O projeto “Cão à Chuva” foi fundado em 2015, assim que Rui Paixão terminou o curso de Interpretação, na Academia Contemporânea do Espetáculo, no Porto.

As propostas de trabalho dentro do teatro convencional não lhe agradaram, porque percebeu desde cedo que “se aceitasse aquele tipo de trabalhos ia começar a ficar preso e não ia conseguir fazer nada do que gostava”. Por este motivo decidiu fundar o “Cão à Chuva”, com a ajuda de Carlos, o responsável pela música ao vivo e toda a sonoplastia.

O projeto nasceu como “um conceito mais do que um projeto artístico, um dog in the rain como o Tom Waits diz”. O intérprete define-se como “alguém que prescinde de tudo e que faz apenas o que sente vontade de fazer”. Uma forma de vida que o motivou a participar numa das audições do Cirque du Soleil. Foi o primeiro palhaço português a ser selecionado nesta companhia de grande escala, em 2015.

A evolução do projeto “foi uma loucura”. Depois da participação, em 2015, no Imaginarius, Festival Internacional de Teatro de Rua, “houve um ‘boom’” que os direccionou para o Circada, em Sevilha. Foram considerados a revelação do Imaginarius e “sendo o Imaginarius um dos melhores e o maior festival de artes de rua do país, este é um prémio que, em Portugal, não há outro igual”. Conseguiram ainda o prémio Off Circada Unia, destinado a artistas emergentes, em Sevilha.

Esse momento, “funcionou como uma bola de neve”. Em todos os espetáculos, Rui Paixão criou contactos que lhe permitiram apresentar o seu trabalho ao nível internacional.

A temática das suas criações tem sido muito variada. Em 2015, estrearam “Lullaby, “centrada na questão de um ser que prescinde de tudo na vida, seguindo a ideia de que só podemos ter tudo quando não tivermos nada.” Depois, a criação “Pozzo, “um espetáculo de média dimensão centrado na política, que usa máscaras e tem outras caraterísticas mais apropriadas à sala e não à rua”. A seguir, criaram “Vincent”, “um menino selvagem, que foi criado por um grupo de lobos e depois recuperado por cientistas”, que estreou no Imaginarius, em 2016.

Neste momento, decorrem os últimos ensaios da quarta criação, “A Velha”, que será sobre um texto surrealista de Daniil Harms, “completamente diferente de todos os outros espetáculos”. Vão prescindir de tudo o que é estético, “vai ser algo muito mais simples e muito mais dedicado ao corpo e ao minimalismo para atingir o tal surrealismo”. É a primeira criação que conta com “alguém de fora para dirigir”, Rodrigo Santos. Vai estrear este sábado, 19 de novembro, às 22h00, no Cineteatro António Lamoso, em Santa Maria da Feira. No dia seguinte, domingo, Rui Paixão vai apresentar uma nova performance a solo, “Scream”, no Festival Internacional de Solos, na Póvoa de Varzim.

 

A criação que mais marcou o intérprete foi a primeira, “Lullaby”, porque “a primeira marca sempre muito mais, foi aquela que mais deu coragem”. Coragem foi, aliás, o que precisou para avançar com o projeto, até porque chegou a despedir-se de uma companhia de teatro e recusou bastantes projetos para se “dedicar a algo que não sabia se ia resultar”.

Verde é a cor de Paixão

Rui Paixão nunca teve formação em clown, nem “tinha um curso de artes de rua”. Acabou a fazer um curso de teatro, mas decidiu fazer clown e artes de rua. “Foi complexo”, onta.

O palhaço deste projeto “tem cabelo verde e cara pintada, é muito visual e mistura pintura e performance”. Rui Paixão diz que a pintura que aplica ao palhaço é “inspirada no kabuki, um teatro oriental japonês, que trabalha muito a pintura, a dramaturgia das cores”. Neste sentido, “o verde não está no palhaço só porque sim, tem um significado de podridão, algo que está a apodrecer, que está morto.” Afirma que foi importante, no primeiro espetáculo, “o cabelo verde caraterizar o palhaço, porque acreditava muito que o palhaço de nariz vermelho, tinha de morrer.” Acredita que é preciso encontrar algo novo e “por isso, é que nasce o verde.”

