Após uma pausa de dez anos sem escrever nenhum livro, Rodrigo Guedes de Carvalho regressa com um novo romance intitulado “O Pianista de Hotel”. A obra foi apresentada no passado sábado, 13 de maio, no festival Literatura em Viagem (LeV), em Matosinhos, e chegou às livrarias esta segunda-feira, 15 de maio. Em entrevista ao JPN, o pivot da “SIC” falou do novo projeto, mas também da atualidade e do jornalismo.

O que é “O Pianista de Hotel” segundo o autor?
“O Pianista de Hotel” é, acima de tudo, um romance de regresso. Eu queria muito regressar. Foram dez anos de muito trabalho na “SIC”. Não quero maçar as pessoas, mas tive funções de direção e, apesar de serem invisíveis, são muito desgastantes. Portanto, a minha primeira decisão foi que queria voltar com um livro e surgiu-me “O Pianista de Hotel”. Andava à procura de uma ideia: estava num átrio de um hotel e estive a observar a imensa solidão do pianista que tocava sem ninguém ouvir. E, por acaso, até estava a tocar bastante bem. A partir daí, surgiu-me um enredo, que não vou aqui revelar, porque gostaria que as pessoas lessem. Foi a partir dessa solidão de alguém que está a fazer uma coisa bela, mas que, como está numa circunstância de estar num hotel e não numa sala de espetáculos, ninguém o está a ouvir.

Nessa altura já estava à procura de inspiração ou surgiu naturalmente?
Estava à procura no sentido de que queria recomeçar a escrever. A questão é que eu, assim que me sento no primeiro dia a escrever, tenho de escrever todos os dias. Encaro a escrita como um trabalho, porque os livros não aparecem escritos sozinhos. Tento, sabendo que a maior parte das coisas se vai desenvolver à medida que escrevo, já ter uma ideia base. A questão do pianista era mais simbólica, a de uma pessoa que está presa à sua circunstância. A primeira personagem que me apareceu foi uma rapariga jovem, dos seus 20 e tal anos, que é prisioneira do seu corpo: não de ser muito feia ou de ter algum problema, mas porque é extremamente bonita e como isso se torna uma armadilha para ela. As pessoas fazem juízos e têm intenções sobre ela. E nasceu a frase: “O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós”.

O “Pianista do Hotel” é publicada pela D. Quixote e custa 18,90€.

Essa inspiração surgiu então da vida real, de um momento que viveu?
Não, não é de um momento que vivi. Surge da vida real porque só me interessa escrever sobre pessoas. Mesmo que eu escrevesse um filme passado numa nave espacial que vai para Marte, só me interessaria as relações e as dinâmicas das pessoas dentro da nave espacial. Eu acho que as pessoas são um mundo infindável. Eu não tenho grandes preocupações com a vida real. Começo a desenhar a personagem e depois ela terá as suas características. Obviamente que cada leitor diz que conhece alguém assim, mas esse elemento de identificação é normal e é bom que isso aconteça.

Essa pausa de dez anos foi determinada apenas pelas circunstâncias, ou seja, já estava com saudade, mas não teve oportunidade?
Sim. Não tive oportunidade, porque as minhas funções de direção na “SIC” na altura ocupavam muito tempo. Recebemos chamadas às 8h, ainda estamos ao telefone às 23h30, temos de tratar de coisas para a semana e há múltiplas reuniões. Eu sou um profissional bastante dedicado e não saberia fazer as coisas a meio termo. E essa falta de tempo físico acabou por afetar também o chamado “tempo mental”. Mesmo que tivesse algum tempo livre, estava tão fatigado, tão saturado, que não tinha grande vontade de escrever. Como não gosto e não sei escrever episodicamente, ou seja, escrever na segunda-feira um bocadinho e passados quinze dias voltar a pegar no livro, decidi que voltaria à escrita quando tivesse de facto tempo. Eu escrevo todas as manhãs tenho um horário rígido.

