O ciclo de espetáculos do Foco Deslocações começa esta sexta-feira, no Teatro Municipal do Porto, e estende-se até sábado. No Campo Alegre, dois artistas, de países diferentes, deixam em palco o seu testemunho da guerra e do conflito que os obrigou a sair do local onde nasceram.
Dorothée Munyaneza tinha 11 anos quando o Ruanda se transformou num palco de guerra. A memória da morte e do sofrimento causados no genocídio de 1994, que entrou pela sua casa em tão tenra idade, continua presente.
O pai era pastor e a mãe jornalista. Sobreviveram ao massacre iniciado contra os Tutsi, no Ruanda, mas “a maior parte morreu”. Aos 12 anos, Dorothée mudou-se para Inglaterra e agora usa “o canto e o teatro para contar histórias”.
“Samedi Détente” é a sua mais recente peça e a primeira a ser apresentada, esta sexta-feira (21h30), no Foco Deslocações. É através deste trabalho que a cantora, autora e coreógrafa conta o êxodo, a violência e o medo decorrentes do genocídio. O título retrata um programa popular de rádio que Dorothée ouvia com os seus amigos, muitos deles vítimas do genocídio. Para ela, é uma forma de recordar a infância e os momentos felizes que viveu, antes da guerra e do exílio.
Dorothée, que fez parte da equipa de compositores da banda sonora do filme “Hotel Ruanda”, sobe ao palco para questionar o momento em que decide deixar a terra onde sempre viveu e as condições de uma viagem feita na esperança de fugir ao conflito.
Ouvir. É o que a autora quer que o público faça. Não pretende “ser mais nada do que uma artista que está em palco a pedir ao público que apenas ouça”. A peça “é uma forma de pedir para pararem por um momento, uma hora do seu dia, e apenas ouvir. Porque muitas pessoas não ouviram ou não viram o que estava a acontecer”, conta ao JPN.
A gravidade deste genocídio e de tudo o que se passa no continente Africano passou despercebida e foi ignorada por muitos. “Eles simplesmente não queriam saber de nós”, acredita. As feridas da guerra vão estar sempre presentes no povo ruandês, mas “apenas são visíveis se as procurarmos, se falarmos com as pessoas que lá estão”.
“A minha voz é influenciada pelo que vivi em 1994. Quando estou a cantar sei que carrego tudo isso comigo”, conta. E foi a partir de um projeto anterior, um ensaio da última peça de Alain Buffard, que começou pela primeira vez a falar do genocídio. Foi aí que Dorethée sentiu que estava pronta para partilhar a sua história.
A identidade síria no contexto da guerra
Do Ruanda para a Síria. De 1994 para 2011. De um genocídio para uma revolução. Mithkal Alzghair nasceu na Síria, em 1981, e saiu do país aos 29 anos, para estudar dança em Montpellier. Pode voltar, mas primeiro tem que cumprir o serviço militar, no exército de Bashar al-Assad.
“Displacement” é apresentada no sábado, pelas 21h30, e procura explorar a identidade síria e o corpo que vive sob a repressão, o confronto e as dificuldades causadas pela guerra. Mithkal acompanhou-a de longe e fala ao JPN sobre “a necessidade de falar do que estava a acontecer, da revolução, da violência. Os media não falavam disso. O mundo não sabia de nada”. O coreógrafo e bailarino sírio questionou o seu papel neste contexto e o que teria que fazer como artista.
A peça começa com Mithkal e o som de botas militares que representam a marcha de guerra ou o caminho de quem tenta fugir do país, uma realidade que o próprio autor viveu. “Começo a questionar o caminho e muitas questões relacionadas com a minha identidade, a minha herança, num contexto que é novo, numa cultura que se altera.”
O coreógrafo, tal como Dorothée Munyaneza, também quer responder a muitas questões: “Qual a identidade de uma sociedade formada sob domínio de uma ditadura colonial?” Mithkal explora o corpo que procura a liberdade e o corpo que não se consegue mexer, restringido por barreiras e regras. “Procuro o efeito que o individuo e a sociedade têm neste contexto de revolução, guerra e deslocamento.”
Além das duas peças, o Foco Deslocações recebe no sábado, pelas 15h00, o encontro “Registo e Refúgio”, que conta com a presença dos autores, coreógrafos e de Pedro Santos Guerreiro, diretor do semanário Expresso. O programa encerra com um concerto de Dorothée Munyaneza, no café-teatro do Campo Alegre, pelas 23h00.
Artigo editado por Filipa Silva