Não sabemos se Marc van Basten alguma vez pensou num epitáfio, mas a julgar pelas reações que mereceu a sua sugestão de acabar com o fora de jogo, bem que poderia ser: “Aqui jaz o homem que acabou com o futebol como o conhecíamos”. Exagero? Os amantes do jogo dizem que não.
Sejamos claros: não há uma proposta concreta para acabar com o fora de jogo em análise no International Football Association Board (IFAB), o organismo que manda nas Leis do Jogo e por quem passaria uma decisão desta natureza (a próxima reunião anual está marcada para março).
O que há é uma entrevista dada pela antiga lenda do futebol holandês e italiano, ao alemão “Sport Bild”, na qual Marco van Basten, agora diretor para o desenvolvimento técnico da FIFA, aborda um conjunto de medidas que, na sua opinião, poderiam melhorar o jogo.
A primeira das 10 que mencionou bastou para fazer levantar adeptos e treinadores dos bancos. “Esta é a minha opinião pessoal. Tenho muita curiosidade por saber como seria o futebol sem foras-do-jogo. É evidente que muita gente vai estar contra esta medida, mas eu seria favorável, porque o futebol está cada vez mais parecido com o andebol, com equipas a erguerem muros à frente da baliza”, declarou à revista.
“Eu estou horrorizado”
Encontramos Vítor Frade na faculdade onde foi 35 anos professor. O metodólogo, que nunca deixou de estar no terreno, em clubes como o FC Porto, o Boavista ou o Rio Ave, e que inspirou muitos treinadores, de José Mourinho a Vítor Pereira, mostra-se revoltado.
Diz-nos que não é comum falar com a comunicação social, mas decidiu abrir uma exceção. Afinal, na sua opinião, a hipótese levantada por van Basten “é uma aberração”. “Eu não posso ficar sem fazer nada porque é um tsunami no jogo, se isto for para a frente”, sublinha.
Além de se opôr terminantemente à ideia, Vítor Frade também aponta a contradição: “As propostas têm que ser analisadas em função de uma hierarquização. A primeira é o fora de jogo. Ora, sem fora de jogo, quase nem faz sentido falar nas outras. Porquê? Porque ele pensou as outras para o futebol que ele quer fazer desaparecer!”
Para o antigo professor da FADEUP, a regra do fora de jogo não é “uma”. É “a” lei fundamental do futebol. “Espero que a revolta dos treinadores seja suficiente para evidenciar que isto é uma aberração. Neste sentido: passa a ser outra coisa”.
Ricardo Ferreira, criador do blogue “Saber Sobre o Saber Treinar”, é da mesma opinião. Confesso “apaixonado pelo jogo”, sobretudo nas dimensões tática e metodológica do treino, admite que “futebol sem fora de jogo seria claramente outro jogo”, menos interessante na sua opinião.
O técnico em escalões de formação entende que há uma ideia “falaciosa” de que as equipas ditas defensivas são beneficiadas pelo fora de jogo. Ora, o que antevê é que “a ausência do fora de jogo vai agravar o comportamento das equipas com esta mentalidade e estratégia, baixando ainda mais o seu bloco, de forma a ocupar o espaço entre este e o guarda-redes e proteger a sua baliza”.
Nas consequências que uma medida destas teria para o jogo, perspetiva ainda duas alterações fundamentais: “Sem fora de jogo, as equipas mais ambiciosas, que procuram roubar a bola ao adversário pressionando alto no campo, teriam muito mais espaço para defender, e desta forma só o poderiam fazer através da defesa individual. E este seria outro enorme problema que a ausência da regra iria trazer, porque como também foi defendido por vários treinadores nos últimos dias, a regra do fora de jogo permite que as equipas defendam com inteligência, de forma colectiva, em função da bola e do espaço”.
Por último, e contrariando um presumível objetivo da mudança – proporcionar mais golos – Ricardo Ferreira alerta para a possibilidade de aumentar o jogo passivo na circulação de bola da equipa que alcance uma vantagem.
“Este foi um problema com que o basquetebol, hóquei em patins e andebol, por exemplo, se confrontaram na sua evolução, assim, rapidamente teriam que se encontrar novas regras para responder a estas questões”, analisa.
