Esquerda versus direita. Povo versus elite. A discussão é antiga, mas os contornos são novos. O crescimento chinês caiu para metade e os países sul-americanos – principalmente o Brasil -, que estão ligados à economia chinesa estão a sofrer graves consequências económicas. A esquerda tem vindo a perder a força da última década e meia. A Argentina do recém-eleito Mauricio Macri, o Peru com dois candidatos de direita a disputarem a segunda volta das presidenciais – Keiko Fujimori e Pedro Pablo Kuczynski – Uruguai e o Chile onde a esquerda ainda sobrevive mas com baixos níveis de popularidade e a fragilizada Venezuela de Nicolás Maduro, que ao que tudo indica não vai acabar o mandato, têm vindo a confirmar uma onda de mudança política pelo continente sul-americano.

O professor e especialista em política latino-americana, Andrés Malamud, afirma que a crise económica mundial tem “grosso modo” 80% de responsabilidade num cenário de mudança da esquerda para a direita na América do Sul. O restante é resultado de uma crise interna de má gestão e articulação política. No caso do Brasil, e apesar de todas as crises que enfrentou, “Lula sabia articular-se melhor politicamente. Dilma não soube”, completa o professor em declarações ao JPN.

Um fator importante e fulcral que explica a atual situação sul-americana é a própria crise que a China enfrenta e que, consequentemente, atinge todos os países com quem tem fortes relações económicas. O maior país da Ásia Oriental que crescia a 10% ao ano, neste momento baixou essa percentagem para metade. Sendo o principal parceiro de vários países sul-americanos inclusive do Brasil, Andrés Malamud explica que o baixo crescimento chinês provocou uma queda no preço das matérias-primas – petróleo, soja e ferro, por exemplo – e acabou com o chamado “super ciclo das ‘commodities’”.

Este é um ponto. Outro fator indiscutível que foi salientado pelo jornalista do “Correio Braziliense”, Leonardo Cavalcanti, é que “há um cansaço e desgaste das esquerdas sul-americanas por falta de análise das ações adotadas no passado”. Ao JPN, o editor de política reconhece que o governo de Lula ofereceu uma situação economicamente confortável a milhões de pessoas que viviam na pobreza, mas “falhou no acompanhamento com bases estruturais na educação”. Com a crise que o país enfrenta, vai ser difícil manter essa nova classe média sem qualificações no mercado de trabalho.

Durante mais de uma década, a esquerda progressista de Luis Inácio Lula da Silva tirou 29 milhões de brasileiros da pobreza extrema e moderada, segundo dados do Banco Mundial. Dilma Rousseff foi eleita e reeleita e, para o professor e especialista em política latino-americana, Andrés Malamud, a presidente cometeu um erro grave: “brigou com todos”.

“O Governo Dilma não conseguiu ir ao encontro da expectativa da população. Lula conseguiu em momentos de pressão, com o seu populismo, salvar-se. Dilma não tinha essa legitimidade, não tinha essa força populista”, realça Leonardo Cavalcanti. O jornalista reforça esta ideia a dizer que como não houve reflexão das ações praticadas pelo governo Lula, o de Dilma ficou frágil. As manifestações de 2013 começaram a demonstrar o descontentamento de uma população cansada das estruturas débeis do país. Mais tarde, foi a vez da forte fragmentação partidária da coligação que apoiava a presidente produzir os seus efeitos.

A essa vaga de orientação política sul-americana, o editor do “Correio Braziliense” revela que no Brasil esta mudança não está muito clara. “Há uma fragilidade muito grande. Há um desgaste do Partido dos Trabalhadores (PT), da máquina e da própria inabilidade da Dilma. Mas considerar agora que a esquerda está fadada ao fracasso é precipitado”, considera. O jornalista sublinha ainda que os fatores de fragilidade interna são maiores que qualquer fator externo. Por outro lado, Andrés Malamud afirma que “a crise brasileira é uma manifestação de um fenómeno internacional e todos os países sul-americanos estão a sofrer com isso”.

O professor lembra que a base da crise angolana é exatamente igual à da brasileira: a China. E países como o México, por exemplo, estão melhores porque têm ligações comerciais com os Estados Unidos. No entanto, a América Latina continua a ter baixa prioridade para os norte-americanos e, segundo Malamud, vai continuar a ter.

O especialista em política latino-americana não é muito otimista quanto ao futuro. “Houve uma distribuição de riqueza para os pobres durante uma década. Não vão tirar dessa nova classe tudo o que eles ganharam, mas as expectativas que tinham de continuar a ganhar vão baixar”, declara o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Enquanto isso no Brasil…

No maior país da América do Sul continua a decorrer o processo de destituição da presidente Dilma Rousseff. Na polémica sessão de votos do passado domingo na Câmara dos Deputados, 367 parlamentares votaram a favor do “impeachement”.

“Por você, mamãe”, “Pelos militares de 1964”, “Em nome de Deus”, “Liliane, meu amor, pelo Lorenzo”, foram algumas das justificações que levaram os 367 deputados a votarem a favor do processo de afastamento da presidente. De vez em quando, ouvia-se um voto contra. “Eu me recuso a entregar o meu país nas mãos dos golpistas, traidores e corruptos que armaram essa farsa e que aqui comandam ela”, declarou Givaldo Pereira do PT.

Dilma Rouseff fez na segunda-feira um discurso, no qual declarou sentir-se “injustiçada e indignada”. “Não há contra mim nenhuma acusação de desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito ou por ter contas no exterior”, lembra a presidente. Dilma afirmou ainda que se trata de um golpe camuflado de “processo legal e democrático para perpetrar o mais abominável crime contra uma pessoa que é a condenação de um inocente”. Termina ao dizer que a luta está apenas no começo e que tem “ânimo, força e vontade suficientes para enfrentar essa injustiça”.

A decisão de domingo já está na Câmara Alta, onde cerca de 81 senadores vão julgar em primeiro lugar se o processo segue ou não. Isso deve acontecer na próxima segunda-feira. Sendo aprovado por, no mínimo, 41 senadores os trâmites continuam. Após essa votação e por maioria simples vai ser decidido se Dilma continua ou não na presidência.

Sobre a sessão de domingo, Leonardo Cavalcanti salienta o total despreparo dos parlamentares na “falta de pureza ideológica e política” e que Dilma até agora não tem nenhuma acusação direta de corrupção. Por outro lado, “vai ser muito difícil o Senado reverter a decisão da Câmara”, conclui.

Andrés Malamud reforça a ideia do editor do “Correio Braziliense”, ao afirmar que a sociedade brasileira está farta de todos os políticos e que muito provavelmente se vai arrepender do que está a acontecer agora. “Muita gente vai pensar que ficou pior do que estava”, conjetura o professor.

Segundo uma sondagem do Data Folha, a rejeição de Michel Temer é tão grande quanto a de Dilma. O jornalista brasileiro Leonardo Cavalcanti revela que houve um “certo susto” quando a população percebeu os rostos dos sucessores de Dilma, mas o processo já estava adiantado. Conta ainda que há um grupo de parlamentares que está a propor eleições antecipadas, mas que é muito difícil que isso ocorra, uma vez que o atual congresso “tem uma simpatia clara por Temer”.

 

Artigo editado por Filipa Silva