Foi com as primeiras linhas, do primeiro poema, do primeiro livro, publicado em 1996, seguidas das últimas linhas da sua mais recente obra, “Homens imprudentemente poéticos”, que começou o lançamento do novo romance de Valter Hugo Mãe, este domingo, na Casa da Música.

Pelas 17h30, a sessão mais aguardada do dia – que contou ainda com uma atuação de Teresa Salgueiro, e a sua banda, e com a estreia do “trailer” do filme “O Sentido da Vida”, do realizador de “José e Pilar”, Miguel Gonçalves Mendes – levou mil pessoas à sala Suggia para assistir a uma conversa entre a jornalista Teresa Sampaio e Valter Hugo Mãe.

O escritor celebra este ano 20 anos de carreira, mas garante que não dá muita importância à comemoração de efemérides: “Não sou muito de datas. Tenho uma ou outra na cabeça.”

Inconfidências

O autor confidenciou, perante uma plateia lotada, que o envelhecimento tranquiliza-o, que há qualquer coisa nele que o apazigua: “Ao contrário de ficarmos sós, agredidos, ofendidos, com dores de costas e reumatismo. Embora o envelhecimento tenha essa componente, também nos desimporta de muita estupidez.”

A espiritualidade, “que não precisa de ser uma miséria”, o medo ou a desgraça dos milionários, “a desgraça de quem tem tudo”, que cada vez mais conhece, foram apenas alguns assuntos abordados na conversa, de hora e meia, entre a jornalista e o escritor.

O escritor, de 45 anos, reconheceu que algumas histórias de encantar dão-lhe náuseas. “Não adianta muito ficar a efabular ou a exigir da vida coisas mais indefinidas como se fossemos todos viver uma história encantada.”

A propósito dos livros que escreve, Valter frisou que condena a factualidade. E que, portanto, não lhe interessa reportar coisas que existam verdadeiramente, porque a literatura, segundo a sua ótica, não foi criada para isso. “A literatura tem que ver com o caminharmos por um espaço único, que não está em lado nenhum, que só está no livro”, adianta.

Nem sempre fica contente com o que escreve quando concebe um livro. Quando se desilude, afasta-o e recomeça a escrevê-lo ou simplesmente desiste, independentemente da quantidade de páginas redigidas. Para Valter Hugo Mãe, a pulsão tem de ser “tão espontânea quanto possível. ”

Valter Hugo Mãe e as Caxinas

“Ser escritor das Caxinas é uma das minha causas.” O autor, que salientou as condições de trabalho de quem lá vive, “ligadas ao trabalho mais braçal, mais físico,” não deixa de se identificar com o lugar “de profundo sofrimento, onde trabalhar significa trabalhar demasiado”, onde cresceu e onde vive atualmente.

Aquela zona de Vila do Conde, “cidade absolutamente esplendorosa” e “joia perfeita que se conseguiu manter inalterada”, contrasta com as suas Caxinas, que já sofreram estragos.

O escritor vilacondense condenou as sucessivas “palermices urbanísticas” que as Caxinas têm sofrido, sobretudo, nos últimos anos, acusando o poder político de abusar da incapacidade de defesa das suas gentes, onde “as pessoas são menos preparadas para a defesa dos seus direitos”, e que fazem, para Valter, das Caxinas um lugar menosprezado de Vila do Conde. “Qualquer dia, se me enervo, venho para o Porto”, remata.

O fascínio por Teresa Salgueiro

Valter Hugo Mãe não esconde que, desde 1988, tem um fascínio de menino por Teresa Salgueiro. O autor paulatinamente desdobrou um conjunto de atributos que o fazem ficar absorto perante a intérprete e reforçou o convite para que estivesse presente e apresentasse os temas que bem entendesse.

“A voz, a música, o património que ela [Teresa] representa, o tesouro que representam os Madredeus, o seu percurso a solo, a profunda delicadeza do seu jeito”, são apenas algumas das muitas considerações elogiosas que não se coíbe de atribuir à cantora portuguesa que considera ter uma “voz sagrada” e “uma presença cristalina”.

