Em Inglaterra houve quem tenha feito o exercício. O que teria Shakespeare respondido no referendo ao “Brexit”? Há quem duvide que o bardo apoiasse a saída do Reino Unido da União Europeia, mas se alguma coisa o seu “Rei Lear” nos diz sobre a matéria – e dirá seguramente mais – é que as perguntas são feitas para serem respondidas. As respostas não são sempre as que desejamos. E a forma como reagimos a elas, têm consequências.

O ator Jorge Pinto encarna a personagem de Lear na peça que estreia no palco do Teatro Nacional de São João esta quinta-feira, pelas 21h00. Também ele aponta para esse momento inicial em que o rei, por vaidade ou imprudência, decide dividir o território pelas três filhas, fazendo depender a partilha das palavras que cada uma teria para descrever a quantidade de amor que lhe tinham. Cordélia, a mais nova, não aceita entrar no jogo e o “nada” que lhe atira, a verdade que lhe entrega, espoleta a tragédia que se abaterá sobre o reino.

“É engraçado que a moral da história, se a houvesse, era no início e não no fim do espetáculo”, considera o ator que vê essa moral no ato do rei: “O Lear cometeu esta estupidez ou loucura e a peça parte daí, ou seja, a peça não parte da rapariga não querer fazer aquela coisa conveniente que vemos fazer e fazemos no dia a dia”.

“Eu conheci esta peça muito novo, aos 16 ou 17 anos, e às vezes via a peça à espera que a rapariga mudasse de ideias. A sério! Via a peça duas ou três vezes”, confessou ainda o ator que reconhece o “Rei Lear” como a sua peça favorita de Shakespeare.

“Acho que a peça dá para as pessoas sentirem coisas diferentes, quer seja pela idade, quer seja pelo percurso. Acho que um espetáculo tem que ser suficientemente aberto, e nisso este espetáculo é um espetáculo de 2016, não é arqueologia teatral”, resume Jorge Pinto da Ensemble – Sociedade de Atores.

A peça “mais difícil do mundo”

A encenação desta produção, que envolveu o TNSJ, a Ensemble – Sociedade de Atores e o Teatro Municipal de Bragança, ficou a cargo de Rogério de Carvalho. É a estreia do encenador com Shakespeare. Para a Ensemble, a escolha foi um desafio aceite no imediato.

A atriz Emília Silvestre assume nesta peça o papel de assistente de encenação. Diz que “não é por acaso que há muita gente que diz que é a peça mais difícil do mundo”. À frente explica porquê: “Porque estas personagens são muito complexas. Por exemplo, no Moliére as personagens são iguais do princípio ao fim. Têm aquele caráter e mantêm-se do princípio ao fim. Aqui não. O Rei Lear passa deste rei arrogante, insensato, vaidoso, e vai passar por tudo o que é possível em termos de sofrimento, desgosto, de loucura, e ele vai fazer esse percurso nas piores condições, no sentido da sua humanização. Ele deixa de ser rei para ser humano”, explica.

A atriz, que confessa pena por ter ficado fora do palco, aponta ainda para a atualidade da peça, que leva quatro séculos de idade, no momento atual da Europa: “Percebemos o perigo das decisões insensatas de quem está à frente desta Europa e de para onde elas a podem levar. Parece que nunca aprendemos. Mas tem a ver com um certo exercício de poder afastado das pessoas”, atira.

É dessa matéria que se fazem os clássicos, acrescentaria Jorge Pinto: “Não se esgotam porque tratam a humanidade no seu sentido mais profundo”.

O espetáculo vai estar em cena de 30 de junho a 17 de julho. Pode ser visto à quarta-feira, às 19h00, de quinta a sábado, às 21h00, e ao domingo, às 16h00. O preço dos bilhetes varia entre os 7,5 e os 16 euros. A peça vai ser legendada em inglês.

Ainda os 400 anos de Shakespeare

O TNSJ destaca ainda um conjunto de eventos que marcam a celebração dos 400 anos sobre a morte de Shakespeare. Este domingo, 3 de julho, há uma oficina criativa para crianças entre os três e os seis anos para conhecer melhor o autor de “Hamlet” e “Macbeth”, em horário paralelo à sessão de “Rei Lear”.

Para o dia 9 de julho está agendado o lançamento do livro “Rei Lear” com o professor universitário David Antunes, o tradutor Fernando Villas-Boas e Jorge Pinto. Ainda nesse dia, Ana Luísa Amaral encerra o seminário “Shakespeare 400” no TNSJ com a leitura atenta de “A Tempestade”.