relato de um oficial, quando a primeira expedição é retirada, que dizia que havia 440 soldados que ninguém sabia deles. E o mesmo oficial diz que os documentos da secretaria da expedição esvoaçavam pelo navio ou serviam para fazer de calço nas mesas.

Portanto, há muitas coisas ainda para explorar. Mas acho que daqui a uns anos vai ser possível nós termos uma ideia muito mais pormenorizada e profunda daquilo que de facto aconteceu. Com isso, acho que nós preencheremos uma das lacunas mais flagrantemente abertas da nossa história contemporânea.”

 

Artigo editado por Filipa Silva