“Não gosto nem sei escrever episodicamente”

Então é mesmo obrigatório escrever todas as manhãs desde que decide escrever um livro?
Sim, porque dá muito trabalho parecer que a escrita foi fácil. Eu espero que as pessoas, quando lêem o livro, leiam com facilidade, sintam que a coisa flui, que avança rapidamente, que levanta uma interrogação. Mas isso dá muito trabalho, porque tem que se ir ao parágrafo e ao verbo exato para aquilo ter uma certa musicalidade. Nesse sentido, eu encaro como um trabalho, tenho de ir lá todos os dias, pelo menos para que o livro não me fuja das mãos. Para que as personagens, sobretudo quando estamos a construí-las, não se tornem difusas. Se eu voltar ao livro passadas três semanas, não me vou lembrar como era o cabelo da Maria Luísa. Isso não pode ser, eu tenho de viver com elas todos os dias. Obviamente que a produtividade é desigual, ou seja, numa manhã, escrevo furiosamente dez páginas. Na manhã seguinte, só escrevo duas, mas fico com o sentido de missão cumprida.

E quanto tempo durou essa escrita do livro?
Durou quatro meses.

Chegou a partilhar a ideia de escrever um novo livro?
Não, embora a minha mulher tenha percebido, pelo meu ritual, que eu estava de novo a escrever. Mas não criei expectativas nenhumas. Avisei a minha editora, a D. Quixote, que ia regressar, mas não dei prazos e não fiz promessas. Sobre o que estava a escrever, não disse nada.

Porque voltar dez anos depois deixa sempre alguma expectativa?
Exato. Pensei muito a partir do momento em que mandei o livro. A escrever não pensei nisso, foi só a excitação. Eu gosto muito de escrever. É como quem está a fazer uma coisa que faz com muito prazer, portanto estava só embrenhado nesse prazer. Depois, quando largo o livro, e de repente fico sem nada para fazer, aí veio a angústia de: “E agora, o quê que as pessoas vão achar? Em dez anos perdeu-se completamente, perdeu a mão, já não vale nada? Ou está bonzinho?”. Aí cria-se uma certa angústia, acontece com todos os livros obviamente, mas quando se regressa ao fim de dez anos é pior.

“Quando se regressa ao fim de dez anos, a angústia é maior”

Mas criou-se uma certa expectativa no próprio autor, no momento em que decidiu voltar?
Não criei e ainda bem, porque isso podia ser paralisante. Atirei-me à escrita, a contar esta história. Aconteceu o mesmo de sempre: começo com duas ou três personagens já definidas e depois há outras que vão surgindo a meio da história. Pensava só na história e em como a contar bem. Toda essa angústia veio depois.

O Rodrigo Guedes de Carvalho jornalista é o mesmo Rodrigo Guedes de Carvalho escritor?
Não, são pessoas completamente separadas. Eu tenho muito orgulho em ser jornalista, dedico-me de corpo e alma à minha profissão há 30 anos. Deu-me tanta coisa boa. Eu costumo dizer que não sou um “jornalista-escritor”, eu sou “jornalista, ponto” e sou “escritor, ponto”, são coisas diferentes. Não há nada de jornalismo na minha escrita.

Rodrigo Guedes de Carvalho é jornalista há 30 anos. Grande parte do seu percurso está a ser feito na “SIC”. Foto: SIC

E há alguma coisa da sua escrita no jornalismo?
Espero que haja, porque uma das coisas que eu ensino — hoje em dia, ensino mais do que aprendo — quando estou a dar formação aos jornalistas de televisão, é que, apesar de nós sermos audiovisuais, numa reportagem a qualidade do nosso trabalho começa na qualidade da escrita. Um jornalista tem de escrever bem. Não interessa se está na imprensa, se está na Internet, se está na televisão, tem de se escrever bem. Porque um mau texto será sempre um mau texto. É uma luta reparar que muitas pessoas vêm estagiar com algumas deficiências de português. Nesses casos, eu acho muito importante emendar logo de início.

“Um jornalista tem de escrever bem”

A escrita é a base do jornalismo?
Absolutamente, é a base de tudo. Se uma pessoa escrever mal, mesmo um repórter de televisão, o seu texto está a ser ouvido. Se a pessoa vier cheia de advérbios de modo e redundâncias, eles vão lá estar sempre. Se a pessoa escreve “há 15 anos atrás” isso vai aparecer e será sempre um erro.

É difícil separar esses dois mundos: a atualidade do jornalismo e do romance?
Para mim não, porque a escrita começou muito antes de eu sequer sonhar ser jornalista. Eu comecei a escrever na adolescência. Escrevi o primeiro romance com 20 anos no primeiro ano de faculdade e nessa altura não sabia que ia ser jornalista.

