A UNICEF revelou os riscos que as crianças migrantes enfrentam em terra, nos centros de detenções da Líbia. O JPN falou com duas eurodeputadas sobre o papel europeu no que se vive antes da travessia do Mediterrâneo.
Três quartos das crianças, entrevistadas pela UNICEF, revelaram ter sido vítimas de algum tipo de violência na jornada de migração rumo à Europa. Cerca de metade das mulheres experenciaram abuso sexual, geralmente múltiplas vezes e em múltiplas localizações, durante o trajeto.
O relatório “Uma Jornada Fatal para as Crianças: A Rota Migratória do Mediterrâneo Central”, divulgado esta terça-feira, inclui depoimentos na primeira pessoa, em que são contadas histórias de abuso, extorsão, violência e escravatura, que ficam por denunciar devido ao medo da prisão ou deportação.
No ano passado, dos mais de 181 mil migrantes chegados a Itália através da Rota Central Mediterrânica, cerca de 28 mil eram crianças. Nove em cada dez viajavam sozinhas.
Porquê a Líbia?
Pela sua posição geográfica, a Líbia, com uma ampla costa mediterrânica e vários países na fronteira (Tunísia, Argélia, Níger, Chade, Sudão e Egipto), tem sido o principal destino de todos aqueles que querem chegar à Europa. No entanto, o país enfrenta condições de vida e segurança precárias e a violência está vulgarizada, entre combates permanentes entre milícias e forças governamentais.
As regiões líbias são controladas por diferentes milícias armadas, que fazem as suas próprias regras, controlam a passagem nas fronteiras e detêm migrantes para exploração.
A rota não é só um risco assumido por pessoas desesperadas, mas também um negócio bilionário controlado por redes criminosas, revela o documento. É uma das mais fatais viagens do mundo para as crianças. A razão pela qual os migrantes continuam a arriscar-se? Falta de alternativas legais e seguras.
A desumanização dos centros de detenção
Foi estimada a existência de 34 centros de detenção na Líbia. O Departamento de Combate à Migração Ilegal do Governo líbio coordena 24 deles, que albergam entre 4 mil e 7 mil detidos. Também os grupos armados detêm migrantes num número desconhecido de centros de detenção não-oficiais.
No relatório, as condições dos centros são descritas como desumanas. Estão sobrelotados e há falta de comida, água e cuidados médicos. Mas nos centros entregues às milícias adivinha-se uma realidade ainda mais assustadora. A UNICEF não conseguiu visitá-los, mas outros relatórios “pintam um padrão sistemático de abuso dos direitos humanos”: “Não são mais do que campos de trabalho forçado”, escreve-se no documento publicado.
“Essas milícias são o braço armado dos traficantes. Não nos podemos sequer aproximar destes locais, devido ao risco de sermos mortos”, explica um polícia do Ministério do Interior do Governo líbio.
Em 2010, Ana Gomes foi nomeada relatora do Parlamento Europeu para a Líbia e, durante a guerra, antes e após Kadafi, visitou, várias vezes, centros de detenção na Líbia: “São uma coisa absolutamente sinistra. Eram no tempo de Kadafi e ainda piores depois. Porque estamos numa situação sem rei nem roque, sem lei e ordem”.
“O ambiente é o pior que se pode imaginar, as pessoas estão completamente escravizadas e sujeitas a tudo. E as mulheres e as crianças, ainda mais”, afirma a eurodeputada ao JPN.
Os migrantes “passam pelo maior dos infernos”
Liliana Rodrigues é vice-presidente da delegação do Mediterrâneo do Parlamento Europeu e já há dois anos que acompanha de forma próxima o caso dos migrantes. Para a eurodeputada, as quotas de migrantes pelos países europeus chegaram “tarde de mais”: “Quando seguiram com o regime de quotas, foi numa fase em que muita gente já tinha sido abusada, passado o inferno autêntico para chegar à Europa.”
“Se por questões financeiras, os países podem ser sancionados através dos fundos europeus, o mesmo deveria acontecer aos países que não respeitam os direitos humanos”
Para Liliana Rodrigues, o ideal era que se estabelecessem parcerias com o Governo líbio, para ajudar na gestão dos centros de detenção. Quanto aos centros detidos por milícias armadas, é clara: “Não percebo a dificuldade em haver uma ação concertada entre a Líbia e a União Europeia para pôr termo a esses centros”.
