A fúria de Manuel não se afogou e a prova disso é o “Viva Fúria”, segundo álbum a solo que Manuel Fúria lança, juntamente com os seus Náufragos, a banda que o acompanha. Depois de um primeiro disco “épico”, segue-se um marcado pela simplicidade. Os tempos mudam e as circunstâncias da vida do artista também, o que culmina num trabalho dotado de uma visão diferente das coisas. Deste disco fazem parte temas como “20.000 Naves”, “Cala-te e Dança” ou “Canção Infinita”.

Esta sexta-feira à noite, Manuel Fúria e os Náufragos vêm apresentar a sua mais recente criação sonora ao Passos Manuel, no Porto, num concerto que vem no seguimento da digressão que começou no Lux, em Lisboa, a 9 de março e que irá terminar no Festival Bons Sons, a 11 de agosto.

JPN: Este álbum surge quatro anos depois do anterior, “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo”. O que mudou desde aí, enquanto artista?

Manuel Fúria: Como artista não mudou grande coisa, na medida em que a minha voz criativa continua a ser a mesma. Sobretudo, mudaram circunstâncias da minha vida. Sendo exatamente a mesma pessoa que sou, as circunstâncias à minha volta não são as mesmas: já não sou solteiro, tenho um filho, ou seja, já não sou só eu. Esses elementos são determinantes na maneira de ver o mundo e, por isso, acho que isto de algum modo também pesa neste álbum.

Isso trouxe mais maturidade ao álbum?

Não diria mais maturidade… é um olhar diferente, as preocupações não são exatamente as mesmas. Provavelmente não há tantas canções sobre amores impossíveis ou sobre raparigas bonitas que passam na rua. Estou a caricaturar, mas o ponto de vista é ligeiramente diferente. Por outro lado, este disco, ao nível de som e ao nível estético, também é muito diferente do álbum anterior, que é mais grandioso, mais épico, com muito mais instrumentos: metais, violinos, bandolins, percussões tradicionais portuguesas e tambores. Este álbum é muito mais simples. É uma banda de pop rock normal: duas guitarras elétricas, umas teclas, um baixo e uma bateria. Isso também muda bastante.

Que temas são abordados neste disco?

Fala de várias coisas. Tem canções sobre ser pai, tem canções sobre o amor, tem canções sobre a morte, sobre a solidão, sobre esperança, sobre Deus, sobre grandes temas da humanidade e que são aqueles que inevitavelmente eu também ligo. E, por outro lado, também falo sobre a ideia de roubar, de roubar a outros, no sentido em que muitas das canções vão buscar elementos ou referências a outros artistas que nós admiramos e, portanto, há essa ideia de citação, tanto sonora como lírica. Essa ideia de pilhagem ou de roubo descarado de outras coisas também está presente.

Capa do novo álbum “Viva Fúria”, desenhada pela artista Ana Luísa Amado.

Portanto esse roubo é mesmo assumido.

Sim. Não é uma coisa muito normal no contexto da música pop, mas no contexto do cinema ou da literatura, esse dispositivo da citação é uma coisa muito comum. Por exemplo, fazer um remake de um filme ou fazer um filme que cita cenas de outro filme, ou na literatura usar modelos que outros usaram. Por um lado, a mim interessa-me esta ideia de que eu não faço coisas por geração espontânea, faço coisas porque estou inserido numa tradição ou numa linha de autores maiores do que eu e que me ultrapassam, e nas quais eu me coloco como uma voz emissora; [são] coisas que me antecedem, por isso há uma série de formatos e de esquemas que eu faço igual.

“…numa troca de emails, em vez de assinar Manuel dos Golpes, assinei Manuel Fúria, por despeito. Achei piada e ficou”.

Que referências são essas que foi buscar?

Ao nível da poesia, o Ruy Belo está muito presente, a Sophia de Mello Breyner e o Alexandre O’Neill também estão muito presentes. Ao nível musical, se ouvirmos o disco com alguma atenção, podemos perceber que há ali coisas parecidas com os The Smiths ou com a guitarra do Johnny Marr ou, por outro lado, coisas meias à Springsteen e à The Cure.

O álbum chama-se “Viva Fúria”. É um viva a si?

É um nome que me pareceu adequado, na medida em que tem um tom celebratório. Claro que não é só um viva a mim, mas também há de ser um viva à fúria. Quando se diz “viva fúria” também se joga com os múltiplos significados que pode ter essa expressão. Pode ser um “viva fúria” que viva muito e que não morra e a fúria pode ser a característica “fúria” ou a própria ideia de fúria; por outro lado também é o meu apelido artístico. [Além disso], o disco é editado na sequência da morte da minha editora, que se chamava Amor Fúria, e também é um contraponto a isso, como quem diz que “morreu e está vivo” e, portanto, tem muitos significados possíveis.

Como disse, Fúria é o seu apelido artístico. De onde veio esse nome?

Há muitos anos, eu tinha uma banda que se chamava “Os 400 golpes” que é a banda que depois se torna “Os Golpes” e, na altura, nós usávamos todos apelido de banda, tipo Ramones. Eu era o Manuel dos Golpes, depois havia o Pedro dos Golpes, o Luís dos Golpes, etc. Isso coincidiu também com uma altura em que, juntamente com mais um par de cúmplices, criei a Amor Fúria, a minha editora, e esse nome é uma derivação do nome de uma canção dos Heróis do Mar que se chama “Amantes Furiosos”. Na altura, queríamos organizar uns concertos em Santo Tirso e seria a primeira vez que o nome da editora iria aparecer no cartaz, mas houve um elemento dos “Golpes” que não achou piada a isso. Eu não gostei muito dessa posição e depois, numa troca de emails, em vez de assinar Manuel dos Golpes, assinei Manuel Fúria, por despeito. Achei piada e ficou.

