Unem a tradição e a criatividade e refletem histórias: das ruas, dos edifícios e sobretudo das pessoas da cidade do Porto. A imaginação não tem limites nas cascatas de São João. E o sonho também não.

O Porto é um universo com pequenos mundos dentro. Todos os dias se escreve uma nova história e todos os anos se reinventa a tradição, com respeito e com empenho.

As cascatas de São João são um exemplo – quase vivo – disso. O trabalho começa muitas semanas antes. Um pouco por toda a cidade se vão montando estruturas em homenagem a um santo que, apesar de não ser o padroeiro do Porto, alimenta costumes e é festejado na noite de 23 para 24 de junho com muita folia.

Ao certo não se sabe quando é que as cascatas surgiram. Sabe-se que começaram a aparecer à porta dos bairros, construídas “pelos garotos que montavam uma espécie de pequeno altar, com musgo e metiam lá o santo”, conta Germano Silva ao JPN.

Uma viagem ao passado

Nessa altura. a estrutura era muito rudimentar. Apenas contemplava “um pouco de areia no chão, os três santos – São João, São Pedro e Santo António – e pouco mais”. As crianças pediam “um tostãozinho para o São João” porque a vontade era a de ver crescer a cascata: aproveitavam os trocos para comprar mais figuras para o ano seguinte. E assim nasciam histórias.

A tradição começou a enraizar-se e surgiram novos elementos, hoje tidos como fundamentais. Um deles deu até origem ao nome da estrutura: a água. “A água faz parte dos rituais de São João, os banhos de São João nas fontes, nos rios, tomados antes do nascer do sol, para apanhar as orvalhadas e ficar imune a doenças durante o ano”, explica o historiador.

Além disso, a água também funciona como um “elemento purificador”: foi com ela que São João Batista batizou Jesus Cristo, de acordo com a religião católica.

Ainda que muito popular e intimista, a origem da cascata acaba por ser também religiosa. Para Germano Silva, a cascata está para o solstício de verão, como o presépio está para o solstício de inverno. Ambos celebram o nascimento de figuras da Igreja Católica.

Nuno Resende, professor de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), acredita que a própria estrutura da cascata em escadaria é uma “apropriação mais popular das estruturas das igrejas para o espaço público”, lembrando os retábulos e o altar.

Obviamente que a cidade do Porto não fica esquecida: a escadaria demonstra também o próprio relevo da Invicta, que tem “uma configuração muito semelhante à estrutura de escada, de subida”.

Com o passar do tempo, as cascatas foram crescendo. Nunca nenhuma era igual à do ano anterior. As figuras, feitas à mão, eram cuidadosamente montadas por cima do musgo e recriavam uma ou mais comunidades. “De um lado vê-se gente a trabalhar, a lavar roupa no rio, a sachar o campo, a levar o leite e no outro vê-se a procissão, as pessoas na devoção ao São João, no bailarico que tem à volta do coreto e, às vezes, até as fogueiras”, enumera Germano Silva.

Os hábitos das pessoas são explorados e recriados e há também espaço para, de acordo com Nuno Resende, “se fazer uma espécie de sátira popular ou de se mostrar os costumes populares”.

O “toque especial” de cada recriação é dado pelas pessoas que constroem, com afinco, a cascata de São João. “Não é por acaso que, ainda hoje, um dos locais onde se vendem santinhos para a cascata é ao pé dos Clérigos. Era ali, na zona das Taipas, que havia alguns oleiros que faziam as figuras”, relembra Germano Silva.

“Sabemos que em 1869, nas Fontaínhas, foi quando fizeram a primeira grande cascata. É uma cascata diferente, ali aparece apenas a figura do São João a batizar Cristo. Depois a burguesia também começou a fazê-las nos seus quintais, nas traseiras das casas”, continua o cronista do Jornal de Notícias.

À medida que a imaginação da população evoluiu, as cascatas tornaram-se maiores e mais ambiciosas. Os moínhos, outrora parados, começaram a mexer, bem como a lavadeira ou as procissões. “Anos mais tarde, pelos anos 50, quando a Câmara Municipal do Porto (CMP) começou a organizar concursos de cascatas, elas então atingiram o primor”, sustenta Germano.

De acordo com Domingas Vasconcelos, arquiteta e membro do júri do atual concurso de Cascatas de São João da Câmara do Porto, a primeira edição promovida pela autarquia terá sido em 1947.

A tradição terá nascido na zona histórica do Porto, mas rapidamente se espalhou pela cidade. Nuno Resende destaca o “movimento curioso da passagem da tradição do centro para a periferia”, que fez com que a população levasse muitas tradições para outras zonas do Porto.

As histórias dos lugares e das pessoas que habitam esses lugares são o motor das cascatas. De acordo com Nuno Resende, as construções são um “símbolo coletivo” com um “espírito bairrista” que acaba por “criar uma coesão e fortelacer os laços entre os indivíduos da comunidade”.

“Cidades pequenas” dentro de uma cidade maior

“Nas cascatas no Porto há uma espécie de reflexão sobre a própria cidade. As próprias pessoas, ao construírem a cascata estão a recriar uma cidade com uma mistura de elementos oníricos, da memória ou do sonho de cada um, com elementos concretos característicos da cidade do Porto como as pontes, os monumentos, algumas igrejas”, conta ao JPN Domingas Vasconcelos.

