Se à primeira vista uma “instalação do medo” nas casas da população parece um cenário absurdo, a verdade é que a obra de Rui Zink com o mesmo nome remete para a atualidade e para um passado muito recente. A história de Zink adaptada na curta-metragem de 14 minutos de Ricardo Leite fala de estratégias de intimidação e subversão, mas também da possibilidade de resistência ao medo.
Ricardo tem 25 anos e adaptou esta narrativa de Zink para a tela no contexto do mestrado em Comunicação Audiovisual na Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD). A curta-metragem estreou em 2016 e tem estado em exibição em vários festivais de cinema no país. A surpresa, para o realizador, foi ter entrado no circuito de festivais internacionais tão pouco tempo depois da estreia, o que aconteceu, admite, “porque o tema do filme é muito pertinente”.
A curta-metragem realizada por Ricardo e produzida por Armanda Oliveira é a única semifinalista portuguesa no Berlin Student Film Festival, a acontecer em março, e faz parte dos filmes selecionados para exibição no Short Film Corner em Cannes, em maio. A 22 de março concorre à fase final dos Prémios Sophia, uma das mais importantes galas para o cinema português.
Ricardo falou com o JPN sobre o seu percurso no cinema e sobre o processo de realizar “A Instalação de Medo”.
Porquê cinema, e porquê ficção? Que caminho fizeste até este projeto de final de mestrado?
Eu fiz teatro popular durante quatro anos no Teatro Popular de Espinho, e desde pequenino que gosto de contar histórias. Na escola primária tinha uma banda desenhada, tenho família na área do cinema e sempre frequentei muitas sessões e festivais da área. O cinema pareceu-me uma forma de contar histórias que eu poderia gostar. Fiz a licenciatura da ESAP [Escola Superior Artística do Porto] e depois decidi tirar mestrado na ESMAD, porque depois da licenciatura senti que ainda não tinha feito um filme que mostrasse as minhas capacidades enquanto realizador.
Tu leste “A Instalação do Medo” do Rui Zink e decidiste adaptá-la para uma curta-metragem. É um filme sobre o medo, claro. Viste logo um paralelo com o paradigma mundial de hoje?
Sim, sim. Quando li o livro há três anos fiquei logo com a sensação de que era muito pertinente. E agora, face às ideias muito parvas que têm surgido de muitos políticos a nível mundial, a ideia de que o medo nos pode ser instalado em casa até pode parecer uma ideia muito estúpida, mas nunca se sabe. E acho que o cinema também tem essa função, a de alertar. Neste caso, o filme funciona como sátira, ao contar uma história muito pertinente. E acho que funciona por ser assim.
É uma curta-metragem estudantil, apesar do look muito profissional. A ESMAD dá-vos um orçamento fixo para o projeto. Isso foi difícil de gerir?
O número não é público, mas o orçamento da faculdade para estes projetos é baixo, na ordem das centenas de euros. Mas “A Instalação do Medo” é uma história que, logo à partida, restringe o orçamento por várias razões: passa-se todo dentro de uma casa, o que pode parecer mais barato à partida, mas acabou por sair caro. Como a história se passa num universo distópico, o cenário foi construído para esse universo. Tivemos de levantar e pintar paredes na casa que nos cederam, e arranjar mobiliário, por exemplo. A roupa das personagens também foi feita de raiz, à exceção do fato do Nuno Janeiro. E como eu não queria acabar o mestrado sem um filme de que me orgulhasse, e sendo o orçamento baixo para isso, arranjamos vários apoios, nomeadamente a nível de câmaras, que estão nos agradecimentos do filme.
O Instituto Politécnico do Porto tem uma longa tradição de presença em festivais e prémios em competições, apesar do orçamento baixo para os filmes escolares, em comparação, por exemplo, às faculdades privadas, cujo orçamento passa para os poucos milhares de euros. Há algo que vocês façam que difere das outras escolas?