Em resumo, perspetiva “um jogo completamente partido”, com muitos jogadores junto às balizas “e outros a disputar a sua posse pelo campo todo”. Uma defesa individual e um comportamento ofensivo pautado pelo jogo direto e pela posse de bola passiva para controlar vantagens.
Pedro Bouças, treinador de futebol e fundador do site “Lateral Esquerdo”, está em sintonia e conclui: “Muito daquilo que é o jogo nos dias de hoje é determinado por essa lei específica. Quer processos ofensivos quer defensivos estão trabalhados e condicionados pelo fora de jogo. Mudar uma lei tão importante seria mudar o jogo, e muito honestamente, o jogo é demasiado belo para que se resolva estragá-lo”.
As vantagens da regra
“Há uma diferença muito grande entre um grupo e um conjunto de pessoas na paragem de autocarro. Isso não é um grupo! E nos inícios do futebol, o lado coletivo era muito pouco marcante. Uma das causas fundamentais para ser pouco marcante, era a inexistência do fora de jogo”, explica Vítor Frade.
A regra, que vem dos primeiros tempos do futebol, mas que foi sofrendo alterações (ver caixa), beneficia, se é que não alimenta, a essência coletiva do jogo.
“A lei do fora de jogo tem para mim duas grandes vantagens. Permite que as equipas defendam, organizadas e compactas no meio-campo adversário, podendo assim pressionar a equipa contrária e provocar-lhes o erro”. Em segundo lugar, “esta abordagem possibilita-lhes que defendam de forma inteligente e coletiva, não as mantendo ‘reféns’ dos comportamentos adversários e dos problemas subjacentes da marcação individual”, refere Ricardo Ferreira.
A “armadilha” do fora de jogo
Na história do futebol, o fora de jogo virou tática pela sua importância estratégica. A também designada “armadilha” do fora de jogo terá sido primordialmente explorada pelo Newcastle nos anos 20 do século passado, tendo sido responsável, segundo o jornalista britânico Jonathan Wilson, pela introdução de uma grande mudança na lei nessa altura: para estar em fora de jogo, já não eram precisos três adversários à frente do avançado, mas somente dois. O futebol precisava de mais golos.
Luís Freitas Lobo, no seu livro “Planeta do Futebol”, atribui o crédito ao fracês Pierre Sinibaldi, cuja estratégia de defesa em linha terá sido responsável pela vitória do modesto Anderlecht sobre o Real Madrid de Di Stefano numa eliminatória da Taça dos Campeões Europeus em 1963.
Como Ricardo Ferreira escreve no seu blogue, o fora de jogo foi fundamental no “futebol total” do holandês Rinus Michels, princípio também adotado pelo seu pupilo maior Johan Cruyff ou, avançando para tempos mais próximos, no Barcelona de Pep Guardiola.
Ao JPN, o técnico destaca contudo outro nome como mestre no uso desta tática: “Arrigo Sacchi. O seu AC Milan foi disruptivo e empurrou o jogo para outro patamar evolutivo, apresentando pela primeira vez alguns dos conceitos que falei antes. Exploravam a regra do fora de jogo como ninguém o tinha feito até então”.
Estavamos em finais dos anos 80 e de novo se pensou que era preciso beneficiar o ataque. A partir de 1990 estar em linha com o penúltimo defesa deixou de ser considerado fora de jogo.
Sobre possíveis alterações à lei que hoje é aplicada – a última grande alteração data de 2005 – as opiniões dividem-se. Vítor Frade e Pedro Bouças consideram que, como está, a lei está bem. Já Ricardo Ferreira acha que é preciso clarificar, ainda mais – ou talvez melhor – “a questão do fora de jogo posicional”, dando como exemplo prático recente o terceiro golo marcado pelo Boavista ao Benfica na Luz. “É uma situação dúbia que se passa com alguma frequência e condiciona tacticamente as equipas”, afirma.
Introduzir tecnologia para aferir o fora de jogo também é admitido pelo técnico, apesar de ser “sensível ao argumento de manter o fator humano”.
