O FC Porto tinha pela frente um desafio difícil para conquistar o seu primeiro troféu internacional, mas no fim a euforia teve os tons azul e branco. O JPN falou com quatro portistas que estiverem presentes no Estádio do Prater.
“Aquilo foi brutal! Brutal! Foi uma coisa, realmente, de uma alegria… Pessoas a tirarem as camisolas, pessoal a cair para o lado, pessoas a chorar compulsivamente”. A 27 de maio de 1987, o Futebol Clube do Porto (FCP) conquistou a Taça dos Campeões Europeus, o primeiro título internacional da história do clube. Manuel António, 64 anos, esteve no Estádio do Prater, em Viena, com mais de 60 mil pessoas para assistir à surpreendente derrota por 2-1 que o FC Porto impôs ao todo-poderoso Bayern de Munique.
“O que me lembro e senti mais intensamente foram aqueles 15 minutos depois do jogo acabar”. O ambiente, recorda, foi “o “completamente doido”.
Os adeptos portistas, que estiveram em clara minoria, ainda chegaram a temer o pior quando viram a sua equipa a sofrer o primeiro golo, mas rejubilaram no final, depois do Porto ter protagonizado uma reviravolta histórica. Quando o jogo acabou e os alemães já tinham saído do estádio, o ambiente foi de euforia total.
Já lá vão 30 anos desde que o FC Porto saiu de Viena com a taça, mas a emoção toma sempre conta de Manuel António. “Eu comovo-me a dizer isto. As pessoas recordam aquilo e a emoção vem ao de cima”, diz, ao mesmo tempo que limpa as lágrimas que lhe escorrem na cara.
“Só ouvia os adeptos do Porto. Aquilo foi um balde de água fria para eles [alemães]. Nem os vimos sequer à noite”, conta Joaquim Vidal, de 50 anos. Foi a primeira vez que acompanhou o Porto ao estrangeiro.
Mas se Joaquim não viu alemães depois do jogo, para Manuel António foi diferente. “Nós tínhamos a camioneta que nos transportou do hotel num parque. Andámos à procura da camioneta e passámos por um grupo de alemães. Eu levava uma camisola do Lima Pereira e, naturalmente, um cachecol do Porto. E a única coisa que eles nos pediam era o cachecol e a camisola. Não fizeram qualquer tipo de provocação”, conta Manuel, que nunca vais esquecer este encontro pacífico.
Manuel Machado, 68 anos, também foi a Viena. No seu caso, chegou a acompanhar o Porto no estrangeiro na caminhada para a final da Taça das Taças de 1984 contra a Juventus, mas não teria ido a Viena e teria perdido a oportunidade de assistir a um momento histórico do seu clube não fosse o caso de ter querido aproveitar uma promoção da agência Abreu.
“Foi uma semana que andámos a passear [com a esposa]. Fomos de avião até Berna, e depois andámos num autocarro pela Suíça e Áustria, essencialmente, e também fomos a Itália, Alemanha e à França. Este passeio foi organizado pela agência Abreu propositadamente e na quarta-feira estaríamos em Viena, para aproveitar para ver o jogo”, conta.
Manuel Machado viu os alemães “a sair de uma forma pacata, calma”. “Despareceram do estádio rapidamente, enquanto ficámos praticamente nós”, conta. “E depois lá fora foi uma festa. A camioneta levou-nos para um restaurante e lá estivemos a comer comida vienense e a beber cerveja. Mas tudo de uma forma ordeira e pacífica, mas com muita alegria”. Quando regressou a Portugal, Manuel Machado ainda não estava em si: “Ainda pensava que aquilo era um sonho”, confessa.
Caminhada para a final
O jogo entre o FC Porto e o Bayern de Munique foi um autêntico embate de David contra Golias. Os germânicos já tinham conquistado a então Taça dos Campeões Europeus em três ocasiões (1973/74,1974/75 e 1975/76) e o Porto só em 1984 é que disputou a sua primeira final europeia. Muitos portistas não acreditavam na vitória, apesar de reservarem um pequeno espaço das suas cabeças para confiarem que sim, que aquele seria o momento.
“Não acreditava. Enquanto portista e sócio do Porto, procurei sempre, e ainda procuro na minha vida, ser realista. Portanto, não daqueles que só vê num sentido”, conta Manuel Machado. Na sua opinião, o Porto estava a fazer “uma boa caminhada” para a final, algo que sempre duvidou que fosse possível alcançar e ganhar.
