Não são só financeiras as lacunas nos apoios a pessoas portadoras de deficiência em Portugal. Também as há na saúde e na educação. Este é o alerta do relatório anual da Amnistia Internacional que foi lançado esta quarta-feira pela ONG.

Para quem lida todos os dias com a realidade, a conclusão do documento não foi surpreendente. “Muitos orgãos de comunicação social ficaram surpreendidos, mas a nós não nos surpreendeu assim tanto”, afirma António Almeida, portador de deficiência motora, que é chefe de serviço da delegação do Porto da Associação Portuguesa de Deficientes (APD).

O funcionário falou ao JPN enquanto “cidadão portador de deficiência” e não em representação da associação, pois para além de ouvir com frequência relatos de pessoas, “sente na pele as dificuldades”.

O relatório lançado pela organização de direitos humanos recorda o apelo das Nações Unidas ao Estado português para que revisse as medidas de austeridade. Com efeito, em abril de 2016, o Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas expressava preocupação em relação aos “cortes” em áreas como a educação de crianças com deficiência e apoios para as suas famílias.

O apoio às famílias e o acesso à educação

“Se houver, no seio familiar, uma pessoa com deficiência, esta arrasta consigo a família para uma situação financeira precária. Isto porque as despesas são elevadas e também porque, muitas vezes, um dos pais tem de deixar de trabalhar para cuidar do seu filho”, esclarece António Almeida.

O funcionário explica que, geralmente, existe um equipamento social em que os pais deixam os filhos mas que, em muitos deles, atingindo-se a maioridade, “o pai ou mãe é obrigado a despedir-se para ficar em casa com o filho”.

António Almeida acredita que não existem estruturas de educação em número suficiente. Por sua vez, Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, explica que, às vezes, se misturam crianças com necessidades diferentes dentro da mesma turma e que, por detrás disso, está a tentativa de economia de recursos no que diz respeito a professores e número de alunos por turma. No fundo, são “encargos superiores para o Estado”.

Viver com menos de 200 euros por mês

António Almeida chama a atenção para a precariedade, “mal social” que afeta a população em geral e que incide em particular em grupos mais vulneráveis. “As pessoas portadoras de deficiência são das camadas populacionais mais carentes e, algumas delas, estão mesmo no limiar da pobreza”, reitera.

Em Portugal, há pessoas portadoras de deficiência que vivem apenas de subsídios ou pensões de invalidez, que, “em muitos casos, não chegam aos 200 euros”. “Como se pode imaginar, as despesas com ajudas técnicas e outras situações para colmatar as necessidades são bastante elevadas”, explica António.

O acesso a cuidados de saúde também é um aspeto apontado. António Almeida fala em falta de “transportes não considerados de urgência”. As pessoas portadoras de deficiência são levadas até às consultas em centros de saúde ou hospitais, mas o funcionário afirma que as medidas de austeridade levaram à falta de apoios para este serviço.

“Ainda que no Porto até nem seja tão visível, porque temos a STCP com alguns autocarros adaptados, há falta de transportes. Os autocarros não servem muito a população com deficiência, principalmente aquela que sente mais dificuldade para sair de casa ou deslocar-se para uma paragem, muitas vezes afastada”, revela o funcionário.

O caso português

O documento resume: “As medidas de austeridade restringiram os direitos das pessoas com deficiências. Foram reportados casos de maus-tratos nas prisões e de falta de condições prisionais. A discriminação contra a comunidade cigana permanece sem ser debatida”.

O relatório da ONG recupera as conclusões da Comissão Europeia conta o Racismo e a Intolerância (ECRI), em documento publicado em Junho: Portugal ainda não implementou na totalidade as medidas recomendadas em 2013 para fazer frente à discriminação contra as comunidades ciganas.

O relatório ressalva também as desigualdades no acesso a cuidados de saúde apontadas no Relatório de Primavera 2016 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde. Quanto às prisões, a Amnistia chama a atenção para a falta de condições e o uso excessivo de força. A ONG considera também que Portugal fica aquém em termos de direitos de migrantes e refugiados.

O relatório reconhece o esforço no sentido de isentar vítimas de crimes e tráfico sexuais de custas judiciais. No entanto, chama a atenção para o facto de, até novembro, terem sido assassinadas 22 mulheres.

Pedro Neto afirma que as denúncias feitas neste relatório servem para alertar as pessoas e pressionar para que mudanças positivas aconteçam. “Cada pessoa tem o poder de mudar a sua realidade, de não discriminar e de incluir os outros”, conclui.

Nem tudo é negativo

O relatório apresenta alguns avanços no país em matéria de direitos humanos. No documento, são referidas a conquista de direitos na comunidade LGBT, com a aprovação da adoção por casais homossexuais em fevereiro do ano passado.

A Amnistia Internacional aponta ainda como positiva a aprovação do diploma, em fevereiro de 2016, que eliminou as consultas prévias de aconselhamento psicológico como condição para a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). O relatório também dá conta da legislação introduzida em maio que permite o acesso de todas as mulheres a técnicas de reprodução assistida, independentemente de orientação sexual ou estado civil.

O diretor executivo da organização em Portugal considera que, acima de tudo, estas “são vitórias para os direitos humanos”.

O relatório – O estado dos direitos humanos no mundo 2016/2017 – foi lançado esta quarta-feira pela Amnistia Internacional. O documento avalia um total de 159 países ao longo do ano de 2016 em matéria de direitos humanos.

Artigo editado por Filipa Silva