No final do primeiro ano de formação pós-graduada, os jovens médicos tentam aceder a uma vaga para a sua especialidade de eleição. De ano para ano, os estudantes sentem que têm a vida cada vez mais dificultada porque os hospitais e unidades de saúde não conseguem dar resposta a todas as candidaturas.  Segundo dados avançados pelo Público, um terço dos médicos que saiu do país nos últimos quatro anos na região Norte foi especializar-se no estrangeiro. No ano passado, pela primeira vez, 114 médicos não conseguiram ter lugar num hospital ou centro de saúde para começarem a formação numa especialidade.

“As vagas para o acesso à especialidade não diminuem de ano para ano. A Ordem dos Médicos (OM) tem até conseguido aumentar as vagas, que este ano se situam por volta das 1.600”. André Fernandes, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), sublinha a existência de um excedente de ingressos nos cursos de Medicina. “O problema da questão é que há demasiados estudantes de Medicina a terminar o curso todos os anos”, defende. O aumento do número de alunos que se candidatam [a uma especialidade] é superior ao aumento da capacidade formativa pós-graduada. Este ano, existem 2.162 candidatos para 1.651 vagas indicadas pela Ordem dos Médicos nos hospitais e centros de saúde para a formação numa especialidade, o que faz com que cerca de 500 estudantes possam ficar de fora do programa.

Com o crescimento exponencial de entradas ao longo dos anos – um aumento de 297% em 20 anos de acordo com a ANEM -, a entrada na formação vai-se afunilando. Sem vaga e sem especialidade, as centenas de jovens arriscam-se, assim, a permanecerem com o estatuto de médicos indiferenciados.

Qual é o futuro dos médicos indiferenciados em Portugal?

Os estudantes que ficam sem vaga podem perder um ano e voltar a fazer o exame de ingresso, podem ser indiferenciados mas para muitos a alternativa é emigrarem ou até abandonarem a carreira.

“Há médicos que emigram por vontade própria. O problema que se coloca é que muitos são forçados, porque Portugal não tem capacidade para os formar. Estamos a desperdiçar recursos humanos valiosos e diferenciados. Mandámo-los embora, obrigados a emigrar, porque caso contrário não se especializam”, adiantou ainda o presidente da ANEM.

Na outra face da moeda, encontram-se os estudantes que optam por ficar em Portugal. “Todos os anos é uma incógnita o que se vai fazer com os médicos que ficam cá em portugal. Os últimos 114 ficaram afetos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas não ficam a fazer internato especializado. Ainda não se sabe se esta situação se vai prolongar para todos os médicos, mas não é desejável para o SNS que os médicos que prestam serviços não tenham uma especialidade.”

Se nada for feito, o crescimento dos médicos sem especialidade vai ser exponencial. “O maior problema que enfrentamos neste momento é não conseguirmos dar formação de especialidade aos nossos médicos”, explica André Fernandes que acrescenta que os que não conseguirem entrar este ano “que serão à volta de 500, vão acumular-se aos 500 do próximo ano, o que os obrigará a emigrar ou então a optar por outra carreira”.

Uma geração de médicos indiferenciados passará pelo futuro de Portugal. “Hoje em dia um médico indiferenciado tem autonomia para praticar medicina. É indesejável, no entanto, pelas práticas internacionais, que recomendam formação médica pré-graduada e pós-graduada.”

A ANEM propôs o corte de 500 vagas nos cursos de Medicina

Portugal vivenciou, ao longo dos últimos 20 anos, um aumento do número de ingressos nos cursos de Medicina. A ANEM e a Ordem dos Médicos defendem que este número coloca em causa a qualidade da formação médica em Portugal, ao ultrapassar as capacidades formativas do país, tanto ao nível pré como pós-graduado.

Em março, a ANEM propôs a redução, ao longo de cinco anos, do número de estudantes de Medicina, dos atuais 1.800 para cerca de 1.300. Uma das formas para bloquear as entradas passaria pela extinção da admissão de estudantes já licenciados – o curso de Medicina do Algarve, por exemplo, destina-se unicamente a estudantes licenciados -, além da diminuição das vagas das faculdades clássicas.

Não houve uma resposta formal, de acordo com André Fernandes, mas o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, deixou claro, em entrevista ao Expresso, no mês passado, que não tenciona reduzir as vagas.

“Nós identificámos um problema que existe na formação pré-graduada e pós-graduada e demos uma possível proposta de solução. Mesmo que o ministro não concorde com a proposta, a problemática merece no mínimo uma discussão para descoberta de alternativas”, concluiu o presidente da ANEM.

 

Artigo editado por Filipa Silva