Num misto de realidade com ficção, "Land of Light" mostra o retrato de muitas crianças numa Síria assolada pela guerra. O JPN esteve à conversa com o realizador, David Ruf, e o artista plástico, Nuno Viegas.

“O meu sonho é tornar-me jornalista, para poder contar a realidade da Síria, sem hipocrisia nem mentiras”. Noor Khaisoon, de 11 anos, fala com determinação. É uma das centenas de crianças que encontram refúgio na cidade fronteiriça de Reyhanli, na Turquia. Assim começa o filme”Land of Light” exibido durante a 37ª edição do Fantasporto.

No auditório do Rivoli, no Porto o espectador foi apresentado a algumas das caras alegres e sorrisos sinceros, mas ocasionalmente lacunares, que David Ruf encontrou durante os workshops de teatro que organizou em 2013 na fronteira turca. O projeto Speak Syria surgiu no âmbito dos estudos do realizador em cinema documental na conceituada Filmakademie Baden-Württemberg, na Alemanha, e tinha como propósito dar voz às crianças afetadas pelo conflito sírio e oportunidade às suas histórias de serem ouvidas.

Em conversa com o JPN, David lembra que num documentário é muito importante saber “que história queremos contar” e que com “Land of Light” não queria “retratar os refugiados sírios ou estas crianças em específico apenas como vítimas (o que é algo muito difícil num documentário, pela sua natureza), mas como heróis”, e assim contrariar o que as “poucas expetativas [do público em relação a estas pessoas] seriam normalmente”.

No filme, passa-se da realidade para a ficção. Noor é agora Raisa, “um dos cinco” pequenos heróis que embarcam na aventura de percorrer território sírio, em pleno conflito armado, para encontrar a “Land of Light” (“Terra da Luz”, em português).  Ao contar esta história, o realizador queria “dar uma perspetiva mais humana sobre as pessoas”, já que “todos entendemos mais facilmente uma criança do que um adulto, porque não há um passado do qual precisamos de saber”.

Todos os atores do filme são refugiados sírios que o realizador e a equipa encontraram durante os meses que passaram na Turquia. “Normalmente, quando se faz um documentário vai-se a um sítio, filma-se as pessoas, leva-se as filmagens para o nosso próprio pessoal e nada é deixado para trás, para as pessoas que conhecemos. Por isso, com esta abordagem nós tentamos fazer alguma coisa de diferente e tentamos envolver toda a gente que conhecemos no processo de produção do filme, de tal modo que se torna também o seu próprio filme”, explica David.

Esta participação no projeto representou ainda um escape da situação de impotência em que se encontram, longe de casa e das vidas que outrora tinham. “Os refugiados são uma grande minoria dentro da Turquia e estão num estado de espera, por isso quando se envolveram no filme, também mudou o seu estado, de serem meramente passivos e estarem à espera do que irá acontecer a seguir”, acrescentou o realizador.

De volta à tela, já a expedição dos heróis vai a meio e a união que os definia à partida dá lugar à desconfiança e à fratura do grupo. Começam-se a perceber os contornos de algumas cicatrizes psicológicas que o contexto de guerra em que vivem inevitavelmente provoca. São confrontados com a morte, o caos, a destruição e vêm-se obrigados a crescer, a perder a inocência da infância e perceber a realidade que os rodeia.

Começam a duvidar que a “Land of Light”, como lugar geográfico, exista mesmo e vão desconstruindo a metáfora, não meramente abstrata, da luz como a esperança no combate às sombras que assolam a Síria. “Apenas através dos livros e da ciência podemos encontrar a luz”, declara a certo ponto Samir, “um dos cinco” meninos desta guerra.  Até que se torna claro: “Nós somos a luz”, “todas as crianças são a luz que vai reconstruir a Síria”.

"Land of Light"

“Land of Light” Foto: Fantasporto

Com os sons da guerra da Síria como cenário de fundo, a ficção conta histórias bem reais de crianças que têm de fugir para uma terra desconhecida, mas que trazem consigo o peso da maturidade precoce, a consciência da realidade que as rodeia e a preocupação de a mostrar ao mundo.

“Quando estávamos lá [na Turquia] estava sempre uma televisão a passar o dia todo estas filmagens árabes de bombas a serem largadas, por isso eles estão muito habituados a verem as coisas mais cruéis e os pais estão sempre a falar sobre isso porque não têm perspetivas, não têm uma rotina neste lugar e estão sempre a pensar  e a falar sobre o que deixaram para trás, por isso claro que eles têm que de alguma maneira, lidar com isso e encontrar uma razão ou uma solução, ou apenas uma perspetiva outra vez, especialmente sendo crianças”, explica David Ruf.

“Falar sobre a morte nunca é fácil, mas este filme sem morte não ia fazer qualquer sentido, não ia retratar a realidade”. Khaled Tlas, de 11 anos, fala com consciência. Foi puxado debaixo dos escombros de sua casa depois de ter sido bombardeada, o pai foi torturado na prisão. É Firas, “um dos cinco” no filme.

Um filme para miúdos e graúdos

David Ruf admite que estar no FantasPorto com “Land of Light” é uma experiência e um ambiente diferente, mas agradável. “É engraçado porque estreamos o nosso filme no Children’s Film Festival e não pensávamos que o filme fosse para crianças, por ser sobre a guerra, e o Fantasporto é um bocado o oposto, tem muitos filmes de terror e drama e coisas que não seriam para crianças e é engraçado estar aqui porque ainda não tenho a certeza de qual é o público do filme. Mas é bom estar nos dois lados, num festival de cinema para crianças e num para adultos”.

