Um imitador quase que pode ser comparado a Fernando Pessoa, com os seus heterónimos. A diferença é que no caso do poeta, as personalidades eram fictícias, enquanto que os imitadores transformam-se em pessoas com as quais convivemos no dia a dia, ou vemos na televisão. A capacidade de ser o outro ou os outros é uma característica que une os imitadores.

A imitação não é poesia, mas os ingleses e americanos falam mesmo em “the art of impersonation” (a arte da imitação). Na expetativa de saber um pouco mais sobre a atividade, o JPN falou com três especialistas de diferentes vertentes: Luís Franco-Bastos, António Machado e Fernando Pereira. Os três consideram a imitação uma arte, desde que aplicada da melhor forma.

Para Luís Franco-Bastos a parte textual é  importante e as vozes ditam o texto. Defende que a imitação, “enquanto instrumento de comédia, pode ser considerada uma arte”. Também para António Machado, a imitação pode ser considerada uma arte: “Sim, acho que será uma forma de arte conseguir ‘clonar’ com a voz e com a fisicalidade de outra pessoa, transformarmo-nos verdadeiramente”, defende o também humorista.

Para Fernando Pereira, “em Portugal existe alguma confusão com a palavra ‘imitação’, pois as pessoas menos esclarecidas confundem a imitação-réplica, ou cópia barata, com a imitação-arte, que é o que acontece no teatro, no cinema e no mundo do espetáculo”. Contudo, garante que, sendo “mais ou menos caricatural, mais ou menos perfecionista, é sempre uma arte muitíssimo rara e super difícil”.

Das brincadeiras da infância à profissão

Como em muitos casos, a prática começa desde cedo, como aprender a andar de bicicleta. Nos tempos da escola, Luís começou a reparar no talento que tinha, também por força dos amigos que lhe solicitavam imitações: “Costumava ver e reproduzir programas do Herman José e conseguia imitar”. Mas garante que sempre quis ser humorista e que as imitações sempre foram uma forma de fazer rir as pessoas.

Tal como Luís Franco-Bastos, António Machado percebeu em idade tenra que tinha futuro na área das imitações: “Desde pequeno que imitava as pessoas de família, as personagens das novelas, os desenhos animados, e percebi que conseguia alterar a voz”, conta ao JPN.

“Ajuda muito num boneco não dizermos quem é, e as pessoas adivinharem só com a voz que estamos a fazer. Isso provoca logo o riso”. Para António Machado imita-se “quem estiver na berra”, ainda que às vezes estas sejam as difíceis de imitar.

Também Fernando Pereira descobriu o talento em idade tenra, quando cantava e divertia a família e os amigos. Explicou, no entanto, que nunca pensou que tal capacidade viesse a ser a sua profissão. “Estudei desenho de máquinas e engenharia mecânico-técnica durante anos e só já em adulto despertei para essa realidade e comecei-me a dedicar profissionalmente ao mundo das artes e do entretenimento”.

As dificuldades e a escolha da personagem

Quando se seleciona alguém para imitar “o mais importante é a personalidade e as histórias da pessoa e não a voz, isso é que dá material para os espetáculos”. Depois, o trabalho passa por ajustar e praticar o timbre, a cadência e o vocabulário da personagem, explica Franco-Bastos.

Na opinião de António Machado, a maior dificuldade está no facto de haver “pessoas que não têm características nenhumas na voz”,  tendo que recorrer aos trejeitos. Revela, ainda, que treina todos os dias com pessoas que vai vendo na rua, ou na televisão. Ficou muito conhecido pela sua imitação de Cavaco Silva, algo que o próprio também recorda com boa disposição.

“Dá muito gozo porque com a voz, a minha cara altera-se também, e sinto que estou a ser essa pessoa”.

Fernando Pereira tem uma particularidade em relação aos outros dois imitadores, o facto de imitar a cantar em vez do recurso à fala. A principal diferença entre imitar vozes faladas e cantores, na opinião do imitador, reside no saber cantar na polivalência da voz: “Para imitar vozes faladas é bastante mais fácil, mas para levar ao palco vozes de cantores é preciso, no mínimo, conseguir cantar como todos esse grandes cantores. Homens, mulheres, sopranos ou tenores. Toda uma multiplicidade de géneros, formas, timbres e estilos”.

Não é realmente para quem quer, é para quem pode”, afirma.

Também no caso de Fernando Pereira a escolha da personagem não é precipitada. “Normalmente, parto de uma temática ou uma determinada ideia, um certo fio condutor e depois estudo muito minuciosamente aquilo que quero dizer ao público, os temas que vou cantar do meu próprio repertório, as vozes que vou interpretar do repertório de outros. Tudo como uma história, que vou contando ao público e que depois ilustro com as músicas, temas e imitações que fazem mais sentido.