“Eu pensei que o Porto ia levar para aí uns três ou quatro. Era a convicção que eu tinha. Mas ainda bem que me enganei”, diz Manuel Machado.
Joaquim Vidal também achava que o Porto não tinha qualquer hipótese de chegar a Viena. “Com o Dínamo de Kiev [meias-finais], pensei que íamos ficar por ali”, revela.
Passado o desafio do Dínamo, equipa que “representava a União Soviética”, será que Joaquim achava que o Porto tinha alguma hipótese na final? “Não, nenhuma. Nenhuma”, responde prontamente. “Íamos jogar com uma das melhores equipas da Europa, que tinha o Pfaff, o Rummenigge”.
A presença de Joaquim em Viena nasceu de um desafio: “Fui ver aqui [Porto] o jogo contra o Dínamo de Kiev, que na altura era a melhor equipa da Europa. Eu disse: ‘Se nós ganharmos [a 2ª mão, em Kiev], eu vou à final’”. Joaquim Vidal, que chegou a jogar voleibol no FC Porto, teve a ajuda dos pais para pagar as despesas. A viagem de camioneta custaria na altura 150 euros, o seu ordenado de um mês. Pagou também o ingresso do jogo, que seria 20 euros. “Era muito dinheiro para aquela altura”, diz.
Talvez contra a maioria dos portistas, Manuel António acreditava mesmo que o FC Porto podia passar o Dínamo de Kiev e chegar à final. “Eu começava a pensar no próximo jogo, porque realmente o Porto tinha uma equipa fantástica. E a falar com os meus amigos que foram, estava sempre a alimentar: ‘E se [o Porto] for [à final], vamos?’. Íamos sempre alimentado aquela coisa”, conta.
O que é que lhe fazia acreditar que a equipa nortenha podia levar de vencida a equipa alemã? “A qualidade dos jogadores que o Porto tinha. Eram jogadores à Porto, muitos deles formados no clube. Sentiam que podiam pôr o Porto num patamar muito lá em cima”, responde Manuel António, que foi jogador e treinador do Infesta, tendo defrontado o FC Porto em algumas ocasiões.
Na primeira vez que Manuel António seguiu o Porto ao estrangeiro, foi de avião com amigos, depois de ter pedido autorização ao Infesta. “A viagem foi interessante, porque nós saímos daqui com blusões, porque pensávamos que lá na Áustria ia estar frio. Chegámos lá e estava uma temperatura muito agradável”, conta.
Muralha alemã
Apesar do jogo se realizar em Viena, o ambiente que se vivia no Estádio do Prater dava a entender que o Bayern ia jogar em casa.
Manuel Machado chegou ao Prater duas horas antes do jogo, com início marcado para as 19h15 [hora em Portugal Continental], e encontrou uma “muralha humana”.
“Era assustador, pela quantidade de adeptos alemães que lá estavam comparados connosco. Isso aí é que impressionava. Não que eu tivesse medo”, conta Manuel Machado, que define o ambiente pré-jogo como “imponente”.
“Eu recordo-me de ver o estádio de vermelho”, conta Joaquim Vidal. “Vejo o guarda-redes, que era o Pfaff, a entrar em campo, a fazer o treino dele. Pensei: ‘Nós não vamos marcar um golo a este homem’. Ele fez o treino, e o pessoal todo pensou: ‘Epah, este defende que é uma coisa louca’”.
Os alemães “estavam convencidos que estava ganho”, considera Joaquim. “Quando andávamos a passear nas ruas, olhavam para nós com aquele desprezo. Pensavam que íamos fazer o papel de bobos da festa. Sinceramente, a arrogância alemã é isso. Olhavam para nós, riam-se, nem faziam grande festa. Para eles, aquilo estava ganho”.
Os alemães estavam confiantes, porque, como se interroga Manuel António, quem era o Porto comparado com o Bayern? “Quando o jogo começa, nós somos um pouco abafados pelos alemães, o que era perfeitamente normal, porque havia uma disparidade de pessoas”.
Sofreram primeiro, festejaram depois
Os contratempos na equipa portista começaram antes do jogo. Fernando Gomes, que foi o melhor marcador do FC Porto da época 1986/87, lesionou-se e não estava convocado para a final contra o Bayern.
“Já não seria fácil. Sem o Fernando Gomes, ia ser mais difícil. Acho que estiveram lá uns autênticos heróis, mais aqueles que entraram”, lembrou Joaquim Vidal.
