Foi a Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados, firma de advogados contratada por António Domingues, a redigir a lei que excluía os administradores da Caixa Geral de Depósitos do estatuto de gestor público. Mas o que o caso reacendeu foi uma discussão mais extensa à volta do chamado outsourcing legislativo. A contratação de sociedades de advogados para apresentarem propostas legislativas é prática corrente em Portugal. Mas está longe de ser consensual.

Uma prática “pouco saudável para a democracia”

André Lamas Leite, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, defende que o principal risco de conflito de interesses vem de os deputados puderem acumular cargos de advocacia em grandes sociedades. Segundo Lamas Leite, criam-se situações em que um advogado pode participar “na elaboração de um diploma legislativo, e depois o vem a aprovar [como deputado] na assembleia”. E por isso “fica [sempre] a dúvida” acerca da corrupção e do favorecimento pessoal.

É de salientar que grande parte destas contratações são feitas através do regime de “ajuste direto”. Ou seja, não há concurso público. São convidadas uma ou mais entidades para prestar o serviço necessário. E para Lamas Leite, também a possibilidade de se favorecer as sociedades de advogados em que os políticos trabalham pode ser suspeita para o público e “pouco saudável para a democracia”.

Um dos principais motivos para se recorrer a outsourcing legislativo é a escassez ou falta de especialização dos recursos humanos. Mas Lamas Leite considera que é muitas vezes “despesa que não tinha de ser feita” se o Estado apostasse nos próprios serviços. A criação de um “corpo técnico com competências jurídicas” tornaria desnecessário contratar sociedades para fazer aquilo que devia ser assegurado pelo Estado.

“Falta de coragem política” na regulação

Acima de tudo, Lamas Leite considera que tem havido uma “falta de coragem política” para implementar a regulação destas práticas. Tal passaria, na opinião do também jurista, pela salvaguarda de uma “incompatibilidade absoluta” entre os cargos de deputado e o exercício da profissão de advogado.

Nuno Garoupa, professor de Direito na Universidade de Texas A&M, tem sido dos mais críticos ao fenómeno do outsourcing legislativo. Ao JPN, Garoupa diz que o recurso a juristas externos só se justifica quando “a complexidade e especialização” das leis exige recursos humanos que o Estado não tem. Seria necessário para projetos como um novo código civil, mas não se justifica para decretos-lei, portarias e resoluções bancárias, tal como se tornou hábito em Portugal.

Garoupa aponta ainda para outras consequências que a excessiva delegação de funções a sociedades de advogados tem tido. Diz que o fenómeno está por detrás do facto de Portugal ser o único país europeu que nunca teve uma avaliação legislativa. Este tipo de processos visa reunir informação acerca do impacto económico, ambiental e social das políticas públicas. Segundo Garoupa, exige competências que os advogados não têm nem estão autorizados a ter. E é por ser tão baseado na cooperação com sociedades de advogados que o sistema português nunca implementou uma.

Não há “transparência”

Já para Gustavo Sampaio, a extensão do fenómeno “não é totalmente visível”. O autor do livro “Os Facilitadores”, que se debruça sobre as ligações entre o poder e as grandes sociedades de advogados, salienta que a maioria destes contratos são celebrados sob o rótulo de “assessoria jurídica”, que tanto pode significar representação num processo como produção legislativa. Não tem “transparência” nem “escrutínio público”.

Como exemplo de leis elaboradas em outsourcing, Sampaio dá a reformulação do Código Penal, do Código de Processo Penal e a da Lei de Bases da Segurança Social, mas também as leis orgânicas de vários ministérios. Estima que entre 2003 e 2006, período destas reformas, o Estado tenha gasto pelo menos 1,6 milhões de euros em outsourcing legislativo. Também o Governo de Passos Coelho delegou, em 2011, a elaboração de várias leis ministeriais a sociedades de advogados.

Artigo editado por Rita Neves Costa