“É o espetáculo no seu conjunto o mais importante, tudo muito bem ligado, com princípio, meio e fim”

Quanto à preparação de um espetáculo, Fernando Pereira não esconde a maior dificuldade: “não se pode ‘enganar’ as pessoas como em qualquer outra situação. Numa interpretação original eu escolho a música, o arranjo musical, tudo muito confortável e absolutamente ao meu jeito. Imitar, ao mais alto nível de perfeição, um grande cantor famoso, é um assunto muito sério e complicado. Toda a gente pode ver, ouvir e comparar com o original… Não dá lugar a truques nem falhas”, salienta.

Beber água é o principal cuidado a ter com a voz

A imitação é uma atividade que exige uma  capacidade ao nível da voz e que também desgasta as cordas vocais, pelo que os cuidados a ter com o aparelho fonético são importantes. “Estou uma hora antes no teatro, se for para apresentar ou animar um evento. Concentro-me bastante para não ir muito preocupado, mas acabo sempre por ficar nervoso”, explica António Machado.

Luís Franco-Bastos diz que beber água e evitar falar antes do espetáculo são as duas principais estratégias que utiliza. António Machado salienta que, antes de ir para o palco, evita “bebidas frias e ambientes de fumo”.

Fernando Pereira assume fazer uma vida “absolutamente normal”. No entanto, lembra não fumar e evitar repetidos excessos alimentares. “Para além dos cuidados com o fumo, a bebida e a má alimentação, é importante tentar dormir bem e beber muita água. Hidratar sempre as cordas vocais é absolutamente essencial”, aconselha.

Uma arte que não é para qualquer um

Luís Franco-Bastos não acredita que as imitações sejam para qualquer um, pois “é preciso ter uma grande elasticidade vocal e uma grande capacidade de observação e ouvido”. Para António Machado, a imitação é “um talento, claro que com treino se consegue talvez aproximar ao timbre, mas falta o resto da parte física”.

Antes de um espetáculo, por muito talento que haja, há sempre treino para o demonstrar da melhor maneira possível em palco. No caso de Fernando, “é sempre muito tempo a pensar, a escrever, a inventar, a cantar, a ensaiar… são centenas de horas de trabalho solitário, até se chegar ao palco e deixar lá tudo o que se tem na voz e na alma”.

Para o imitador de cantores, “não basta querer e trabalhar para isso, tem que haver sempre um talento especial, um ouvido e um aparelho vocal apropriados e bem preparados, senão fica-se apenas por uma ideia aproximada ou mesmo uma caricatura”. Mas, deixando as avaliações para o público, o importante mesmo é ser feliz e “pôr tudo aquilo que temos no pouco que fizermos”, afirma o cantor, como diria Fernando Pessoa.

Com a veia poética bem afinada, questionado sobre o futuro, Fernando Pereira diz viver com os olhos postos nele e, portanto, cita Camões: “Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar o engenho e arte”.

O local onde a voz é apenas o ponto de partida

No conservatório de voz Vocare, no Porto, existe uma oferta formativa para todos os gostos. Qualquer pessoa que utilize a voz profissionalmente pode vir à escola, seja para ter formação de canto, interpretação ou imitação e dobragem. Também existem cursos de reabilitação de vozes. O JPN foi ao conservatório e falou com Isabel Maia, da direção pedagógica do conservatório, e com Isabel Alaminos, sócia-gerente.

Isabel Maia e Isabel Alaminos estiveram à conversa com o JPN FOTO: José Miguel Soares

O António Machado deu vários workshops no conservatório Vocare. Consistiam no ensino de várias técnicas de voz, imitação e dobragem. Tinham um custo de 180 euros por oito horas de formação. “Penso que correram sempre bem, não tenho tido tempo para fazer mais, por isso tenho rejeitado os convites, mas a adesão foi óptima. Os custos não me parecem desajustados, face ao que se pratica”, salienta.

Isabel Maia e Isabel Alaminos explicam em que consistiram os workshops, destacando a adesão e a boa disposição por parte dos participantes.

Destacam, também, que a voz é um músculo que deve ser trabalhado, pelo que o conservatório não tem o poder de transformar pessoas em artistas.

Quanto às diferenças entre a voz falada e cantada, as duas responsáveis servem-se dos exemplos de António Machado e Fernando Pereira para explicar. No caso do cantor, este entra na personagem única e exclusivamente através da voz cantada. Já António é um ator, com um aparelho vocal invulgar, que cria vários bonecos através da voz falada. “São processos completamente diferentes ao nível da amplificação da voz, do posicionamento do som, da procura de ressonâncias”.

Isabel Maia é fã de Fernando Pereira e lamenta que uma pessoa com a experiência e capacidade do cantor nunca tenha sido convidada a fazer parte de um júri de algum programa em Portugal.

Quanto aos cuidados com a voz, explicam que beber água é importante, mas não em demasia, bem como o descanso e a alimentação.

Das precauções aos diferentes tipos de imitações, vários artistas portugueses ganham a vida a imitar e a “ser” os outros. Se uns apostam na música, outros deixam-se ficar pela voz falada. Os dois lados da imitação requerem talento, mas também uma importante dose de trabalho.

Artigo editado por Rita Neves Costa