A eurodeputada não esconde as críticas ao trabalho do Conselho Europeu, que “durante dois anos, travou a solução para os migrantes” e contrariou a vontade do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia: “É isso que me faz mais triste com tudo isto. Essas pessoas, apesar de tudo, querem muito chegar à Europa. Passam pelo maior dos infernos, pela maior das privações, e mesmo assim acreditam em nós. E depois temos um presidente do Conselho Europeu a dizer que é a altura de fechar a rota da Líbia até à Itália”, declara em referência a Donald Tusk.
Mas as críticas vão além. “Temos países como a Hungria, que o que faz é criar mais muros.” A eurodeputada considera que a resposta às atitudes do país deveria ser “mais musculada” do que a atual: “Se por questões financeiras, os países podem ser sancionados através dos fundos europeus, o mesmo deveria acontecer aos países que não respeitam os direitos humanos”.
A UE “sustentou regimes cleptocráticos”
Ana Gomes não esconde a frustração que sente, ao ser confrontada com a realidade líbia: “Eu fartei-me de avisar. Escrevi ‘n’ relatórios a explicar que se a União Europeia não se empenhasse no pós-Kadafi, na reforma do setor de segurança, na desmobilização das milícias e na sua integração, mais tarde ou mais cedo ia acontecer o que estamos a ver: a Líbia ia tornar-se num santuário de todo o tipo de grupos criminosos. A culpa do que se está a passar na Líbia é da União Europeia, da Europa. E não é por causa da intervenção do quadro da NATO, é pela omissão depois, pelos diversos países europeus estarem a rivalizar entre si em vez de trabalharem de forma coordenada para tratar da questão da reforma de segurança na Líbia. Porque não há governação na Líbia enquanto não houver estruturas de segurança que respondam a um comando nacional”.
“A culpa do que se está a passar na Líbia é da União Europeia, da Europa.”
Mas a má intervenção da UE não fica por aí, segundo Ana Gomes. “Isto tem muito a ver com as políticas erradas da UE na África subsariana muito a montante da Líbia, onde sustentamos regimes cleptocráticos, que roubam os recursos dos seus países e é por isso que as pessoas têm de vir por aí acima à procura de uma vida melhor”, afirma.
Quanto à intervenção europeia no solo líbio, a eurodeputada é cética: “É enganar os cidadãos dizer que se vai criar um sistema de hot spots de campos na Líbia com o mínimo de dignidade, pagos pela UE, dando a terceiros a gestão desses campos. Isso nunca vai funcionar a menos que a UE tenha a coragem e a capacidade de pôr muitas botas no terreno para garantir toda a segurança do território líbio e impedir que o terreno continue a ser um santuário para todo o tipo de criminalidade organizada.”
Para já, há que apostar numa “politica inteligente, solidária, com estratégia, mas também numa política baseada nos valores e nas nossas obrigações legais para os refugiados” e deixar de tentar “externalizar as nossas responsabilidades”.
200 milhões de euros europeus para a migração
Há um mês, a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) criticaram a detenção automática de refugiados e migrantes em “centros inumanos” na Líbia e consideraram inadequado que nações europeias realizem triagens de solicitantes de refúgio no norte da África, fora do território europeu.
Esta quinta-feira, e tendo em vista a reunião do Conselho Europeu da próxima semana, a Comissão e a Alta Representante Federica Mogherini comunicaram as primeiras medidas tomadas para executar ações ao longo da rota do Mediterrâneo Central. Foram mobilizados 200 milhões de euros em 2017 para projetos relacionados com a migração, em particular na Líbia.
Alguns dos objetivos passam pela redução do número de travessias, o reforço da luta contra traficantes e a proteção e salvamento de migrantes.
A máfia por trás do desespero
O relatório da UNICEF revela, também, que quase todas as crianças entrevistadas pagaram a contrabandistas para as ajudar a migrar. O preço vai dos 200 aos 1200 dólares americanos por cabeça.
Mas há negócio para além deste. É comum os grupos criminosos nigerianos oferecerem às vítimas um pacote de migração irregular para a Europa por um preço de 50 mil a 70 mil naira nigerianos (cerca de 250 euros). Tal pacote promete transporte terrestre, marítimo ou aéreo, recorrendo a documentos falsificados ou outros meios. No entanto, uma vez no destino, a dívida é convertida em 50 mil a 70 mil euros, a serem pagos sob a forma de prostituição forçada por um período que pode durar até três anos ou mais.
O ano mudou, a tendência não
Em janeiro de 2017, 4.463 pessoas confiaram as suas vidas a contrabandistas para fazer a travessia até Itália. Apenas na última semana do mês, 1.852 arriscaram-se nesta viagem, um número oito vezes maior que o registado na mesma semana do ano anterior. Até agora, estimam-se que 228 terão morrido. No primeiro mês de 2017, 40 crianças morreram.
Artigo editado por Filipa Silva