Há um “novo conceito de ‘criança'”, que tem tempo para sê-lo “à sua maneira”. Quem o diz é a socióloga Cristina Mocetão. “Hoje em dia, há uma mudança nas práticas e na gestão quer do tempo, quer das coisas com que as crianças vão interagindo”, diz.

A especialista em sociologia da família acrescenta, em entrevista ao JPN, que os recursos tecnológicos – como a internet, televisão e videojogos – “têm desempenhado um papel importante para a criança”. Com todos os benefícios da interação com sons e imagens, vem a “curiosidade”, que pode acabar por evoluir para “o vício”. Segundo a socióloga, “o uso desses recursos tecnológicos tem de facto prejudicado a criança, quer na sua formação intelectual, quer na sua formação social”. E, aqui, os pais têm um papel importante na definição do que é o tempo de ser criança. “Os pais têm pouco tempo com as crianças, o que tendem a compensar com telemóveis, tablets… e portanto, para a criança, isso é um tempo de uso do seu tempo de criança”.

Ou seja, ser criança, hoje, é também brincar com as novas tecnologias. Para além disso, o tempo de ser criança está muito associado ao tempo de estar com os pais, que cada vez têm menos disponibilidade.

Antigamente, “no tempo de criança dos pais”, a socióloga acredita que se “brincava mais com outras crianças ou com o chamado imaginário, inventavam-se coisas para brincar”. Hoje, diz que “as crianças são mais exigentes. Preferem brincar com recursos tecnológicos do que com os seus pares. Não digo que não haja esse interesse, mas não parece ser comum brincar com outras crianças, porque estão mais tempo sozinhas”. Mesmo com os pais em casa, ou com “outros agentes socializadores”, “estão sozinhas no seu espaço, no quarto ou na sala, interagindo com uma máquina, por isso, esse tempo é semelhante ao tempo de brincar”.

A interação entre pais e filhos

Nesta mistura de conceitos, a preocupação dos pais tem um papel importante. Cristina Mocetão acredita que “há uma preocupação por parte dos pais com a qualidade da relação”.

A socióloga diz que “hoje há uma maior preocupação por parte da sociedade em defender, em preservar a criança”. Cristina Mocetão acredita que isso é benéfico, porque significa que há preocupação em perceber “como se comporta a criança”. “É possível identificar se a criança é feliz ou não”, partindo da sua “qualidade de vida” e do tempo que passa com os pais, sendo que “10 minutos de qualidade são mais importantes do que uma hora quase sem interação”.

“No fundo ser criança é isto. Poder mexer, poder criar… E deixou-se isso um bocadinho de parte. Ainda lhes faz falta brincarem na terra”.

A especialista diz que não se pode afirmar que as crianças “de antigamente” são mais felizes do que as dos dias de hoje: “São contextos diferentes, épocas diferentes. Os desejos, as vontades são diferentes e portanto não se podem comparar, na minha opinião. Antes brincavam na rua, as brincadeiras eram outras, mas hoje em dia as crianças interagem muito mais com máquinas e são felizes”. Apesar das diferenças, o importante será “preservar as relações e interações sociais”. “Gerir as duas componentes”, é essencial porque “a criança tem curiosidade em acompanhar a evolução”. Família e escola devem trabalhar em conjunto, admite Cristina Mocetão.

E será viável continuar a sonhar com o tempo em que a criança brincava na rua? A socióloga diz que sim, “mas de forma diferente”. Os pais podem levar as crianças para brincar em espaços verdes, em vez de as deixarem nos “escorregas dos centros comerciais”. É certo que “antigamente havia menos carros, menos casas, mais campos, mais espaço que hoje não encontramos”, mas a especialista diz que “é importante as crianças saberem que existiu essa tendência e que poderá continuar a existir”. No entanto, acredita “que se consegue brincar e ser feliz na atualidade mesmo não fazendo uso das modalidades do passado”.

