Às nove e vinte da noite já é quase impossível contar todas as cabeças que aguardam junto ao posto de turismo da Praia de Matosinhos. A lua não está cheia, mas há luar.

Todos os meses, “na noite de lua cheia, ou muito próximo dela”, Joel Cleto conduz visitas por todo o concelho – uma iniciativa a que chamou “Moontosinhos”. Desta vez, e em altura de festa na cidade, visitam-se as histórias e lendas do Senhor de Matosinhos.

O “Moontosinhos” de junho, marcado para o dia 1, abriu seis dias de “animação nas Festas da Cidade”. A noite também é de José Cid, mas às nove e meia, hora marcada, o espaço à beira da praia está mais do que preenchido e continuam a chegar mais pessoas. O frio faz-se sentir, mas vê-se bem que os participantes vieram preparados.

Com um microfone na gola e de camisa azul, chega Joel Cleto, ao lado do vice-presidente da Câmara de Matosinhos, Fernando Manuel Rocha. Esta noite é mais especial: o restauro do zimbório do Senhor do Padrão acabou e será a primeira vez que vai ser possível visitá-lo. “Tenho o privilégio…”, diz o historiador, antes de tirar a chave do bolso. “Vamos levantar o véu… Terminou hoje a intervenção”, disse.

Joel Cleto e o Vice Presidente da CM Matosinhos

O Vice Presidente da Câmara de Matosinhos esteve presente no início da sessão Francisco Teixeira/CMM

Mas ao zimbório, já lá vamos. A visita vai começar uns metros ao lado do posto de turismo, para sul, mesmo na entrada da praia, e acaba no “Santuário, epicentro das festividades sacras” que se vivem estes dias na cidade.

Falam de cima do muro para a multidão que se juntou para os ouvir. O vice-presidente da Câmara Municipal de Matosinhos lembra a primeira visita, há cerca de três anos. “Estava mais frio, mas o número de pessoas era sensivelmente o mesmo”. Agradeceu aos resistentes e aos que se foram juntando. Na verdade, Joel Cleto vai contar uma história que já contou, precisamente na primeira sessão do Moontosinhos. Pede desculpa por isso aos “resistentes”, aos que vão dizer “Ei Joel, já ouvimos isso!”, mas “não podia deixar de contar”.

Entretanto, levanta-se a pergunta: “Alguém tem pilhas?”. E explica: “Estou com um pequeno problema. Não tenho pilhas, por isso, quem está a tentar sintonizar é normal que não esteja a ouvir nada”. O microfone tem uma razão de existir, tal como há uma explicação para todas as pessoas que ali estão de auriculares nos ouvidos. Há uma frequência de rádio que Joel usa para se fazer ouvir: 87.5. Esta noite, parece que a voz vai ter de lhe chegar.

À entrada da praia de Matosinhos, a visita noturna começa então com a lenda de Cayo Carpo, um poderoso da região, que acreditava nos deuses romanos, como todos por ali. Segue-se até ao casamento dele, naquela mesma praia, que quando estava maré baixa permitia andar do local onde está o Castelo do Queijo até ao Farol da Boa Nova. “Vamo-nos transportar até ao areal, imaginar a festa. E a meio da festa…” há uma corrida de cavalos, do areal para a água. Quem for mais longe ganha. “Imaginem agora os cavalos mais pequenos a ficarem para trás… Alguns ainda a correr, outros já nadavam… E o noivo à frente, com enorme adianto”. A história é contada (e ouvida) com grande entusiasmo. “Não se esqueçam onde estamos, vamos fazer um intervalo”.

O intervalo é só uma viagem para outra história. A aventura de Tiago, discípulo mais novo de Jesus, que recebeu a missão de vir “até ao fim do mundo”, Finisterra, na Península Ibérica para converter as pessoas. Regressou à Palestina e acusado de ser Cristão, foi morto, “decapitado”. Os peninsulares decidem depois trazê-lo de Jerusalém até Compostela. Em rápidas palavras, foi uma viagem atribulada, “cheia de peripécias e repleta de milagres”, que eventualmente se cruza com a tal corrida de cavalos de Cayo Carpo.

Joel perde-se no conhecimento que tem. Quase sem querer, vai à criação do nome “Compostela”, às primeiras rotas dos caminhos de Santiago, e, enquanto gesticula, passa pelo tempo das “guerras, Visigodos, Vândalos, Vikings, Muçulmanos” em tom de brincadeira e exagero, sublinhando depois que não terá sido bem assim. “Mas pronto, assim muito rapidamente, foi isto”.

Cayo Carpo ia na frente porque cavalgava sobre a água. Ia em direção a um barco de pedra que flutuava e que transportava o corpo de Tiago, o decapitado, mas que tinha a cabeça colada ao corpo. Com tanto milagre, o romano é convertido ali mesmo. Batizado, retorna assim à praia para contar o que viu. “Mas… desaparece a meio do regresso”. Um novo milagre salva Cayo e o cavalo – Vieiras cobrem os corpos e trazem-nos em segurança até à praia, onde estava “muita gente, mais do que a que está aqui hoje”, e onde se diz que chegaram “matizados”.

