A noite de 23 de abril parecia igual a tantas outras. No entanto, os telespectadores mais atentos repararam que na programação diária da HBO estava uma misteriosa novidade, um programa chamado “Lemonade”. Ao mesmo tempo, Beyoncé publicava no seu Istagram uma fotografia com a cara tapada, e com o mesmo nome em letras grandes. LEMONADE. O êxtase dos fãs foi imediato, tentaram incansavelmente descodificar o que poderia significar o enigmático nome. Seria um filme? Um novo documentário? O tão esperado álbum para a nova “tour” que estava na altura perto de começar, a Formation World Tour? Limonada?
O programa começa. 60 minutos. 12 músicas. Foi o suficiente para colocar o mundo em alvoroço. “She did it again!” Um novo álbum! Sem publicidade, sem marketing absolutamente algum. Doze músicas e uma hora de filme, com milhares de pormenores, nenhum deixado ao acaso, uma produção milimétrica que claramente envolveu uma equipa de centenas, e no entanto nenhuma boca se descoseu, nenhum boato circulou, ninguém imaginava que a “Queen Bey” se preparava para surpreender o mundo, de novo.
Relembre-se quem já ousou esquecer, em dezembro de 2013 a cantora lançou sem qualquer pré-aviso o seu primeiro álbum audiovisual. O projeto “BEYONCÉ” contava com 14 músicas e 17 vídeos gravados em diversos lugares do mundo, de Nova Iorque ao Rio de Janeiro. As mensagens intrínsecas às músicas davam o poder às mulheres e revelavam uma nova Beyoncé, 100% feminista e sem medo de o assumir.
Mas “Lemonade” é diferente. Para quem a considerava silenciosa desde 2014, quando a “Mrs Carter Show World Tour” chegou ao fim, em Lisboa, este foi o grito dela. Para quem insistia em colocá-la no mesmo saco que outros artistas pop desta geração, esta foi a prova de que fazê-lo é impossível. Se existisse uma dinastia no mundo do espetáculo, Beyoncé era rainha. “Lemonade” é a cerimónia de coroação.
O álbum foi lançado três dias depois da morte de Prince. Podia facilmente ter ficado na sombra desta ocorrência. Mas é de Beyoncé que estamos a falar, portanto, “Lemonade” foi visto e ouvido pelo mundo fora e 24 horas depois era número um no iTunes em 25 países, incluindo no Brasil e em Espanha. Num misto de R&B, hip-hop, soul, rock, country e eletrónica, o álbum recebeu 5 estrelas da revista “Rolling Stone”, está em primeiro lugar na Billboard 200 e, de acordo com a mesma, o disco, que estava em “streaming” online, vendeu o equivalente a 6.530.000 unidades. Beyoncé conseguiu também a proeza de superar o recorde de Taylor Swift de ter 11 músicas no Billboard Hot 200, atingindo as 12. Ou seja, o álbum todo.
A obra destaca-se também pela quantidade (e qualidade) de colaborações que tem. Nomes como Jack White, Kendrick Lamar, The Weeknd, James Blake, Diplo, Father John Misty, Jon Brion e Ezra Koening acompanham Beyoncé nesta nova fase, tão distinta de todas as outras e intrigante ao ponto de colocar todo o mundo a tentar entrar dentro da sua cabeça.
Durante os 60 minutos do vídeo, é contada a história de uma mulher (ou talvez de todas as mulheres) que é traída pelo marido. No início vem a revolta, com as agressivas “Don’t hurt yourself”, “6 inch” e “Sorry”. Na segunda metade do álbum, no entanto, vem a paz da reconciliação. Do perdão. Do regresso ao amor. “Daddy Lessons” é o ponto de viragem. A história termina com “All night” uma música romântica em que Jay-Z, o marido da cantora, e Blue Ivy, a filha do casal, surgem em momentos familiares descontraídos e ternurentos.
Quando se acaba de ver “Lemonade”, surge inevitavelmente a dúvida: será que Beyoncé está a contar a sua própria história? Trata-se de uma obra autobiográfica? Ou estará a falar em nome de todas as mulheres que foram e são traídas, inferiorizadas e mal tratadas?
Ao longo do filme é possível ouvir pedaços de poemas de Warsan Shire ditos por Beyoncé. Mas existe um excerto em particular, de Malcolm X, que mostra ao público que mais do que uma história amorosa, “Lemonade” é um grito ativista e socialmente responsável da artista. “The most disrespected person in America is the black woman. The most unprotected person in America is the black woman. The most neglected person in America is the black woman”. Lemonade é um hino à cultura e à mulher afro-americana, à sua proteção, à sua liberdade. É, aliás, no meio de mulheres negras que Beyoncé pergunta “Freedom, Freedom, Where are you?”.
Nuns Estados Unidos da América em que Donald Trump é o único candidato republicano à Casa Branca, nuns Estados Unidos da América em que notícias de rapazes negros que foram mortos por polícias são cada vez mais constantes, Beyoncé muito provavelmente não quer que ninguém se preocupe se ela foi traída ou não. Quer levantar valores mais altos, dar voz a quem não a tem. Mostrar o orgulho que tem nas suas próprias raízes. E que está longe, bem longe de estar parada.
“Lemonade” esteve em pré-venda online desde 27 de abril em Portugal, e chega amanhã às lojas, com o valor de 19,99 euros.
Artigo editado por Filipa Silva