As atividades extracurriculares podem ajudar a “desenvolver competências”, mas a gestão do tempo das crianças é hoje um fator a ter em conta. “É importante que as crianças tenham atividades fora da escola porque promovem as relações sociais com os pares”, mas afirma: “Hoje a criança tem o seu tempo ocupado. Entra para a escolinha, depois tem as atividades, mas aquilo que verificamos é que há pouco tempo”. “A criança está muito ocupada e o tempo com os pais e com a família é escasso. A solução pode passar por mudar algumas rotinas, conversar mais à hora do jantar e desligar a televisão”, diz a especialista.

A preocupação também passa pelos professores

Ana Barbosa é professora do ensino básico há 20 anos. Atualmente, acompanha uma turma do 1º ano no Agrupamento Fontes Pereira de Melo e tem notado diferenças quanto aos interesses das crianças: “Talvez por causa das questões ambientais e tecnológicas, mas mais as tecnológicas”. “Eles estão habituados a estar em casa em frente ao computador mas para nós, enquanto professores e educadores, é muito bom poder trazê-los e estar em espaços verdes”, assegura Ana. E é mais fácil ou mais difícil entreter as crianças na atualidade? “Depende daquilo que queremos fazer”, diz, referindo-se à diferença entre entreter e divertir. “Hoje em dia dar um tablet é mais fácil para entretê-los, mas se queremos que eles se divirtam mesmo é mais complicado”, acrescenta.

As crianças têm tempo para ser crianças? A professora Ana Barbosa é perentória: “Infelizmente não têm como desejávamos. Passam muito tempo na escola, das nove às cinco, e pouco tempo com os pais”. Ana refere ainda que os trabalhos de casa acabam por roubar tempo à infância. Enquanto tenta que os alunos continuem os trabalhos manuais especiais do dia da criança sem problemas, desabafa: “No fundo ser criança é isto. Poder mexer, poder criar… E deixou-se isso um bocadinho de parte. Ainda lhes faz falta brincarem na terra”.

“Foi o pai Natal” que deu um “telemóvel grande” a Martim. O menino de seis anos conta que passa “muito tempo” a brincar com ele, mas entre o que gosta mais – do brinquedo ou de passar tempo ao ar livre – diz “os dois”. Nunca fez atividades extracurriculares porque diz que nunca quis, mas assegura: “Eu estou sempre a pedir à minha mãe para jogar à bola, mas ela não deixa…” Perguntamos porquê. Martim responde: “Não sei… Hum… Se calhar é porque está frio”.

“Agora os adultos querem vê-los crescidos muito rápido”

Há quase 30 anos que Eduarda é educadora na Associação Criança e Vida. Considera que “as brincadeiras são muito diferentes por causa das tecnologias, mesmo em casa com os pais. Aos fins de semana vão ao shopping, em vez de irem passear”. Para cativar as crianças, acredita que “a motivação tem de ser maior porque os interesses são diferentes”. A educadora afirma que as crianças têm tempo para o ser “à medida delas”. Conclui: “É uma vivência diferente. Agora os adultos querem vê-los crescidos muito rápido”.

Um grupo de crianças junta-se rapidamente. Todos querem contar mais sobre as brincadeiras que gostam de fazer, mas são raros os que não têm um tablet ou um computador. Núria, de 5 anos, conta que gosta de “brincar na relva e jogar à bola” e no tablet passa “pouco tempo, porque a mãe não deixa”. Não lhe faz muita confusão: “Gosto mais de brincar cá fora”. Raros são os que não têm uma atividade extracurricular: “Eu ando na música, mas a Matilde anda na dança e a Marta também. E a outra Matilde também”.

Mais velho, Armando, de 12 anos, tem o futebol como passatempo. Considera que conversa muito com os pais, ainda que o telemóvel também seja uma distração: “Passo bastante tempo no telemóvel, sim, mas os meus pais deixam, não se queixam…”. Ao fim de semana, confessa: “Não passeamos muito ao ar livre, normalmente vamos ao shopping”.

Artigo editado por Filipa Silva