Este é o início que Joel quer que conheçamos sobre Matosinhos: o nome, a ligação a Santiago de Compostela, o surgimento das vieiras, Cayo Carpo – o início da prematura ligação da terra ao cristianismo, e que abre portas à lenda do Senhor de Matosinhos.

"Tragédia do Mar"

A “maior tragédia da costa portuguesa” aconteceu em Matosinhos e foi imortalizada pelo pintor Augusto Gomes Francisco Teixeira/CMM

“Mas para continuar, vamos ali mais à frente”. O historiador foge e há quem corra para não o perder. Quer levar-nos às estátuas que simbolizam a “maior tragédia da costa portuguesa”, que ficam uns metros mais a norte. “Tragédia no Mar” é a representação do quadro de Augusto Gomes com o mesmo nome. O pintor imortalizou o que se viveu naquela praia, depois de muitos pescadores se lançarem ao mar num momento de calmia a meio de uma tempestade “das que faz fechar a barra de Leixões… que nunca fecha”. Esta é “uma praia de muitos milagres e muita história”, mas onde agora reina o “lazer”.

A interrupção começa a ser frequente, mas ninguém leva a mal. A fome e a sede de conhecer é cada vez maior, tal como a multidão. Dali ao zimbório do Senhor do Padrão são dois passos. A chave que era um “privilégio” é usada e o “véu” é levantado.

Há quem entre e se sente nas escadas, e quem fique do lado de fora das grades do zimbório. Desse lado, subitamente, ouve-se “Joel!” e caem umas pilhas. Alguém grita “É milagre!” Há risos. “1, 2, 3, 1, 2, 3, estão a ouvir? 87.5, estamos a transmitir Moontosinhos”.

O zimbório do Senhor do Padrão é o sítio onde se diz ter aparecido a imagem do Senhor de Matosinhos, trazida pelo mar que chegava ali, e que “não vemos porque estamos em 2017”. Com um jardim arranjado à volta, Joel explica que tudo seria areia. Aliás, corrige: “não vou pedir a ninguém para fazer isso, mas se levantarem a relva, ainda há areia”. A ideia de que por ali já passou muita história está presente e dá cada vez mais magia à noite, ao luar, à cidade.

Joel mistura história e geologia e fala dos leixões, “enormes rochedos, em forma de semicírculo” e que acabavam por criar um “porto de abrigo natural”. “Entre os rochedos e a praia, o mar era mais calmo”. Numa viagem ao presente, refere o Porto de Leixões. Todos percebem a ligação.

A viagem pelas lendas continua, depois de uma explicação importante. “Se eu vos disser agora aqui que ‘Era uma vez…’, vocês acham que é uma história. Agora, se eu disser ‘No dia três de maio de 124…’ já vos parece mais verdade”. A data é referente ao dia em que se diz que a imagem de Cristo crucificado foi encontrada intacta, entre os leixões, apesar de sem um braço. Mas Joel Cleto relembra que as lendas são verdade até para os mais eruditos e faz a chamada de atenção: “O dia 3 de maio também é o dia da intervenção da Santa Cruz…”. Uma pequena coincidência que precisa de ressalvar, mas que não desfaz o misticismo em que está envolta a cidade.

“Matosinhos não nasceu aqui à beira do mar”, e a famosa imagem – à qual faltava um braço – foi primeiro transportada para a igreja de Bouças, local que o historiador descreve como “a Maia medieval”. A história do braço já será mais conhecida. Mas Joel mantém-se fiel à noite de lua em Matosinhos e conta novamente: “Faziam braços, mas ou a madeira não combinava, ou se a madeira combinava, não encaixava, ou se a madeira era a mesma e o braço até encaixava”, “caía”, comenta uma senhora para o marido. “O braço acabava sempre por cair”, confirma Joel Cleto.

“E um dia, uma mulher pobre que tinha andado à procura de madeira” tenta pôr na lareira um dos pedaços que tinha apanhado. O pau teimava em saltar do fogo depois de todas as tentativas, até que a filha da mulher avisa: “’Mãe, não podes pôr isso na lareira porque é o braço do Senhor de Matosinhos’, mas…”. Joel pára e, enquanto ri por saber que já há quem saiba o final da história, diz “Aqui faltava o som… ‘Tan tan tan’”. Continua a rir e enquanto abana a cabeça diz: “Faço sempre este número”. Continua: “A filha era surda e muda desde nascença”. Quem encarar hoje a imagem do Senhor de Matosinhos “não consegue dizer qual o braço” perdido, assegura. No local onde apareceu a imagem milagrosa, construiu-se o cruzeiro, uma das partes do Senhor do Padrão.