A arquiteta, que faz parte já há alguns anos do concurso promovido pela CMP, sublinha que cada cascata é diferente e é uma viagem por entre os lugares da cidade. Em Campanhã, por exemplo, retrata-se a igreja da freguesia e cada zona “dá mais ênfase a certos monumentos”.

Uma cascata não é montada da noite para o dia. Meses antes a construção vai sendo preparada. Norberto Jorge, professor de Escultura da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), explica que além do projeto autoral, feito apenas por uma ou duas pessoas, há também o coletivo que “junta uma comunidade para algo”.

“Estas comunidades e todo este acontecimento à volta da cascata fez com que deixasse de ser tão importante a cascata como elemento final, mas todo o trabalho, todo o processo que leva àquele momento”, considera o também membro do júri do concurso.

A partilha de pensamentos e o contacto entre gerações permite, segundo Domingas Vasconcelos, “contar várias histórias que se cruzam e que acontecem ao mesmo tempo”. Norberto Jorge sublinha que “uma individualidade dentro de um comunitário”, atribui a cada construção um toque único, que se atualiza de acordo com os tempos.

Uma cascata feita de “pessoas reais”

É precisamente com a ideia de destacar o papel de cada pessoa dentro da comunidade, que nasce, pela primeira vez, a Cascata da Gata.

A montra da Papel&Ca, no número 23 da Rua Professor Bento de Jesus Caraça, nas Antas, prende o olhar de por quem lá passa. Pedro Delerue, proprietário do espaço, juntou-se à vizinha Teresa Branco, proprietária da oficina de arte Brâmica e à Bombarda Oficinas de Artes (BOA) para criar uma cascata completamente fora da caixa.

As tradicionais figuras alusivas ao São João são substituídas por um único elemento: as casas. “Uma casa, creio eu que é dos primeiros desenhos que nos pedem para fazer quando nós começamos a ter alguma expressão e essas casas revelam algo de nós, da nossa família, do nosso bem-estar ou não, se tem chaminé, de tem janelas, se tem muitas portas ou se tem portas grandes, se tem janelas abertas, se tem portas fechadas. Aquilo que nós pedimos às pessoas foi que fizessem uma casa, à sua medida. Uma cidade é feita por um conjunto de casas, com realidades completamente diferentes dentro e fora delas”, explica Teresa Branco ao JPN.

A Cascata da Gata, como foi batizada, conta 100 histórias diferentes: 100 pessoas participaram nos ateliês de cerâmica e montaram uma estrutura invulgar. A inspiração para a construção das casas foram as muralhas fernandinas – retangulares de lado e triangulares no topo – e a criatividade tratou de fazer o resto.

“O que é visível é o potencial humano em termos de criatividade. Foi dada a ideia estrutural da casa para que haja um princípio, uma coerência, mas depois dentro dessa coerência, a capacidade de imaginação, a criatividade são imensas. Não há limitação”, sublinha a escultora. Cada casa foi pensada também como um “tealight” e, durante a noite, a montra iluminada mostra os pontos de luz criados.

O relevo da cidade do Porto foi respeitado e, no topo da escadaria, aparece um São João diferente “mais altaneiro e aquele que permite quase ser os Clérigos”. Toda a restante cascata é alternativa, mas igualmente válida. “Achamos que não haveria necessidade de estarmos a fazer mais elementos. Até porque estes são válidos porque são feitos por pessoas reais. São feitos por pessoas que habitam e fundamentalmente amam esta cidade”, defende Teresa Branco.

Além de “contrariar” o passado da cascata de São João, a reinvenção desta estrutura nas Antas veio revolucionar a zona e deixou as pessoas curiosas. Mães trabalharam com filhas, avôs com netos: famílias uniram-se para “dignificar” a cidade.

O objetivo do projeto da Cascata da Gata foi – há semelhança de outros tempos – valorizar a cerâmica. Afinal há mais semelhanças do que, à partida, parecem existir. “As pessoas compram tudo feito e de facto não percebem quais são os ciclos de realização de um objeto e o carinho e dedicação que esse objeto pode ter se for pensado para um determinado fim ou para uma determinada pessoa”, explana.

Já o nome surge, da mesma maneira, para marcar a diferença. Lua, a gata de Pedro, é a protagonista da cascata, uma vez que o seu cesto está na montra, ao lado da estrutura. Além de ser um nome que “fica no ouvido”, o propósito é também defender os animais “que são fundamentais para nós, para o nosso bem-estar, para a nossa atitude mais altruísta”.

A Cascata da Gata vai estar em exposição até ao dia 9 de julho. Após isso, as famílias vão poder levar a sua “casinha” para casa ou entregá-la a uma instituição social a definir. Este foi apenas o primeiro ano – participaram também no concurso de cascatas da CMP – e a ideia é continuar a crescer.

Das mais tradicionais às mais alternativas, há algo que nunca se perde: a tradição, o orgulho, a cooperação entre pessoas. Germano Silva acredita que é uma tradição que não vai desaparecer e concorda com a inovação. “A evolução é necessária e tem de ser mesmo, ou seja, não se pode deixar de perder, têm de se adaptar às situações”, afirma.

As cascatas são um reflexo da cidade do Porto. Contam histórias, renovam-se e atualizam-se.