No início, Manuel António chegou a temer o pior pela falta de Fernando Gomes. “Mas depois só nos focámos no objetivo que queríamos. Não joga o Gomes, tem que jogar outro”, afirmou.
Manuel Machado não achou que ia sentir a falta do goleador “azul e branco”. “Se o Fernando Fomes não jogasse e o Porto jogasse só com dez, nessa altura preocupava-me”. Mas existia mais uma razão para a sua despreocupação: “O jogo com o Bayern não foi um jogo próprio para o Fernando Gomes marcar muitos golos”.
O jogo não começou da melhor maneira para o FC Porto, que sofreu golo aos 24 minutos, por intermédio de Ludwig Kogl. O bom início dos alemães estava confirmado.
“Eu pensei que mais minutos menos minuto o Porto ia levar mais três ou quatro. Foi essa a minha convicção”, confessou Manuel Machado.
“Quando eles marcam, enfim… Ainda existia confiança”, lembrou Manuel António.
A imagem que Joaquim Vidal tem na cabeça é a dos marcadores do resultado. “Depois aparece aquela imagem no ecrã a dizer ‘tor’ [‘golo’ em alemão]”.
Depois, ao minuto 77 da partida, o calcanhar de Madjer deu aos portistas uma réstia de esperança.
Joaquim Vidal estava atrás da baliza e nem deu conta do toque artístico do argelino. “Estávamos atrás da baliza, nem reparei. Vi a bola… ‘Golo! Golo! Golo!’. Toda a gente a gritar ‘golo!’”, conta Joaquim. Apesar de ter dito que esperava que o Porto não ganhasse, Joaquim Vidal mudou a opinião: “Aí sim, houve aquela esperança”.
Para Manuel Machado, o Porto começou a ser Porto a partir do golo do empate: “Veio ao de cima o Porto em si e, fundamentalmente, algum descrédito por parte do Bayern, porque aí notou-se uma queda. A partir daí, acreditei que o Porto pudesse ganhar o jogo ou então ir para o prolongamento”.
Juary marca ao Bayern o golo da reviravolta dois minutos depois. Madjer, a correr pela esquerda, passa por um adversário e centra para o brasileiro encostar no fundo das redes.
“No segundo golo, a jogada do Madjer, que está a receber a assistência e passa pelo defesa direito alemão com uma finta… Foi gritos, gritos e gritos”, lembra Joaquim Vidal, que não se lembra de “ter chorado tanto” como chorou juto à rede da baliza.
Joaquim relembra que nesse momento todos saltaram. “Até me arrepia isso”, diz, esfregando o braço.
“Ao segundo golo é que foi um baque. Vi pessoas atrás de mim a caírem”, conta Manuel António, que não consegue conter as lágrimas. “Eu comovo-me, está a ver? Eu estou a falar e comovo-me, porque realmente foi épico”.
Manuel Machado foi a Viena acompanhado da mulher, Maria Francelina, que ficou aflita com os festejos, porque estava grávida de seis meses. “Pegaram-me nos braços e eu andava de braço em braço. Andei para cima e para baixo, para baixo e para cima. Andava ali aflitíssima”, conta, que mesmo assim considerou o momento “uma alegria tremenda”.
Até ao final do jogo, o Bayern não marcou mais nenhum golo. O Porto era, assim, campeão europeu pela primeira vez na sua história.
“Abraçamo-nos todos uns aos outros. Estávamos ali todos a chorar, agarrados à rede [da baliza]. Foi uma loucura”, exclama Joaquim Vidal. “Lembro-me de ter chegado [ao Porto] rouco, ainda”.
Antes de regressarem a Portugal, Joaquim e os seus companheiros de viagem percorreram as ruas com um polícia em cada esquina, e foram “comemorar para um restaurante grego”, onde comeram espetadas. “Teve de ser uma coisa mais restrita e fechada. Não podíamos andar na rua a fazer barulho”.
“Viemos todos felizes. Chegámos ao aeroporto [em Viena]. O João Pinto não largava a taça por nada”, recorda-se Manuel António.
Segundos em Portugal, primeiros na Europa
Na época 1986/87, o FC Porto, que era bicampeão, perdeu o título nacional para o Benfica. O título europeu descansou os adeptos portistas?
“Sim. Era o sentimento de sermos campeões europeus. Valia por qualquer título”, considera Joaquim Vidal.
“Há quem diga que o principal objetivo de uma equipa, quer do Porto quer do Benfica, é ser campeão nacional”, começa por responder Manuel Machado. “Eu concordo com isso se não houver hipótese de o primeiro objetivo ser a Liga do Campeões”.
