Faltam meios físicos e humanos, falta tempo e dinheiro para se fazer jornalismo de investigação em Portugal? Pedro Coelho considera estes argumentos um “mito”, Luís Miguel Loureiro reconhece a “escassez”, para António José Vilela este é um “discurso estafado”.
Para Pedro Coelho, há verdade nestes argumentos, o que não impede que sejam “extraordinariamente contornáveis”: “demora mais tempo, mas enquanto eu estou a fazer este tema, não estou a fazer as notícias do dia que qualquer um pode fazer; custa mais dinheiro, mas custa o meu salário que já seria sempre pago”. Estas são as questões resolvidas pelo jornalista da SIC que se dedica exclusivamente ao jornalismo de investigação desde 2012.
Pedro Coelho acredita que há um elemento “essencial” a todo o tipo de jornalismo, a credibilidade, plano no qual se atravessa uma crise grave. “Todos nós achamos que podemos ser jornalistas e todos entendemos que qualquer ato de jornalismo é um trabalho jornalístico”, alerta Pedro Coelho. O repórter acredita que a qualidade e a exclusividade do jornalismo de investigação podem ser a tábua de salvação da profissão.
Cansado do “discurso estafado” dos órgãos de comunicação social, António José Vilela olha para os colegas de profissão: “O que acontece muitas vezes nas redações é a preguiça do próprio jornalista, porque fazer jornalismo de investigação é muito mais chato”. A complexidade dos casos e das relações com as fontes, os obstáculos impostos pelo tempo, pelos meios e pelos “poderes” dificultam este tipo de trabalho. O jornalista da “Sábado” aplica ao jornalismo de investigação o lema: “Não é para quem quer, é para quem pode”. É por isto que Vilela considera que deve ser residual nas redações, como sempre foi.
Luís Miguel Loureiro faz parte do grupo de investigação do programa da RTP “Sexta às 9” e diz ter “a noção de que os jornalistas de investigação são uma espécie de oásis no deserto”. O jornalista aponta o dedo às redações: “Deviam ser orientadas para aquilo que produz diferença no jornalismo e não para aquilo que produz o mesmo em todos”. No entanto, o jornalista da estação pública afirma que essa diferença não interessa às empresas de média, “especialmente àquelas que vivem para o lucro”, para as quais os profissionais que estão semanas ou meses a investigar um assunto são “pouco produtivos”. Para Luís Miguel Loureiro, “esses é que são verdadeiramente os jornalistas produtivos, porque esses é que produzem a diferença”.
Do arquivo à base de dados digital
Longe vão os tempos em que os jornalistas corriam para os arquivos à procura de informação, à mercê da disponibilidade dos documentos e da bondade da fotocopiadora de serviço. Na era da digitalização, o acesso aos documentos é facilitado.
Para Pedro Coelho, o desafio não está no acesso, mas no saber procurar. “Chega-se mais facilmente à prova do que se chegava antes. Não precisamos de intermediários”, contornando-se assim as fontes oficiais que são “sempre difíceis”, explica o jornalista da SIC. O desafio é agora a volumosa quantidade de informação disponível.
Muitas vezes tem-se a perceção de que estas fontes de informação – desde os casos de corrupção ao de tráfico de influência – estão mais disponíveis através da tecnologia. “Isso não é inteiramente verdade”, defende António José Vilela. “O chegar a essa informação depende menos das questões tecnológicas do que pensamos. Depende sobretudo da vontade das fontes de informação e de trabalhar essas fontes”. Vilela sai em defesa da fonte de informação humana.
Desde que o jornalismo existe, existem também as fontes anónimas, com um importante papel: o da denúncia. Mas se elas aparecem mais a coberto da internet, Vilela tem dúvidas. É, por outro lado, provável que sejam mais facilmente identificadas quando recorrem ao digital para divulgar informação, acredita o jornalista da “Sábado”. Basta ser possível seguir o seu rastro digital. O jornalista mantém a fé no modelo tradicional: “A principal informação e mais relevante é-me enviada ainda através do meio tradicional”.
Há aqui uma outra questão, que o jornalista de investigação salienta: as grandes fugas de informação vêm dos mecanismos digitais. Apesar destas fugas sempre terem existido, agora é possível ligar a informação. “Antigamente conseguia-se ir buscar, mas os arquivos não estavam tão digitalizados, não estavam tão ligados”, argumenta António José Vilela.
Para além da recolha de dados, os sites e blogues são “determinantes” para a divulgação dos trabalhos de investigação, porque “não têm que dar contas a ninguém”, reconhece Pedro Coelho. “Há muitas histórias que só existem no online, porque é uma plataforma “marginal”, que “sai da lógica associada aos média ‘mainstream’”, explica o jornalista da SIC.