Rui Paixão

Rui Paixão | Foto: D.R.

Trata da sua própria caraterização, que demora, em média, trinta minutos, “porque também é processo, é aquele momento relaxado que depois impele a colocar uma certa vibração na rua.”

Rui Paixão diz que “um palhaço não é um animador”. É preciso separar o conceito de animação sociocultural do conceito de palhaço. Faz também distinção entre um palhaço convencional e um palhaço contemporâneo. O palhaço convencional “carateriza-se muito pelos clichés a que já estamos habituados, como por exemplo, as cascas de banana, para além de ser muito associado à parvoíce”. Acredita que “o palhaço moderno deve ser algo completamente diferente. Não é comédia, mas sim a expressão de um estado de espírito, aquilo que o intérprete quer ser, um estado de liberdade.” Diz que tudo isto “é mais importante do que um nariz vermelho.” “O palhaço não deve ter nada sagrado, porque quando se prende a alguma coisa, perde a sua essência”, defende.

Rui Paixão considera que as artes atravessam um período de saturação e cansaço.  De tanto falar de dinheiro e meios, ambos escassos, o artista vê-se consumido ao ponto “de esquecer aquilo que realmente se quer fazer, que é arte.” O teatro, na opinião do criador, está a tornar-se cada vez mais monocórdico, “os mesmos textos, um teatro do facilitismo.”

Os espetáculos do “Cão à Chuva” nunca têm texto, “porque a palavra está muito esgotada, no dia a dia”. A ideia é “deixar nascer uma nova forma de comunicação”. Do que Rui paixão não prescinde é de ter música ao vivo, a qual serve para realçar a sensação de estar tudo a acontecer no momento e de todos os espetáculos serem diferentes.

O projeto trabalha em duas frentes. O espetáculo está todo pensado e sabem muito bem aquilo que querem fazer e transmitir, mas no momento em que passam para o palco ou para a partilha com o público, deixam que aconteça uma improvisação. Acreditam que “o ato de fazer um espetáculo deve manter-se como um organismo vivo, por isso a criação do espetáculo continua no próprio instante em que ele é apresentado”.

Espetáculo na rua

Espetáculo na rua | Foto: D.R.

O protagonista do “Cão à Chuva” não consegue inserir o seu projeto numa vertente artística específica. Considera que “no século em que estamos, as vertentes artísticas começam a diluir-se e já não interessa o que é, em concreto”.

“Tudo acontece no tempo certo”

Rui Paixão dedica-se quase a 100% ao “Cão à Chuva”, mas também colabora com a companhia Radar 360, uma companhia sediada no Porto, de circo contemporâneo, teatro físico e teatro de rua, especialmente. O ano que agora corre define-o como um ano de crescimento, no qual passaram a contar com mais uma ajuda, de Manuel Abrantes, que faz todo o desenho de luz ao vivo, nos espetáculos de sala. Cristóvão Neto passou também a colaborar e é responsável por todas as peças cenográficas.

Para todos aqueles que desejam criar um projeto com sucesso, o intérprete aconselha “ter muita calma e paciência, porque tudo acontece no tempo certo.” Para Rui Paixão “foi muito simples”. Um dia, leu o texto “À espera de Godot”, de Samuel Beckett, “para quem não sabe, são duas personagens que estão à espera de Godot numa estrada, mas ele nunca mais chega.” Explica que “no dia a seguir, voltam à mesma estrada e fazem sempre isto da vida, estão à espera de Godot.” Percebeu a mensagem e decidiu que a lei que aplicaria à sua vida seria a de não esperar. “Don’t wait for Godot”. Tudo o que fez até agora não foi porque alguém lhe “bateu nas costas e propôs um espetáculo”. Para todos eles “foi atrás, bater às portas”.

Artigo editado por Filipa Silva