Em declarações ao JPN, Teresa Salgueiro afirmou ter pena de não ter ouvido as palavras do escritor: “Estou muito grata por ele me ter convidado a estar presente, por me ter incluído nesse abraço”, declarou.

Teresa Salgueiro adiantou ainda que Valter Hugo Mãe enviou “um belíssimo poema” para que musicasse, mas que o poema chegou quando já não estava em estúdio. “Há ali um encontro por fazer. Gostaria muito de poder ir ao encontro dessa ideia.”

O novo romance

O novo romance, “Homens imprudentemente poéticos”, passa-se no Japão antigo, o que se pode explicar pelo facto do Japão ser “uma nação cuja cultura historicamente se encerra em si mesma, se procura proteger.”

Para o autor, não há dúvidas que “o Japão conseguiu disciplinar-se na sua vontade de solidão, de não ser contaminado por outras culturas e pela presença de outros povos” e é isso que pode ser visto na sua nova obra. O livro chega esta segunda-feira às livrarias de todo o país.

Em jeito de despedida, Valter lançou um repto aos leitores. “É das tristezas mais profundas dos escritores pensar que as pessoas vão levar os livros para casa e nem sequer vão notar nas passagens mais bonitas porque estão preocupadas com a Teresa Guilherme. E eu até sei que a Teresa Guilherme tem uns vestidos giros”, finalizou.

A Academia sobre a obra de Valter Hugo Mãe

A conversa informal que precedeu a sessão de lançamento reuniu académicos de diversas áreas, num livro, e foi dirigida por Sérgio Almeida, que admitiu que Valter Hugo Mãe mantém duas características que tinha, há alguns anos, quando entrevistou pela primeira vez o, na altura, “jovem poeta”: “o forte compromisso com a escrita” e “uma visão encantada do mundo”. Para o jornalista do “Jornal de Notícias”, que acompanha jornalísticamente a obra do autor, é reconfortante saber que Valter mantém essas duas “virtudes”.

“Nenhuma palavra é exata” reúne 37 textos de académicos ou 38 (se se considerar a introdução) relacionados com a vasta obra de Valter Hugo Mãe. Carlos Nogueira, autor do livro, explica que o processo de criação foi moroso, uma vez que exigiu um diálogo extensivo com os vários autores, e de uma forma muito próxima. “Não escolhi pessoas que escreviam de forma hermética, mas com isto não quero dizer que estes textos não sejam densos. São textos que aliam a densidade à profundidade.”

O volume foca-se nas dezenas de ensaios e artigos académicos que incidem no romance e na poesia, mas também na literatura para a infância e juventude, na crónica, esse “género fortíssimo, algo marginalizado e onde Valter Hugo Mãe põe muito daquilo quanto ele é enquanto pessoa e enquanto escritor” e no teatro, parte incontornável da sua obra. “Seria injusto não implicar também outras áreas”, notou Carlos Nogueira.

O autor da obra salienta que este não se trata de um livro de homenagem ao escritor, que comemora os 25 anos de carreira, e que não é apenas dirigido a académicos, mas a um público vasto. “O público dito culto não é apenas constituído por eruditos, mas pelo público em geral: por pessoas que gostam de ler, que gostam de literatura e que gostam também de perceber alguns aspetos das obras que leem.”

No fim, Valter Hugo Mãe agradeceu a dedicação: “Imagino que todos vocês tenham sofrido.”

Para além da sessão de lançamento do novo romance e da conversa em torno do livro “Nenhuma palavra é exata”, o evento contou, de manhã, com duas sessões de horas do conto, dedicadas às crianças, e à tarde com uma espécie de “clubbing” literário, pelos vários espaços da Casa da Música, com uma série de autores a ler excertos do novo romance de Valter Hugo Mãe.

Artigo editado por Filipa Silva