O Bloco de Esquerda promoveu, esta sexta-feira, na Assembleia da República, uma reflexão sobre a realidade da praxe. A audição pública visou criar alternativas de inclusão.

Foram cerca de três horas de análise e reflexão sobre a realidade das praxes académicas promovidas na audição pública do Bloco de Esquerda (BE), na Assembleia da República, em Lisboa.

Intitulada “Mala Praxis, Sed Praxis?” (perguntando, em português, se a “má praxe” continua a ser praxe), a audição pública tinha como objetivo discutir alternativas de inclusão no percurso académico. Luís Monteiro, deputado do BE, Elísio Estanque, sociólogo, e José Caldas de Almeida (a substituir a jornalista Fernanda Câncio), professor na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, orientaram a discussão que, ainda que visasse ouvir os dois lados da questão, estava maioritariamente uniformizada na reprovação desta prática.

Combater as práticas da praxe sem a proibir

Luís Monteiro abriu a sessão convidando o público presente a um “debate cultural, social e político sobre modelos da sociedade”. O deputado do BE acredita que a praxe promove a violência física e psicológica e que se caracteriza numa “instituição segregadora, alheia a uma visão plural”.

O político explicou que “combater [a violência na praxe] não significa proibir”, mas que não se pode “ficar a meio do caminho”, sendo preciso repensar as práticas da praxe.

Elísio Estanque concordou com o deputado do BE. A ideia não é, para ele, proibir, mas sim acrescentar uma “formação cultural” ao “lado lúdico e boémio” deste grupo académico.

O sociólogo mostrou-se interessado pelo fenómeno da praxe quando percebeu a “adesão massificada” que este obtém. Com vários artigos publicados sobre o tema, Elísio Estanque percebeu que há um enquadramento para as práticas praxísticas: o ritual de iniciação. O académico da Universidade de Coimbra relembrou que, há décadas atrás, os iniciados de qualquer comunidade fechada também eram “postos à prova”. Então o que mudou? Segundo Elísio Estanque, com uma sociedade mais transparente, os casos passaram a ser noticiados, causando a “indignação natural de uma sociedade que se revê nos valores humanos”.

O sociólogo sublinhou ainda, e por diversas vezes, que estes rituais praxísticos “reiteram uma cultura de submissão perante a autoridade”, muitas vezes desvalorizada pelas instituições universitárias. Para o académico, no caso específico de Coimbra, há um “certo encolher de ombros” por parte da universidade no que toca a situações que “revelam um panorama degradante”.

José Caldas de Almeida tem a mesma posição. Há uma “denegação” das preocupações que as praxes acarretam. O professor da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa afirmou que as praxes são uma “regressão” que “em termos civilizacionais está há 300 anos atrás”.

Concordando também com a intervenção anterior, José Caldas de Almeida acredita que os órgãos de gestão académica demitem-se da “firmeza de dizer não quando é preciso”.

Ainda assim, o orador defendeu que enquanto as praxes académicas “não ajudam a universidade portuguesa a evoluir”, uma praxe no contexto militar é aceitável, pois está desprovida de um caráter de formação.

Envolvência de toda a universidade é a melhor solução

Manuel Gomes Carvalho, pró-reitor da Universidade do Porto (UP), também esteve presente para explicar como a academia portuense promove também uma inclusão que não recorre à violência.

Para o pró-reitor, a proibição também não é solução. Por isso mesmo, defendeu que é o “trabalho de esclarecimento” que pode surtir efeito. Com acordos de cooperação com 40 câmaras municipais, criados com o intuito de melhorar a empregabilidade, a UP promove também um esclarecimento com as famílias, encarregados de educação e alunos do ensino secundário sobre a academia, nomeadamente a praxe.

Paulo Vieira, da associação de Coimbra “Não Te Prives”, também foi outro dos membros da audiência que fez questão de intervir. O representante da associação que promove a igualdade e a não-discriminação apelou também a um processo que envolva toda a estrutura da universidade na receção dos alunos mais novos e não um “comité ou federação”.

Da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras (AEFLUP) da Universidade do Porto estava Henrique Ferreira, que criticou a falta de comparência das demais associações de estudantes. “É vergonhoso”, criticou, na sua intervenção. O representante da AEFLUP terminou ao sublinhar algo transversal a toda a audição pública: para ele, há uma “desresponsabilização” por parte das universidades, pois estas não mostram interesse sobre o que acontece na praxe.

Sentir que “não vale a pena intervir”

O debate falhou na polarização da questão. Com uma maioria a defender um combate às práticas da praxe, a única representante a dar voz à praxe nas intervenções, sentiu que ” não vale a pena intervir”. Ainda assim, decidiu fazê-lo.

A estudante reiterou que alguns dos pontos focados são universais a qualquer grupo académico. Para a praxista, a violência “é uma coisa que não deve existir na sociedade em geral, daí também não deve existir na praxe”. O mesmo se aplica ao uso de animais em tradições académicas, algo que classifica como “uma plena estupidez”, apoiando quem luta contra essa prática.

“Para além de sermos praxantes, estudantes, somos pessoas”. Por isso a jovem defendeu que não se pode tomar um “mau” praxista para chamar toda a praxe de má.

“Ganhariam muito mais se tentassem trabalhar connosco, em vez de tentarem trabalhar sozinhos”, sublinhou a jovem, assegurando que há gente dentro do grupo académico a tentar mudar os comportamentos errados.

“Se calhar partindo da própria consciencialização das pessoas [dentro da praxe] de que algumas coisas estão erradas, seguiriam mais longe e mais rápido”, terminou a jovem.

Grupos alternativos na academia

O convite para a presença de grupos alternativos académicos foi feito, mas a presença foi escassa. O movimento “Queima das Farpas” e o grupo académico “Real Tertúlia dos Bastardos” foram os únicos a dar voz às possibilidades que não se confinam às práticas praxísticas.

O movimento da Universidade de Coimbra prende-se, sobretudo, com a defesa dos direitos dos animais, o que se traduz na tentativa de abolição de tradições académicas como a garraiada. A representante explicou que o grupo compreende pessoas a favor e contra a praxe, mas que estas últimas já chegaram a ser ameaçadas por fazerem manifestações contra algo que a praxe apoia. A jovem questionou ainda o processo moroso para acabar com este tipo de práticas, confinado ao conselho de veteranos de uma universidade. “Não conseguem perceber o caminho da evolução”, afirmou.

André Ferrão, estudante da UP, falou em nome da Real Tertúlia dos Bastardos, um grupo académico que não é “anti-praxe”, mas que tem práticas que diferem da escolha tradicional dos estudantes. “A Real Tertúlia dos Bastardos não promove práticas que se centrem na autoridade, na humilhação”, ao invés promovem “soft skills” inerentes ao curso de Ciências da Comunicação, onde estão integrados.

O estudante frisou ainda que o “traje académico é um direito universal dos estudantes” e que permite “a uniformização do estudante enquanto desestruturação dos estratos sociais”, uma vez que o traje foi amplamente “colado” às práticas da praxe académica durante o debate. Ainda assim, André Ferrão sublinhou que o uso do traje académico não é obrigatório, dependendo da escolha do estudante.

Luís Monteiro fechou a sessão salientando que “faltam mecanismos de controlo” sobre a violência praticada no meio praxístico, pois, para o deputado do BE, a praxe “inicia e encerra em si uma série de mecanismos que legitimam” uma prática mais agressiva.

Contudo, Luís Monteiro sublinhou que para resultados mais positivos é importante “trabalhar com todos e todas” para acabar com uma “realidade escondida”.

Artigo editado por Sara Gerivaz