A chuva persistente e até as avarias no sistema elétrico em algumas ruas da Invicta (devido ao mau tempo) não impediram que dezenas de pessoas rumassem ao Maus Hábitos. Esta quinta-feira à noite, realizou-se mais uma sessão do Orçamento Participativo – uma iniciativa do Governo que tem percorrido o país em busca de ideias para a atribuição de 3 milhões de euros. As áreas da cultura, ciência, educação, formação de adultos e agricultura foram as eleitas para este investimento.
À entrada na sessão, todos são convidados a escolher um autocolante para usar ao peito: tanto os que vão apresentar uma ideia como aqueles que vêm só assistir. “A secretária de Estado vai cá estar?”, perguntam a alguns membros da organização. “Sim, vai cá estar. Ela, os assessores todos, toda a gente”, responde uma jovem entusiasmada. Graça Fonseca, secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa, tem estado presente em todas as sessões. O Porto não foi exceção.
De volta aos autocolantes, as escolhas estão entre “eu vim para propor”, “eu vim para mandar bitaites”, “eu vim para ser inspirado”. Cada pessoa é aconselhada a escrever o seu primeiro e último nome no espaço em branco e a colocá-lo num lugar visível. “Aqui tratamos todas as pessoas pelo nome”, avisam lá dentro.
A Ignite Portugal foi a escolhida pelo Governo para dinamizar estas sessões: trata-se de uma startup que começou nos Estados Unidos, especialista em dar voz às ideias do público em eventos participativos, e que se estendeu a Portugal.
Miguel Munoz Duarte, elemento da Ignite, era o responsável por fazer a ponte entre os oradores e a controlar os tempos de cada um. Não que fosse preciso: o modelo de apresentação consiste em 20 slides, cada um com 15 segundos de duração, perfazendo um total de 5 minutos de intervenção. Quando acabasse o tempo, aparecia um fósforo na tela que avisava: “Ups, o tempo terminou”. E depois as palmas do público.
No palco, permanecia apenas uma palete e um microfone, muito ao estilo stand-up comedy. Poucos elementos, mas os suficientes para que cada pessoa fizesse ouvir a sua voz e sua ideia perante o público e um membro do Governo. Miguel Munoz Duarte avisava: “Têm ali cadeiras e lugares vazios cá à frente. Olhem que ficam com varizes”, brincava.
Partida, chegada, corrida: As ideias em ebulição
O primeiro a subir a palco foi António Videira com o “Carsharing Porto”, uma ideia que prometia revolucionar a mobilidade na Invicta e contribuir para a carteira dos portuenses e o meio ambiente. Através de um modelo italiano de carros elétricos, o “Biró” — nome que suscitou alguns sorrisos devido à proximidade semântica com os quadros Miró, expostos em Serralves –, o sistema de partilha de carro seria impulsionado pelo Governo. Cada viagem teria um custo estimado de 50 cêntimos para os utilizadores.
5 minutos depois, seria Sofia Oliveira a apresentar “Mistérios Científicos por Portugal”. O projeto proposto pela jovem consistia em enriquecer o conhecimento científico de várias faixas etárias. Através de enigmas e quase numa caça-tesouro, o público seria desafiado a desenvolver o intelecto em vários pontos das cidades – o Porto não seria a único lugar a ter o projeto.
A atividade grátis teria baixos custos de manutenção, segundo Sofia Oliveira. E durante a época do Natal, os residentes ou os turistas do Porto poderiam ser desafiados a encontrar o Pai Natal. “Num determinado ponto, podíamos tirar uma fotografia e víamos o Pai Natal a sobrevoar os céus do Porto. Eu acho isso espetacular, vocês não?”, perguntava, enquanto tirava um gorro vermelho do bolso. A técnica fotográfica iria exigiria alguma “engenharia”, mas nada que se resolvesse com perícia e vontade.
Democracia participativa ou deliberativa implica a intervenção direta dos cidadãos nos processos de discussão política. Em Portugal, é a primeira vez que se realiza um orçamento participativo a nível nacional.