Momentos mais importantes na evolução da Lei 11
1863 – É criada a Football Association e com ela as primeiras “Leis do Jogo”, muito embora tenham havido tentativas anteriores. O fora de jogo é logo aqui considerado e com um critério apertado: estava em fora de jogo todo o jogador que, em posição de ataque, estivesse à frente da linha da bola;
1866 – A regra causa muitos protestos; Adota-se a lei de fora de jogo prevista nas “Regras de Cambridge” (escritas em 1848): para estar em jogo, o avançado tem de ter pela frente três adversários além da bola entre ele e a linha de baliza contrária;
1873 – A posição de fora de jogo passa a ser avaliada no momento do passe e não quando o avançado recebe a bola;
1903 – É introduzida na lei a “interferência” na jogada; Não basta estar em posição de fora de jogo, passa a ser preciso que o jogador tenha parte ativa na jogada;
1925 – Para favorecer o ataque, diminui-se de três para dois o número de adversários que têm de estar entre o elemento mais avançado de uma equipa e a linha de golo do opositor;
1990 – Estar em linha com o penúltimo defesa deixa de ser considerado fora de jogo;
2005 – Nete ano, as alteraç ões vêm precisar que um jogador só está em fora de jogo se alguma parte do seu corpo com a qual possa jogar a bola (braços não contam) estiver à frente do penúltimo adversário; São ainda introduzidas alterações significativas na forma como deve ser avaliada a “interferência” de um jogador em situação de fora de jogo posicional; A avaliação deste aspeto tem sido, aliás, alvo de alterações até aos dias de hoje.
A formulação atual pode ser consultada na tradução autorizada das “Leis do Jogo” para português aqui.
Pedro Bouças, olhando às restantes hipóteses formuladas por van Basten vê interesse numa: “a paragem do relógio nos últimos 10 minutos, porque começa a ser cansativo tanta lesão dos guarda-redes nesse período específico, quando as equipas estão felizes com o resultado”. Ainda assim, adverte, “teria de ser sempre algo introduzido de forma experimental”.
A diferença entre jogar e compreender o jogo
Não se pode dizer que as propostas de van Basten tenham provocado um levantamento. Aliás, as vozes mais críticas vieram de colunistas e de treinadores como Arsene Wenger a Jurgen Klopp. O primeiro considerou que poderia valer a pena algumas das propostas. “A que não vejo como possa ser interessante é a supressão do fora de jogo”, disse.
Klopp não foi tão diplomático e sugeriu a van Basten que criasse outra modalidade. “Estas pessoas não amam o futebol. Este jogo que todos amamos não precisa deste tipo de mudanças”.
Mudar o jogo desta forma teria, naturalmente, um grande impacto no trabalho desenvolvido pelos treinadores, mas Pedro Bouças não acredita “que a resistência” dos técnicos tenha a ver com “sobrevivência”, “mas muito com a consciência de que o jogo perderia qualidade”.
Perante um novo paradigma, “os treinadores teriam naturalmente de se adaptar e voltar a trabalhar e descobrir novas estratégias, novos modelos táticos que potenciassem ao máximo o rendimento das suas equipas”, observa.
Faltará perceber se Marc van Basten compreenderá o alcance da medida que sugere. Vitor Frade repara que há uma “incapacidade de apreender a especificidade da natureza do jogo, que é coletiva” mesmo entre aqueles que se evidenciaram no campo, ao ponto de terem o seu nome associado à história da modalidade.
“Parece estranho que se diga que um jogador fora de série não entende o jogo. Ele entende-o, mas não como uma coisa complexa! Uma coisa cuja causalidade não é linear, cuja natureza é feita de dinâmicas”, desenvolve.
Mas pode ser também que no caso jogue a pressão do mercado ou como Frade o coloca: “a vertigem de tornar o futebol num conteúdo televisivo”.
Vitor Frade gosta de rimas. Quem o conhece sabe. Há um livro com parte das milhares que formulou, selecionadas por ex-alunos seus. Usa-as como forma de desdramatização e de “terapia”. A proposta de van Basten mexeu com o professor e por isso Vítor Frade dedicou-lhe uns versos. Das 10 páginas escritas à mão que partilhou com o JPN ficam as primeiras linhas:
“Não foi Trump ser eleito
Que me trouxe dor ao peito,
Foram as condições a jeito…
Cruyff que diria
De van Basten ou até de Guardiola
Sobre os ‘devaneios-porcaria’
A infecionarem-lhe a tola?
Porquê Cruyff a medida?
Quase só ele foi ‘extraterrestre’
Como jogador
E treinador,
E no entender o jogo está o teste!”