A equipa de académicos liderada por Rui Nunes, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), provocou boas reações num concurso internacional da UNESCO, dedicado à bioética, e realizado em outubro de 2016.

O primeiro prémio, arrecadado entre 120 países concorrentes, provava que a proposta portuguesa tinha a possibilidade de ir mais longe. O documento, aparentemente simples, suscitou o interesse de especialistas de todo o mundo: uma Declaração Universal de Igualdade de Género.

Foi este reconhecimento internacional que os motivou a ir mais além. Na passada sexta-feira, e depois de consultadas várias pessoas e entidades nacionais, a Declaração Universal de Igualdade de Género chegou à UNESCO para aprovação. Seguem-se três meses de discussão pública na sede desta instituição. O JPN falou com Rui Nunes, o coordenador da equipa portuguesa.

JPN: O que é exatamente esta Declaração Universal de Igualdade de Género?
Rui Nunes: Trata-se de uma proposta feita por um grupo de investigadores e professores portugueses. A maior parte são da Universidade do Porto, mas também participam pessoas de outras escolas, como por exemplo, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Estas pessoas entenderam que seria seu dever apresentar este documento para eventual aprovação pela UNESCO. O projeto surge como um conjunto de ideais e valores que, por um lado, já estão plasmados nas convenções internacionais subscritas por Portugal como a Declaração Universal dos Direitos Humanos; por outro, são valores civilizacionais que podem estar parcialmente ameaçados. As convenções internacionais da UNESCO e ONU confirmam os valores da igualdade de género, no entanto, a ameaça parcial sob alguns deles justifica uma promoção maior.

“Uma das primeiras áreas a ser tratada é a educação, ou seja, a garantia de um serviço de qualidade para todos, seja na educação mais tradicional ou na educação para a saúde, como o planeamento familiar.

O documento demorou quanto tempo a ser preparado?
Demorou cerca de seis meses. Para além da conjuntura atual, o projeto é o reflexo de um concurso internacional feito no âmbito da Cátedra de Bioética da UNESCO, de Haifa – a maior rede internacional de bioética do mundo com cerca de 130 pólos espalhados por vários países. O nosso grupo de investigadores concorreu com esta proposta, a da Declaração Universal da Igualdade de Género, e ganhamos o primeiro prémio. Foi este acontecimento que nos motivou, embora já tivéssemos confiança no conjunto de ideais e princípios redigidos. A recetividade da comunidade internacional, no que toca à bioética e aos direitos humanos, fez-nos crer que a Declaração Universal da Igualdade de Género era uma boa ideia.

Qual a dimensão da equipa de investigadores?
No total, somos sete pessoas. Porém, foi necessário um trabalho árduo de um conjunto alargado de pessoas, ainda antes da elaboração do projeto propriamente dito: pedimos opiniões e realizámos inquéritos a todos os centros de bioética da UNESCO. A proposta foi enviada para a Comissão Nacional da UNESCO, na expectativa de a apresentarmos e discutirmos na sede desta organização, em Paris.

Que tipo de artigos estão presentes na Declaração Universal da Igualdade de Género?
O documento está dividido em duas partes. A primeira parte tem os princípios gerais da justiça, da equidade e da igualdade. Depois, numa segunda parte, estes três pontos são desenvolvidos em artigos mais específicos. Uma das primeiras áreas a ser tratada é a educação, ou seja, a garantia de um serviço de qualidade para todos, seja na educação mais tradicional ou na educação para a saúde, como o planeamento familiar. O objetivo é garantir que independentemente de ser homem ou mulher, todos tenham acesso a este direito. O outro eixo relaciona-se com o acesso à saúde. Em Portugal, vivemos num oásis nesta matéria. Porém, isto é uma declaração universal. Tanto é para Portugal, como o é para a China, Angola, Timor, Nigéria, Austrália e Rússia. Temos de ter consciência que o acesso à saúde em alguns países é muito discriminatório.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos já engloba a igualdade de género. Este documento que foi apresentado à UNESCO não corre o perigo de ser redundante?
Não, de maneira nenhuma. Da mesma forma que temos a Declaração de Direitos Humanos e outras declarações da UNESCO, a proposta da Declaração Universal da Igualdade de Género vai englobar os direitos universais e os aspetos mais específicos deste tema. Como por exemplo, a saúde, o ambiente laboral, a família, a sociedade, o acesso a cargos da administração pública, a igualdade salarial e de progressão na carreira, entre outros. Todas estas dimensões não estão articuladas em nenhum documento à escala internacional. Provavelmente, existirão artigos semelhantes noutras declarações. Não estamos a inventar nada de novo. Porém, não deixa de ser uma proposta original ao reunir todos os artigos numa declaração comum.

Podem existir dificuldades à aprovação do documento?
Não tenho dúvidas de que existirão resistências à sua aprovação no plano internacional. Os princípios na teoria são geralmente aceites por todos. Depois quando são aplicados ao terreno, é que já é mais complicado, especialmente em determinadas culturas e civilizações. A ideia principal é a de que estes princípios deixem sementes pelo caminho.

“Acredito que vale a pena aprovar uma declaração como esta. Seria benéfico para a humanidade”

A igualdade de género é cada vez mais discutida. Os investigadores podem tirar proveito desta tendência?
Claro que sim. As sociedades têm tempos próprios, mas eu não colocaria a tendência dessa forma. É verdade que o discurso da igualdade, justiça e solidariedade está mais vivo. Isso beneficia a retórica da igualdade de género. No entanto, temos de entender que em algumas culturas civilizadas, paradoxalmente, a igualdade de género está a ser colocada em causa. Veja-se, por exemplo, o que está a acontecer nos Estados Unidos e veremos o que vai acontecer este ano naquele que é considerado o país mais desenvolvido economicamente e não só. Não podemos dar por adquirida a conquista de determinados valores, porque eles podem estar ameaçados a curto prazo.

Quais são as expectativas face ao desfecho da proposta da Declaração Universal da Igualdade de Género?
A expectativa é que a diretora-geral da UNESCO receba a proposta com todo o interesse. É uma pessoa que colocou a questão da igualdade de género na sua agenda. E se tudo correr bem, existem todas as condições para que a proposta seja aprovada ao longo deste ano. Isto é uma simples proposta e compete aos órgãos próprios decidir sobre o documento. Acredito que vale a pena aprovar uma declaração como esta. Seria benéfico para a humanidade, pois permitiria levar a igualdade de género a países onde ainda é uma miragem.