Uma produção repleta de desafios

Ao JPN, o realizador admitiu que o processo de produção não foi tarefa fácil e teve os seus desafios, e que o contributo do artista plástico e amigo, Nuno Viegas, “foi crucial no projeto”.

“Ele [David] pediu-me para fazer o storyboard e para mim foi um desafio porque eu nunca tinha lidado com a situação e o que eu fiz foi simplesmente pôr no papel as ideias dele, o que não é de todo aquilo que eu faço, normalmente ponho as minhas”, lembra Nuno.

Para David Ruf, a natureza visual do storyboard foi um grande auxílio na comunicação com os atores que, para além de não serem profissionais, contavam ainda com outro obstáculo, a língua. “Eram sírios e havia tradutores envolvidos, mas eram crianças e nunca tinham feito parte de um filme”, admite Nuno Viegas.

O facto de o artista não ter estado no terreno também permitiu manter a distância necessária para a produção ficcional que pretendiam. “Era uma fronteira mesmo cheia de refugiados e algumas vezes tínhamos centenas de crianças com quem trabalhávamos, mas precisávamos de fazer um casting para selecionar apenas algumas para o filme, o que é muito difícil quando vemos todas estas histórias de vida reais. Estávamos muito próximos da guerra, a certa altura era preciso dar um passo atrás”, confessa David.

Nuno Viegas conta ainda que quando estava a esboçar as personagens, o objetivo era que eles se parecessem como “pequenos heróis de um livro para crianças”. “Sempre me fez lembrar um filme de aventuras mais do que realmente um filme sobre a guerra”, diz o artista.

O JPN esteve à conversa com o realizador, David Ruf (à esquerda) e o artista plástico, Nuno Viegas (à direita).

O JPN esteve à conversa com o realizador, David Ruf (à esquerda) e o artista plástico, Nuno Viegas (à direita). Foto: Ana Costa

Apesar da dificuldade de comunicação, o facto de o realizador alemão não dominar a língua dos atores contribuiu para uma das cenas mais peculiares do filme. “Os atores nunca sabiam o que se ia passar, então envolveram-se muito, o que foi muito importante para termos este final tão engraçado, que também é uma rutura rara do cinema tradicional, e que de outra forma não teria sido tão real. Não estava no guião, eles estavam apenas a falar à vontade e nós nem sequer entendíamos o que estavam a dizer, só pensávamos «ok eles estão mesmo envolvidos no que estão a dizer»”, explica David.

Um retrato diferente do dos media

Um dos grandes objetivos de “Land of Light” era mostrar ao público uma perspetiva diferente da retratada nos meios de comunicação social sobre os refugiados sírios. “Quando ouvimos falar da crise dos refugiados e dos acidentes ficamos com medo […] e quanto mais medo tivermos de alguma coisa ou assunto, o menos provável é tocarmos no assunto e acaba por se tornar em algo que está só na nossa cabeça”, crê o realizador.

David acredita ainda que a forma como reagimos depende muito da informação que apreendemos através dos media. “Nós começamos o projeto num momento em que isto não era um tópico de discussão, mas agora eles estão a chegar aqui e nós vimos milhões a chegar no período de um ou dois anos e as pessoas têm muito medo disto e eu acho que uma das razões para terem tanto medo disto é por serem algo de estranho, algo desconhecido. São só números dos quais temos conhecimento e não temos uma perceção do que está por trás, e os media estão tipicamente só a representar as crises ou as coisas más das quais temos medo”.

Questionado sobre se o cinema é um meio mais eficaz do que a comunicação social para instigar o debate público, o realizador admite ter as suas dúvidas. “É tão difícil perceber qual é verdadeiro efeito de qualquer notícia ou filme, por exemplo, o nosso editor do filme é do Irão, e ele teve de sair do Irão por causa de um filme que fez lá. E ainda assim, os filmes iranianos são obviamente algo de grande dimensão nos festivais, mas será que afeta alguma coisa no Irão em relação à situação das pessoas? Não sei”.

Contar histórias para refletir

Com um novo projeto em desenvolvimento, o realizador conta mais uma vez com a colaboração de Nuno Viegas:“O plano é para ele fazer a animação deste filme”, afirma David Ruf.

Desta vez a história é outra, mas o objetivo é comum, dar voz a quem não a tem, ou teve, neste caso. “É sobre um cientista alemão judeu, matemático na verdade, que morreu já há 50 anos, e é uma personagem muito interessante porque foi o primeiro a perceber que os nazis estavam a tomar o poder e que isso iria significar para os judeus e para a Alemanha”, explica David.

“Ele teve de fugir para os EUA e estava a lutar contra o populismo, e o que é peculiar é que não há nenhuma filmagem dele, mas é algo muito pertinente de mostrar hoje em dia porque estamos a ver outra vez um erguer do populismo”, justifica o realizador de “Land of Light”.

“Ele é muito pouco conhecido até ao dia de hoje, mas acho que é uma boa maneira de contar esta história da ascensão do populismo, sem ser muito direto e talvez seja uma boa maneira de fazer pensar sobre o assunto”, acrescenta Nuno Viegas.

Artigo editado por Rita Neves Costa