Todas as letras das suas músicas são em português. Sente que a língua portuguesa está a ser engolida pela língua inglesa devido ao fenómeno da globalização?

Com certeza que sim. Isso é uma coisa que, já durante os anos 90 com a grande explosão das bandas portuguesas a cantar em inglês, se sentia e agora o inglês tornou-se uma espécie de língua franca que se usa para termos técnicos, para conversas empresariais, para dar nomes a restaurantes, discotecas ou o que for. Isso não é uma questão de eu achar ou não, é um facto.

Acha que a língua portuguesa deve ser preservada, nomeadamente pelos músicos portugueses?

Acho que os músicos portugueses devem fazer aquilo que acharem mais conveniente fazerem. Eu acho importante cantar em português, porque é a língua em que eu penso e sinto. Não me interessa muito o que é que fazem os músicos portugueses, estou-me um bocado a borrifar. Eu faço aquilo que acho que está certo. Se faço um trabalho artístico que tem a ver comigo, esse trabalho deve ser em português, porque é a minha língua. Se fosse espanhol, seria castelhano, mas não sou espanhol, sou português. Calhou ser assim.

Portanto, é uma convicção sua.

Mais ou menos… é uma condição, não é uma convicção. É o que é.

Manuel Fúria nos ensaios. Foto: David Caetano

Há pouco falou da Amor Fúria, a editora que fundou e acabou no ano passado. Com que objetivo a criou?

Em primeiro lugar, foi para dar uma casa, por assim dizer, à minha própria banda da altura [Os 400 Golpes] e, por outro lado, interessou-me criar alguma coisa que pudesse ter características que permitissem mais bandas e mais artistas trabalharem connosco. Por isso, o grande objetivo foi, por um lado, não pedir permissão a ninguém para existir e podermos fazer as nossas coisas por nós próprios, com a nossa própria agenda e com as nossas próprias condições; essa ideia de autonomia sempre foi muito importante. Por outro lado, também como movimento estético, como uma casa que pudesse ser dona de uma ideia de música pop ou de cultura pop, também com as nossas próprias diretrizes. E havia ainda ideia de fazer, criar e potenciar música moderna portuguesa. Esses sempre foram os nossos objetivos.

Quando criou a Amor Fúria, sentia que havia uma lacuna de editoras de música pop em Portugal?

Sentia, sim, no espectro da música mais independente. Sem ser a Flor Caveira, que ninguém conhecia, não havia editoras independentes a fazerem coisas de música pop e a trabalharem o formato canção. Havia coisas que se dedicavam a música mais exploratória, marginal ou assim. Mas, de facto, havia esse espaço vazio que nós identificámos e ocupámos naturalmente.

A que se deveu o fim da editora?

Deveu-se a já não termos o ritmo editorial de acordo com as nossas exigências e deveu-se também às dificuldades próprias de uma estrutura deste género dar pouco dinheiro. Há uma altura na vida em que existe uma disponibilidade para isso, mas depois chega uma outra em que a disponibilidade já não existe e, portanto, em vez de deixar que apodrecesse ou definhasse, achámos que era muito mais bonito e teria muito mais a ver connosco, até pelo lado mais cénico, criar uma agenda de exéquias e fazer um funeral (da editora), ou seja, fazer as celebrações do fim como deve ser.

Pensa voltar a ter um projeto deste género?

Não é uma coisa que eu ande propriamente à procura ou a tentar fazer agora, mas também não é uma coisa que eu diga que não. Para já não me interessa muito, porque estou a fazer outras coisas. Mas o que morreu foi a Amor Fúria, não foi a minha vontade ou o meu gosto em editar discos e trabalhar com artistas, por isso é possível que isso aconteça, mas não é nada que esteja programado ou definido.

Considera que atualmente se faz boa música em Portugal?

Faz-se muito boa música e provavelmente melhor do que se fazia há uns anos atrás.

Que bandas portuguesas aprecia?

Para além da minha própria, gosto dos Velhos, do Samuel Úria, dos Capitão Fausto e das suas derivações, do B Fachada, da Márcia e de muitas outras boas coisas.

 Como podemos definir a sua música?

Pode-se chamar “pope roque”, que é a versão portuguesa. A música que eu faço é uma aportuguesação de modelos anglo-saxónicos, portanto faz sentido defini-la aportuguesando um termo que não é português.

Quais são as suas principais influências musicais?

Heróis do Mar, António Variações, tudo o que foi feito no contexto da Fundação Atlântica, que era uma editora portuguesa da primeira metade dos anos 80, e depois são bandas inglesas e americanas que eu gosto muito, como os The Smiths, os New Order, o Bruce Springsteen, o Bob Dylan… há muita coisa.

Desde cedo que vive a música. Pretende tocar e cantar até ao final dos seus dias?

Não sei se é até ao final dos meus dias, mas por enquanto é assim. Não sei se daqui a dois anos ou três estou a fazer outra coisa qualquer. Eu vivo da música e é um privilégio poder fazê-lo e quero fazer música enquanto fizer sentido; se eventualmente deixar de fazer sentido fazer música, farei outra coisa qualquer.

Artigo editado por Filipa Silva