“Um título europeu vale sempre mais que um título nacional”, afirma Manuel Machado, que justifica a sua resposta dizendo que “dá mais prestígio e dá mais dinheiro”.
Manuel António considera que a Taça dos Campeões Europeus compensou “perfeitamente” a perda do título. “Repare que nós lembramo-nos de 1987, ano de campeões europeus. O ano anterior ou posterior, já ninguém se lembra. Isso é que foi aquilo que efetivamente nos marcou, que nos definiu como portistas”.
Olhando para os 13 jogadores do Porto que estiveram em campo, Joaquim Vidal e Manuel Machado referem que Paulo Futre foi o que mais os encantou.
“O Futre era um grande jogador. A forma como ele esteve lá em algumas jogadas de ‘massacre’. Notava-se que ele podia fazer a diferença e fazer com que a balança, pelo menos pontualmente, pudesse pesar para o nosso lado”, disse Manuel Machado.
A resposta de Manuel António recaiu sobre Madjer, não por causa do golo, mas sim pelo esforço físico que o argelino fez na reta final do jogo. “O que realmente está na minha mente é o Madjer estar com dificuldades e depois entrar para o golo do Juary. Isso foi o que me ficou mais marcado”, revela.
Uma nova era
Desde aquele dia em Viena, o Porto venceu mais seis títulos internacionais, tornando-se no clube português mais titulado internacionalmente. Em 1987, conquistou ainda a Supertaça Europeia e a Taça Intercontinental, que voltaria a conquistar em 2004. Voltou a vencer a renovada Liga dos Campeões nesse ano, já com um novo formato. Os “azuis e brancos” também conquistaram a agora Liga Europa por duas vezes, em 2003 e 2011.
Será que todo este sucesso internacional que os “dragões” tiveram nos últimos 30 anos nasceu quando o árbitro Alexis Ponnet apitou para o final do jogo no Prater?
“Sim, claro. Porque aí o Porto começou a ser um grande na Europa. Já qualquer equipa que defrontava o Porto pensava que tinha pela frente um campeão europeu”, afirma com orgulho Manuel António.
A opinião de Manuel António é partilhada por Manuel Machado, que chama à atenção das diferenças orçamentais entre as duas equipas. “Não era muito vulgar uma equipa dum país pequeno e com menos orçamento ganhar. Acho que o Porto começou a ser mais respeitado”, considera.
Antes de 1987, o Porto já tinha estado numa final europeia, a sua primeira. Em Basileia, no ano de 1984, defrontou a Juventus e perdeu por 2-1, na final da Taça das Taças. É precisamente este jogo que Joaquim Vidal diz que lançou o FC Porto na sua senda europeia.
“Acho que começámos a libertar as nossas mentes que também podíamos fazer qualquer coisa. A partir da década de 80, começámo-nos a libertar”, diz Joaquim, que afirma que o futebol português também beneficiou da vitória do Porto sobre o Bayern.
Jogar à Porto
Quando se fala do FC Porto e dos seus vários plantéis, há sempre uma questão que os portistas trazem à luz do dia: o que é jogar à Porto? E qual dos plantéis do Porto é que mais personifica essa máxima? Joaquim Vidal não tem dúvidas. É o de 1987.
“Jogar à Porto era aquilo. Com alma. Era aquilo”, considera Joaquim, que destaca João Pinto e Jaime Magalhães como portadores dessa raça. No plantel que terminou há pouco tempo a época 2016/17, Joaquim só vê Rúben Neves o único a “jogar à Porto”. “O resto é tudo com interesses. Querem dar o salto”.
Manuel António também é da opinião que o plantel de 1987 personifica mais o “jogar à Porto”, muito por causa de esta equipa ter conquistado o seu primeiro troféu internacional. “Mas as equipas posteriores, mesmo aquela que depois ganhou a Liga dos Campeões, tinham uma série de jogadores que personificavam isso”.
O Porto de 2017 tem “bons jogadores” mas é uma “equipa de miúdos que se calhar na hora de decisão sentem a pressão”, considera Manuel António. Mas o problema é a dificuldade que o clube tem em “substituir alguns jogadores”.
Manuel António referiu a equipa que ganhou a Liga dos Campeões, em 2004, sob a orientação de José Mourinho. Manuel Machado lembra-se essa como aquela que jogava mais à Porto. “O José Mourinho conseguia transformar os jogadores”.
Artigo editado por Filipa Silva