Não sei exatamente o que fazemos de diferente, porque nunca estive nas rodagens das outras escolas. Mas o que eu sinto é que, na nossa escola, existe um maior envolvimento do corpo docente nos projetos, e se calhar isso reflete-se na qualidade. Podem às vezes nem ter muita experiência na área, mas têm muita experiência neste tipo de projetos.
Voltando a “A Instalação do Medo”, há a participação do Nuno Janeiro, da Margarida Moreira e do Cândido Ferreira. Escolheste atores profissionais para facilitar o trabalho de direção de atores?
Não, eu gosto de fazer isso e a minha tese de mestrado foi precisamente sobre direção de atores. Como já tive experiência na representação amadora, quis ter o máximo de cuidado ao escolher os atores do filme. Ao escolheres um rosto já estás a contar uma história. O que eu queria era que, sem ser dita nenhuma palavra, tu conseguisses perceber quem é quem (ou não perceberes, também existe esse caso no filme). Era importante perceber-se logo quem é bom, quem é mau, quem é frágil e quem não é. Por isso, no processo de casting escolhi os atores em função do rosto e da história. Serem atores conhecidos já foi uma estratégia de produção, já que acabam até por dar mais credibilidade ao projeto.
O Rui Zink viu a curta-metragem?
Já antes de apresentar à ESMAD o projeto, tinha o primeiro rascunho do guião e a autorização do Rui Zink para fazer o filme. Tratamos de tudo por telefone e email. Mal acabei o filme enviei-lhe e ele até viu com os alunos. Enviou-me um mail a dizer que gostou bastante e nos Prémios Sophia Estudante [em que “A Instalação do Medo” foi reconhecida como Melhor Ficção] ele apareceu e conheci-o. Assinou-me até o “livro de guerra” — o primeiro da obra que eu comprei e que usei até ao fim, já cheio de etiquetas e todo rabiscado –, isso deixou-me muito contente.
A “Instalação do Medo” é o único filme português nos semifinalistas no Berlin Student Film Festival, foi distinguida como a melhor curta de janeiro no ShortCutz de Lisboa e de fevereiro no Shortcuts Viseu. Vai estar em diversos festivais: no ShortCutz de Faro, no Short Film Corner em Cannes, e ainda na Grécia ou nas Filipinas. Estavas à espera desta receção?
Quando o filme estava a ser feito e até antes disso, eu tinha a noção de que iria ser pertinente por causa da conjuntura política e social. Estávamos a fazê-lo quando foi o boom do Estado Islâmico, em que se vivia o que era o medo. Depois de ver o resultado final fiquei muito orgulhoso, porque era um projeto mesmo muito ambicioso para ser feito em contexto de escola. Tinha efeitos especiais e muitos diálogos, que é logo das primeiras coisas que te ensinam a evitar na escola. Daí ser importantíssimo os atores certos. Sem os atores certos para aquilo o filme fracassava. Foi uma sensação incrível quando ganhamos os Sophia. O que eu não estava a contar é que, em tão pouco tempo, começássemos a entrar em festivais internacionais. É um filme em português — muitos diálogos obriga a ter muitas legendas –, e termos entrado em tantos festivais em tão pouco tempo depois da distribuição internacional, surpreendeu-me. Mas, face ao resultado final, estou muito orgulhoso e acho que toda a equipa se sente orgulhosa, não só pela qualidade, mas pela mensagem que o filme passa.
O próximo passo do filme é a fase final dos Prémios Sophia a 22 de março. Conheces os outros candidatos? Achas que 2016 foi um bom ano para o cinema de escola?
Eu acho que, principalmente para a ESMAD, foi um excelente ano. Conheço os outros nomeados aos Sophia e são todos muito bons. Sinto que todos têm hipótese de ganhar. Acho que nos últimos dois, três anos, o cinema de escola deu um salto qualitativo muito grande. Talvez pela digitalização, as pessoas têm mais acessos e mais qualidade com menos dinheiro, o que torna os projetos melhores na sua qualidade final.
Artigo editado por Rita Neves Costa