No monumento, ainda se vê um andaime. Sobre o restauro, disse Fernando Manuel Rocha que a vontade é que “daqui a 200 ou 300 anos, quando quiserem restaurar, não digam o que nós dissemos quando restaurámos” o senhor do Padrão. Esta é a grande novidade da noite, e não há dúvida que houve quem se juntasse ao pelotão comandado por Joel Cleto exclusivamente para ver o resultado. Tiraram-se azulejos e cimentos mais recentes para “devolver a traça original ao monumento”, e a próxima mudança são as estátuas de Mateus, Marcos, Lucas e João, que ocupam os quatro cantos do zimbório. As caras já não se distinguem. A chuva e o tempo apagaram os traços às quatro imagens que vão para o museu da Santa Casa da Misericórdia, a par dos tais “elementos que foram acrescentados mais tarde”. As réplicas para o zimbório estão a ser preparadas e vão substituir as originais.

“Mas a pergunta que ainda ninguém fez… Também porque não me calo… É: que imagem era essa afinal? Quem a fez?” Justamente. A imagem, que surge intacta e apenas sem um braço numa zona onde morreram mais de 150 homens na “maior tragédia da costa portuguesa”, o maior símbolo de Matosinhos, vem de onde? Joel pergunta e responde: “Até lá chegarmos, ainda vamos a muitos sítios”.

“Ó Dr., e agora vamos para onde?”, pergunta alguém. As respostas são dadas aos bocadinhos mas não causam desistências. Pelo contrário. “Já viste que agora está muito mais gente do que no início?” ouve-se. Do outro lado, e alcançando Joel Cleto, “Deixe-me dizer-lhe que outro dia falou do Palacete, na outra visita, e a escola também chegou a ser lá, eu fui do primeiro ano em que a escola funcionou lá”. A conversa entre o historiador e a participante fiel das sessões do Moontosinhos tem de continuar em movimento. Não há tempo a perder.

Rua heróis de França

A rua heróis de França encheu-se de participantes do Moontosinhos Luísa Correia

A rua heróis de França é o caminho a seguir para chegar ao Mercado de Matosinhos. A rua está cheia no que parece ser uma procissão. À porta dos restaurantes, as pessoas olham incrédulas. “De onde saiu esta gente toda?”, pergunta quem passa no sentido contrário. Ninguém lhes responde. O passo está apressado e duas senhoras de auriculares nos ouvidos comentam: “Ele não para, é sempre a andar!”.

Até ao Mercado, passamos ainda pelo antigo bairro dos pescadores e pelas “linhas de casas que se nota perfeitamente onde foram cortadas para a construção do Porto de Leixões”. Esse é outro dos pontos fulcrais da cidade de Matosinhos e que não é esquecido. O alargamento e aprofundamento do rio Leça e a construção do Porto causou grandes danos à forma como a cidade e as pessoas estavam organizadas.

“As pessoas acham que Matosinhos é uma cidade recente e que não há uma ‘zona antiga’ – e não estou a falar de Bouças! – mas o lugar de Matesinus, junto às margens do rio Leça, desapareceu. Aliás, se há cidade que mudou com o processo industrial foi Matosinhos por causa do Porto de Leixões”. Desapareceram “quarteirões e quarteirões, mercados, jardins, igrejas, pontes”, para que o rio fosse alargado e aprofundado. Este processo tem também influência no nome da “praia do Aterro” em Perafita, onde foram depositados os sedimentos do fundo do rio Leça. “Já nesse tempo as pessoas eram despejadas assim…”, faz a graça em tom sério, antes de continuar o percurso.

Moontosinhos no Mercado

A sessão de junho passou pelo “incontornável” Mercado de Matosinhos Luísa Correia

“Já vi políticos com menos gente no Mercado”, o local “incontornável”, e uma das primeiras grandes obras de arquitetura, ainda nos anos 30. Ao fim de alguns minutos, ouve-se: “Epa, ainda não entraram todos?” A conversa sobre o mercado, sobre Matosinhos, sobre tradições, sobre as calhas e ruelas prolonga-se.

Por volta das onze e um quarto, Joel avisou: “Temos de terminar à meia-noite, porque senão… transformamo-nos todos em abóboras”. Chegados à paragem final da visita do Moontosinhos de junho, encontramos o adro da Igreja fechado. A ideia era entrar, mas com a aproximação da meia-noite, o portão teve de ser fechado. “Deixem-me então contar-vos o resto da história…” O discurso final é feito em plenas escadas da igreja do Senhor de Matosinhos.

A imagem, conta, teria sido feita por Nicodemos, que tirou Jesus da cruz e o levou para o sepulcro. Contam-se outras três, cinco ou mais iguais, feitas por este senhor “que tinha jeito com a madeira” espalhadas pelo mundo com lendas muito semelhantes. Atiradas ao mar quando Nicodemos foi perseguido, “a mais perfeita de todas, a primeira de todas” veio ter mesmo a Matosinhos. “As lendas são muito bairristas”. “Atravessou o Mediterrâneo, contornou a península ibérica, resistiu aos leixões de Matosinhos e chegou cá no dia três”, sublinha. A imagem do Senhor de Matosinhos não pode ser tão antiga assim, afirma o historiador, mas é, hoje, por várias circunstâncias, “a representação mais antiga em tamanho real de Cristo crucificado que há em Portugal” e isso, por via de lendas, milagres ou fantasia, ninguém tira a Matosinhos.

Artigo editado por Filipa Silva