Pedro Coelho não tem dúvidas sobre o efeito de contágio: “Começam a existir extraordinários trabalhos de investigação que obrigam os média ‘mainstream’ a ir atrás dos efeitos daquelas investigações”. Numa nova era, o jornalista vê os grandes meios de comunicação a correrem atrás das histórias dos meios online mais pequenos.
Jornalista ou programador?
As duas coisas. Um jogo quase empatado, mas com ligeira vantagem para o lado jornalístico da questão. Nuno Cintra Torres, especialista em novos média, é perentório: “Se o jornalista quiser ir mais a fundo e ter mais independência e obter melhores resultados, também aprende a ser programador. Ou pelo menos, a utilizar software que exige algum treino e algum custo de formação de modo a poder tirar todo o partido desse tipo de informação”, defende.
“Eu não tenho dúvidas de que o lado que mais importa é o do jornalista, sempre”, afirma Pedro Coelho. Mas a tecnologia não pode ser um elemento exterior: “Tem que ser um elemento complementar do jornalismo”. O jornalista da SIC salienta que a “tecnologia não define conteúdos” e que, em última análise, quem escolhe critérios e filtra a informação é o jornalista. “Não acredito que o jornalismo se possa substituir por outra coisa qualquer”, reitera.
Se o jornalismo acompanha a atualidade, a tecnologia não pode deixar de merecer a atenção do jornalista. Saber onde encontrar, onde tratar e onde publicar. Três mandamentos que andam de mão dada com as novas plataformas às quais Luís Miguel Loureiro acredita que “um bom jornalista” se tem de adaptar. Consciente da sua complexidade, o jornalista admite a ajuda de especialistas “que conseguem ir ‘sacar’ a informação onde às vezes não é fácil”. Aqui, os jornalistas e o programador trabalham para o mesmo.
Apesar de “os jornalistas não saberem tudo”, o repórter da RTP considera que “convém que tenham noção dos processos, daquilo que hoje se chama o ‘data mining’ ou jornalismo de dados”. Processos nos quais o “mineiro vai garimpar a informação” e depois vai tratá-la através de programas estatísticos, de tratamento qualitativo e quantitativo. Mas também Luís Miguel Loureiro não deixa tudo nas mãos do programador: “O jornalismo é que define o que é que está a procurar”.
A (de)formação nas faculdades
Não se trata do buraco na rua, de um evento ou do aumento do preço dos combustíveis. O jornalismo de investigação exige uma formação especializada que, para António José Vilela, só se ganha nas redações. Se o jornalismo de investigação vive das fontes de informação, “a grande dificuldade disto tudo é aceder e cultivar essas fontes”, destaca o jornalista da “Sábado”. Há que saber fazê-lo.
Já Pedro Coelho olha para a faculdade como a catapulta que pode colocar o jornalismo de investigação no “patamar superior do jornalismo”. A começar por uma cadeira de jornalismo de investigação, que ainda não existe nas licenciaturas portuguesas.
Luís Miguel Loureiro concorda. Falta curiosidade, não só nas faculdades, mas também nas redações. “É termos sempre uma espécie de dúvida permanente que pode ser inquietante, mas que ao mesmo tempo nos provoca uma curiosidade pelas coisas que nos leva a questioná-las e a procurar saber mais sobre elas”, explica o jornalista da equipa do “Sexta às 9”.
Falta formação em investigação, num país em que a utilização dos recursos disponíveis na internet pelo jornalismo de investigação ainda é “muito incipiente”, não duvida Nuno Cintra Torres. Uma formação que devia começar nas faculdades, porque os cursos de jornalismo são “muito clássicos”, de certa forma “deformados”. O professor universitário acredita que o ensino tem graves falhas: “Noto nos meus alunos uma grande dificuldade em fazer pesquisa na internet, que não seja a de procurar amigos no facebook”, acrescenta Cintra Torres.
Facto é que a tecnologia trabalha cada vez mais ao serviço da verdade. Apoiadas em ferramentas de busca a tratamento de dados online, têm resultado cada vez mais investigações “assistidas por computador”. Nuno Cintra Torres afirma que nesta matéria há, em Portugal, um grande défice. Não há formação em software para desenvolver pesquisas com base em dados disponíveis na internet: o que “no fundo se trata de tratar bases de dados e fazer relações entre elas”, explica o professor da Universidade Lusófona.