Mas pensava ser escritor?
Sonhava ser escritor, sim.

Então quando é que apareceu o jornalismo?
Apareceu na faculdade. Eu tirei o curso de Comunicação Social, em Lisboa, mas a minha primeira ideia até tinha a ver com escrita e criatividade. Queria ser copywriter de publicidade, era uma coisa que me fascinava imenso. Só que, na minha altura, nós agarramos as oportunidades que surgem, sejam elas quais forem. Estava no meu último ano de faculdade, quando foi afixada na faculdade uma abertura de concurso para o centro de formação da RTP, em que nós fazíamos testes e os que ficassem fariam um curso. Eu acabei por ser um dos escolhidos. Depois dentro do curso as coisas correram-me bem: dei nas vistas, sobretudo eu e a Cândida Pinto (foi aí que a conheci). No final desse curso, o Carlos Pinto Coelho, que foi nosso professor, disse aos seus colegas da RTP que estavam ali dois miúdos em que valia a pena apostar.

“O Carlos Pinto Coelho disse que havia dois miúdos em que valia a pena apostar”

Se a escrita surgiu ainda antes do jornalismo, é certo que podemos esperar um novo livro?
Sim. Duvido muito que volte a haver um silêncio tão grande. Não tenho nenhuma obrigação com a D. Quixote de prazos para publicar e também não queria entrar agora no exagero de publicar um livro por ano. Porque às vezes as pessoas confundem-se, já não sabem qual era o anterior e ainda não leram este e aquele. Dito isto, que parece contraditório, provavelmente dentro de um ano tenho um novo romance. Porque este sim, tem muito a ver com a atualidade, com o momento que estamos a viver como sociedade. Gostaria de o pôr cá fora o mais depressa possível.

Portanto já está a trabalhar noutro?
Sim, já. A partir daí, não tenho prazos. Só tenho esta ideia que prometi a mim próprio de que não haverá um silêncio de dez anos.

Prometeu isso a si próprio porquê?
Porque eu sou muito feliz a escrever. Não faço o número do escritor angustiado. É estranho para as outras pessoas que o prazer de alguém seja fechar-se num quarto sozinho, com um computador, a ouvir música e a escrever. Mas sim, gosto muito de criar mundos, de às vezes fazer algumas maldades às personagens. Como dizia a minha filha: “Antes de tu escreveres este livro, este livro não existia”. Gosto muito da sensação de deixar uma marca.

“Gosto de criar mundos, de fazer algumas maldades às personagens”

E esse é sempre o método: todas as manhãs, fechado com um computador a ouvir música?
Tem sido, porque eu sempre fui muito matinal, e nem é uma coisa de estar a ficar velhote. A minha mãe diz que eu era miúdo e ia acordar os meus pais a dizer: “Tenho que me vestir para ir para a escola”. Eu acordo naturalmente cedo e gosto muito da manhã. Sempre gostei mais do dia do que da noite, que por acaso é uma coisa que transferi para a personagem principal deste livro, ela tem pânico da noite. Se eu acordo espontâneamente às 6h ou 6h30, então vou escrever. Ainda por cima, “casa” muito bem com o meu horário na “SIC”, que é à tarde e à noite.

Já que estamos a falar da “SIC”, como comenta o estado atual do jornalismo?
Isso dava um novo livro e uma outra entrevista. Acho que o jornalismo tem de ter cuidado. Eu lembro-me que, há uns anos, as empresas de comunicação social, a “SIC” inclusive, com o boom da Internet, do digital e das redes sociais tiveram a preocupação de “nós temos que estar lá”. O meu problema é se o digital, sobretudo no que trouxeram de mau — porque todos os fenómenos bons têm alguma coisa de mal — e quando digo “de mau” refiro-me às fake news, as mentiras, as manipulações e de que forma é que podem afetar o jornalismo. O que vejo muito é que os meios de comunicação social em vez de se tornarem relevantes na Internet, muitas vezes replicam coisas que estão a acontecer lá. Eu acho que esse não é o caminho. Em vez de estarmos a marcar presença no digital e termos os Facebook’s a citarem a “SIC”, o “Expresso” ou a “TVI”, está a acontecer o contrário. Nós estamos a ir a reboque da força das redes sociais e isso é um caminho perigoso.

Artigo editado por Rita Neves Costa