Há uma cave na cidade onde nem o vinho do Porto pode entrar. As estantes que tocam o teto não têm espaços em branco, só livros. É Miguel Carneiro quem dá vida às histórias mais antigas que se atropelam entre os títulos. Cresceu no meio das folhas amareladas da livraria da bisavó, mas só há 18 anos tomou as rédeas do negócio. Já muitas páginas lhe tocaram as mãos e deixaram na ponta dos dedos os sete segredos que contou ao JPN no dia em que abriu as portas da cave onde nem a luz do sol pode descer.

1. Onde cabe um livro cabem 50 mil

Diz o ditado que o conhecimento não ocupa lugar e Miguel concorda. Sempre que uma obra nova chega à livraria as estantes “crescem” e arranja-se espaço até nos sítios mais inusitados. O chão fica muitas vezes coberto por um tapete a três dimensões de livros amontoados. “Nós arranjamos sempre espaço, nem que seja livros empilhados num curto período de tempo na parte de cima, na livraria”, garante Miguel.

Uma escadaria apertada conduz ao subsolo onde, em corredores de estantes, os livros estão resguardados dos fatores exteriores que podem levar à sua degradação.

Para além do espaço físico de que os livros tomam conta, também a mente do alfarrabista fica preenchida por um conhecimento que não acaba. “Mesmo tendo aqui à volta de 50 mil títulos, quando vou ver uma biblioteca encontro sempre livros que nunca tive, ou seja, é um conhecimento contínuo e muitas vezes tenho que consultar catálogos ou ver mesmo na “net” para saber o que é que aquele livro trata”.

2. Uma pessoa é feita do que leu e do que viveu

As leituras fazem parte da vida de Miguel desde que se conhece e é pelo amor pelas páginas amareladas que encara o trabalho como uma adição. “É um bom vício. As oito horas de trabalho não me custam nada a passar. Gosto muito do que faço e felizmente tenho a sorte de fazer o que gosto.”

Miguel confessa que quando conhece a biblioteca de alguém consegue entrar na intimidade do proprietário. “Ao ver a biblioteca de uma pessoa consigo imaginar o que é que o dono da biblioteca gostava mais e o que lhe interessava mais. A pessoa quanto a mim é feita de várias coisas, mas essencialmente de duas: do que leu e do que viveu. Isso não há dúvida que marca a forma de ser e a forma de estar de uma pessoa.”.

3. Livro usado não é sinónimo de livro antigo

A linha que define se um livro é usado ou antigo é muito ténue, mas Miguel Carneiro afirma que há diferenças. “Embora o livro usado possa ser bastante antigo não é tão valioso.”

Os motivos que levam os clientes a procurar livros usados e livros antigos são também diferentes. “Em relação ao livro usado, [a motivação] é conseguir por um custo mais baixo ter acesso aos mesmos conteúdos. As pessoas conseguem ter uma biblioteca melhor sem gastar tanto.”

Já no que diz respeito aos livros antigos o que importa para os compradores é a História e o percurso do livro até chegar às suas mãos. “São primeiras edições, são edições que têm um prefácio de um escritor ou de um político, um prefácio especial que valoriza aquele livro ou aquela edição. Para não falar da importância das fotografias. O fascínio pelo livro antigo é o bichinho de ter uma obra rara, uma obra que se ouviu falar. Já é uma coisa mais pessoal.”

4. O que é nacional é “boom”

A procura de obras portuguesas sempre foi recorrente, mas o alfarrabista assegura que nos últimos tempos tem crescido. “As pessoas procuram sobretudo livros de autores portugueses, primeiras edições, sem dúvida. Nós nesta altura não temos muito, porque como são muito procurados quando aparecem vão com muita facilidade.”.

De todos os nomes da literatura portuguesa há um que ecoa na cave: Camilo Castelo Branco. “Nós somos especializados em Camilo, temos uma longa tradição de obras de Camilo e não há dúvida que as pessoas que vêm cá comprar Camilo querem mesmo ter uma primeira edição, uma edição que é mais ou menos rara, mas que é de Camilo.”

Miguel admite ter clientes viciados em adquirir livros independentemente da raridade das obras. “Muitas pessoas adquirem para ter e não para ler. Gostam de ter um livro original nas suas bibliotecas, é um sentimento de posse e talvez seja por isso que o livro nunca vai acabar, porque há uma grande afetividade entre o ser humano e o livro.”

5. Um livro ganha “valor” quando é partilhado

A Moreira da Costa tem livros desde um euro até milhares. O mais caro é uma obra publicada no século XVIII, a “Enciclopédia de Diderot D’alembert”, mas para Miguel o valor real de um livro não depende de quanto custa. “Eu tinha uma livraria muito bem recheada e afeiçoei-me a todos os livros não pelo valor monetário, mas pelo valor que eles me transmitiam no sentido histórico e acabei por saber que tenho que partilhar alguns desses livros com os clientes.”.

Foi esta filosofia que levou Miguel a vender o primeiro livro que comprou, uma primeira edição d’Os Lusíadas. “Passado quinze anos apareceu-me outro exemplar e eu pus em catálogo à venda e houve um cliente que me ligou a perguntar se eu ainda o tinha. Só que o exemplar que estava em catálogo já estava vendido e eu disse que ainda tinha um exemplar meu. Contei-lhe a história de que era o primeiro livro que comprei e ele disse: ‘Mas já tem há tantos anos o livro que pode partilhá-lo comigo. Pode-me vender o livro’ e eu assim fiz.”

6. A missão de um alfarrabista é resgatar memórias

Recuperar momentos do passado é o que move muitos amantes de livros antigos e Miguel Carneiro acredita que muitos clientes usam os alfarrabistas para se sentirem crianças outra vez. “Eu tenho quase a certeza que é o gosto, que não se pode perder, da infância, de se ouvir contar histórias. Depois as pessoas começam a ler e depois vão ganhando esse gosto, esse hábito.”

Tal como existe quem goste de comprar um vinho produzido num ano especial há quem faça o mesmo com os livros “Os alfarrabistas servem mesmo para isso: para resgatar memórias. Há pessoas que leram um livro há muitos anos e que querem voltar a ler, há pessoas que querem oferecer um livro que gostaram a um familiar, há mesmo muitas histórias, quase tantas como a quantidade de livros que tenho.”

7. No reinventar é que está o ganho

A livraria Moreira da Costa atravessou um século e vários regimes políticos, mas manteve durante muitos anos o espírito de partilha. “As pessoas paravam cá. Havia mais tempo, trocavam ideias entre elas, quer sobre livros, quer sobre política, sobre todos os campos. A livraria já passou pela monarquia, já esteve na República, já esteve no Estado Novo, está novamente na República e manteve-se sempre.”

Com o passar do tempo foram-se perdendo as tertúlias na cave e as vendas ao balcão. A maior parte do negócio é feito pela internet e as vendas na loja são sobretudo a turistas, mas Miguel Carneiro não vê essa mudança como um problema e acredita que, tal como a indústria livreira o fez, o negócio dos alfarrabistas tem que se adaptar. “O livro não nasceu há cinco nem há dez anos, já nasceu há 500 e ainda está vivo e de boa saúde. É preciso reinventarmo-nos, moldarmo-nos aos dias de hoje.”

Artigo editado por Filipa Silva