No caso “Panama Papers”, foram traçados mapas de ligações entre nomes de pessoas. O software utilizado foi inicialmente desenvolvido com o intuito de detetar fraudes bancárias e em cartões de crédito. Foi agora apropriado pelo jornalismo. Sem esta “enorme transparência, o caso ‘Panama Papers’ não seria de todo possível e ter a projeção cataclísmica que tem”, salienta Cintra Torres.
Enquanto falamos de investigações ao nível mundial, não podemos deixar de olhar para o umbigo. Pode Portugal também entrar neste jogo? Para António José Vilela é certo que precisamos de mais jornalismo de investigação e o país deve manter as colaborações ao nível internacional – no caso dos “Panama Papers” trabalharam dois jornalistas portugueses através do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação. “Todos os acontecimentos que são importantes ao nível mundial poderão envolver também Portugal e, se envolverem, deveriam ser tratados por jornalistas portugueses”, defende António José Vilela.
Mas, por enquanto, o jornalista acha que Portugal não está a acompanhar a investigação mundial no que toca aos “Panama Papers”: “As divulgações que têm sido feitas sobre esse caso têm sido muito poucas. Só há quatro ou cinco nomes novos à investigação original, tudo o resto são alusões a ex-políticos e a jornalistas pagos”, queixa-se António José Vilela.
E quando a curiosidade mata o gato?
Ser curioso e questionar nem sempre é fácil. E quando se fala em constrangimentos, Pedro Coelho distingue o maior de todos: “o mercado”.
Para o jornalista da SIC, a “armadura ética” do jornalismo de investigação tem que ser “muito mais reforçada” do que a do jornalismo quotidiano. Por uma razão muito simples: “Porque se nos vamos meter com interesses grandes, a nossa matéria tem que ser à prova de bala”.
No discurso de Pedro Coelho pesa a experiência pessoal: “Imagine o que é eu meter-me com um determinado grupo financeiro, económico ou outro e a história não estar completamente assegurada?”, questiona. “É muito difícil sobreviver”, conclui.
A ética do jornalismo é essa: chegar à verdade dos factos. Dada a grande quantidade de informação e as diferentes plataformas para a tratar, Luís Miguel Loureiro considera que é “um desafio”, e é cada vez mais difícil “determinar o momento a partir do qual definimos uma verdade”.
Se a âncora da ética protege o trabalho jornalístico, a lei pode ser um obstáculo à investigação. “Há tanta legislação para obstaculizar o acesso à informação”, constata António José Vilela, que delega no jornalista apenas um papel: o de aceder e divulgar a informação, “depois de a trabalhar, cruzar e verificá-la”. O jornalista acredita que, se a informação existe, cabe ao jornalista publicá-la. Os jornalistas não existem para “conservar segredos, quer seja o segredo de Estado, de justiça, um segredo político ou empresarial”, colocando como exceções quando está em causa “o segredo da vítima e do menor desprotegido”.
Jornalismo: um produto no mercado das empresas
Imagine-se que a história de um jornalista vai contra os interesses comerciais da empresa para a qual trabalha. Como é que se contorna esta situação? “Este é um problema com o qual vamos ser sempre confrontados”, alerta Pedro Coelho. E essas entidades empresariais podem delimitar o jornalismo de investigação? “Claro que podem”, não duvida António José Vilela.
Se por um lado, um órgão de comunicação não vive sem meios nem saúde financeira, também não devia viver sem autonomia, é a ideia defendida pelo jornalista da “Sábado”. O jornalismo de investigação caracteriza-se por poder incidir sobre qualquer poder, qualquer pessoa, qualquer organização. “E se não puder incidir, há já aqui uma limitação anti-democrática”, conclui Luís Miguel Loureiro.
Mas se os três jornalistas admitem a existência de pressões, Vilela também defende que os grupos de média também podem “propiciar” a investigação. Para o jornalista, basta haver uma estrutura editorial forte e uma série de jornalistas interventivos capazes de fazer frente aos interesses económicos.
Por outro lado, o jornalismo pode servir os interesses económicos das empresas, sem se comprometer. Pedro Coelho admite que, quando há histórias fortes com grande interesse jornalístico, o grupo para o qual o jornalista trabalha conquista “o valor mais extraordinário do jornalismo: a credibilidade”. Quando isso acontece, o jornalista da SIC tem “sérias dúvidas de que os grupos de comunicação ponham [as histórias] de lado”. Mas alerta: “Obviamente, que se chocam com interesses diretos do grupo, estas histórias acabam por bloquear, mas bloqueiam à nascença, elas nem avançam”.
Além disso, a internet aparece aqui como uma porta entreaberta para um “momento bom” do jornalismo. “A informação já não pode ficar escondida”, conclui Pedro Coelho.
Artigo editado por Filipa Silva