Mais concentração, menos localismo. Elsa Costa e Silva defende que a rádio local portuguesa transformou-se numa “cadeia de retransmissão centralmente emitida”. José Faustino critica o papel do Governo.

Notícias locais, músicas regionais e sotaques próprios. Pela função social e pelo indicador de proximidade, as rádios locais idealizam a comunidade que usa o espectro radioelétrico como meio para comunicar entre si. Depois da explosão das rádios piratas e da batalha pela legalização nos anos oitenta, as emissoras enfrentam agora outro tipo de preocupações.

Lutar pela sobrevivência económica esteve sempre na ordem do dia, embora as dúvidas acerca do pluralismo tenham assumido novos contornos.

Certo é que as alterações nos limites impostos à propriedade das emissoras de radiodifusão local vieram aumentar a dimensão da concentração. “Ainda que formalmente possa haver muitas emissoras independentes do ponto de vista da sua propriedade, a verdade é que a rádio local em Portugal acaba por ser, por essa via, uma cadeia de retransmissão de produções centralmente emitidas”, sustenta ao JPN Elsa Costa e Silva, autora do estudo “Rádios locais: concentração e regulação”.

Segundo estimativas da docente da Universidade do Minho (UM), “atualmente, cerca de 25% das rádios locais são usadas para retransmissão centralmente decidida”. O panorama tem potenciado a “perda da identidade local das rádios”, que deixam de emitir para a sua comunidade devido à existência de programação generalista. “Dependendo do sítio de onde elas são, não há o olhar para as pessoas no contexto onde elas estão”, analisa.

Efeitos que se manifestam sobretudo nas grandes áreas metropolitanas e na faixa costeira portuguesa, zonas urbanas e densamente povoadas onde “o efeito da concentração faz com que o haja tanta informação local”. Pelo contrário, “o interior, do ponto de vista local, está mais bem servido pelas rádios”, defende a docente universitária.

À medida dos gigantes económicos

A possibilidade de os grandes grupos económicos comprarem muitas rádios locais cresceu com a lei nº 54/2010. Elsa Costa e Silva lembra que “a lei de 2001 apenas permitia que uma empresa tivesse até cinco licenças locais”. Neste momento, a legislação estabelece que uma pessoa individual ou coletiva pode ter um máximo de 10% do total de licenças atribuídas, até mais de 30.

A lei também permitiu “novas formas de associação em número ilimitado até uma produção de 16 horas”. As restrições a nível geográfico também foram suavizadas, determinando que uma pessoa individual e coletiva pode deter até 50% das licenças atribuídas para determinado concelho ou área de cobertura, regiões autónomas ou áreas metropolitanas.

“Até 2001 uma rádio local tinha que ter um estabelecimento no município para o qual a licença estava atribuída. Neste momento essa obrigação desaparece, o que também permite a centralização de todas as operações fora do município onde está atribuída a licença”, lembra. Basta olhar para as duas rádios portuguesas de âmbito nacional. Tanto a RDP como a Rádio Renascença decidiram abandonar as emissões autónomas regionais, para integrar diversas edições desdobradas numa única emissão nacional.

Com este efeito das cadeias de retransmissão, quem fica a perder são os pequenos centros. Um exemplo clássico é o programa “Bom dia, Tio João”. Durante quase 24 anos deu voz a partir de Bragança, sobretudo aos idosos isolados. Em 2013, a rádio local RBA cedeu antena à Media Capital, que passou a ocupar a maioria da emissão com a M80, produzida a partir de Lisboa. O programa transitou para a Rádio Brigantia, mas não se calou totalmente.

Outra grande alteração da lei de 2010 prende-se com o conteúdo. A investigadora salienta que “as rádios tornaram-se temáticas musicais de forma muito mais facilitada”, deixando de ter obrigação de “produzir noticiário local” e “cumprir a lei das quotas da música portuguesa”.

Entre janeiro de 2011 e dezembro de 2015 (ver quadro), cerca de 15% dos processos que foram apreciados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) “deixaram de prestar serviços de notícias locais porque se tornaram apenas rádio musical”. Já 10% foram autorizadas a retransmitir, “perdendo assim a sua natureza local”, calcula Elsa.

Dados cedidos por Elsa Costa e Silva

Sem condições legais para sobreviver

A investigadora da UM não tem dúvidas: nesta conjuntura, o jornalismo local ficou “obviamente prejudicado”. Mesmo com a resistência de alguns jornais regionais, “a partir do momento em que as rádios não têm obrigação de produzir noticiário, elas deixam de o fazer”, alerta. Por outro lado, há inúmeros blogues e sites de informação local que “populam esse espaço”, embora nem sempre sejam produzidos por jornalistas e submetidos aos tradicionais critérios jornalísticos.

Elsa Costa e Silva refere que “não estão criadas as condições do ponto de vista legal” para a manutenção do jornalismo local. É preciso estabilidade económica, desde que não esteja confinada ao poder político. Até porque “grande parte do financiamento das rádios locais e do jornalismo local passa pelas forças políticas da região”, o que pode constituir uma forma de pressão.

O próprio modelo de negócio também tem pouca viabilidade. A não ser que as pessoas estejam dispostas a pagar “pela informação local de qualidade”.

“O Governo tem uma posição assassina perante as rádios”

José Faustino considera que a Lei da Rádio de 2010 trouxe melhorias. “Não é uma lei perfeita, mas permitiu que algumas coisas mais esquisitas ficassem ao menos definidas”, entre as quais especificar “quem é quem, de quem são as rádios e a que grupos pertencem”, aponta o presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR).

O também presidente da Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social (CPMCS)  defende que a apropriação das rádios locais pelos maiores grupos económicos não é tanto uma consequência da lei nº 54/2010. Afinal, a legislação “sempre permitiu grandes compras” e, por isso, teve pouca “influência naquilo que aconteceu” no pós-2010. “Simplesmente, como era manhosa, não permitia uma clarificação das coisas”, argumenta.

Para José Faustino, o problema reside sobretudo no conjunto de “leis que o Governo tem feito”. Contudo, o dirigente não especifica, mas aponta para “problemas e obstáculos que o Estado tem criado” que alimentam, na sua opinião, uma “posição assassina perante as rádios”. Legislações que, a par do próprio desinvestimento no setor, “têm feito mal às rádios e prejudicado o jornalismo”, remata.

Artigo editado por Filipa Silva

Artigo atualizado às 16h18 do dia 13 de fevereiro, com a inclusão das declarações de José Faustino.