Várias juntas de freguesia e câmaras municipais em Portugal já conhecem este modelo: Porto, Lisboa, Odemira, Figueira da Foz e Braga são algumas delas.
Converter desempregados em programadores?
Sara Tavares veio em representação de um colega de trabalho, mas confessou não estar preparada para a rapidez da apresentação. “Mas os slides estão a repetir?”, perguntava. A oradora propunha a criação de cursos grátis numa escola de programação para desempregados: “Cada vez mais, há falta de programadores, porque não tenta ensinar e converter desempregados em software developers?”.
Também de tecnologia, veio a “ideia espectacular” de Mário Carvalho. Primeiro, apresentou uma teoria acerca do mundo: o mercado livre estava inundado pela especulação financeira. Na explicação, não faltava Donald Trump, a Rússia como um “gigante adormecido” e uma Europa que “só parece bem, quando todos os outros países estão em confronto”.
A iniciativa de Mário propunha a criação de uma aplicação, onde os agricultores que vendem na rua, pudessem expor os produtos numa plataforma da Internet. Desta forma, o orador acredita que as taxas e os impostos a pagar seriam muito mais justos. “Aquele é o símbolo do mutualismo, os fortes ajudam os mais fracos a crescer”, concluiu — enquanto apontava para uma bandeira preta, representativa do movimento anarquista.
Logo a seguir, Sílvia Coimbra, professora universitária e bióloga, explicava como os guias-áudio podiam ser úteis no Jardim Botânico do Porto. “Eu sei que as pessoas ficam cativadas quando se fala de detalhes e curiosidades das plantas”, afirmou. “É dificil chegar a um jardim botânico e ter alguém sempre ao nosso lado”. Contar as histórias das flores através do som, parece ser uma solução exequível, já que existem projetos semelhantes em museus.
Até 21 de abril, haverá discussão e elaboração de propostas em vários pontos do país. As regiões autónomas também vão receber as sessões do orçamento participativo, mas ainda não estão agendadas.
De 24 de abril a 12 de maio, as propostas serão sujeitas a análise técnica pelos Ministérios e as Secretarias Regionais. Depois segue-se a publicação da lista provisória das propostas selecionadas, de 15 de maio a 31 de maio.
A 1 de junho, começa a votação das propostas pelos cidadãos, e termina 15 de setembro. As propostas vencedoras serão apresentadas publicamente mais tarde.
Segundo a organização, cerca de 1200 oradores já passaram pelas 13 sessões de orçamento participativo.
“São estas ideias absurdas que um dia vão mudar Portugal”
No entanto, foi a intervenção (espontânea) de Jô, um espanhol recentemente convertido a Portugal, que captou mais atenção e apoiantes. O orador, não previsto, subiu a palco e apresentou um projeto de voluntariado, em que adultos pudessem acompanhar crianças autistas e tornar assim o ensino mais inclusivo e personalizado.
“Os professores não conseguem lidar com uma turma de 25 alunos, que andam todos loucos, e ter um miúdo hipersensível que não consegue ver sentido ou utilidade em nada do que é ensinado”, explicou. Catarina Fróis que estava no público, interveio e defendeu que “a saúde e a educação já deviam ser assegurados pelo Governo”.
Infelizmente, a proposta não foi aceite pela organização, porque não se enquadrava com nenhuma das áreas do orçamento participativo. Porém, Jô foi aconselhado a reformular a sua ideia. Gisela subiu a palco e explicou-lhe que devia centrar-se na formação de adultos para poder contornar as adversidades do regulamento.
A oradora que é também motociclista propôs a criação de uma rota no Douro, onde fosse possível viajar de mota, de uma ponta à outra do país. O projeto previa a existência de pontos de interesse, locais adaptados para famílias numerosas e parques de estacionamento seguro para os veículos.
“Eu fico muito orgulhosa por sermos o primeiro país a ter um orçamento participativo a nível nacional”, confessou Gisela ao microfone. No final da sua intervenção, repetiu: “O que importa é contribuirmos com estas ideias absurdas, porque são estas ideias absurdas que um dia vão mudar Portugal. Porque todos nós resolvemos, um dia, sair de casa e dizer qualquer coisa”.