A vila de Pedrogão Grande e algumas aldeias no distrito de Leiria estão, desde este sábado, sob o olhar atento de todo o país. Um incêndio com várias frentes ativas alastrou a vários hectares de mato, floresta, estradas, casas e dizimou (até ao momento) a vida a 63 pessoas. Autoridades, responsáveis políticos, jornalistas e cidadãos anónimos rumaram a Leiria, com o intuito de prestar auxílio às vítimas do incêndio e de reportar tudo o que aconteceu e que continua a acontecer — o fogo em Pedrogão Grande continua ativo. Esta segunda-feira, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) abriu um processo de averiguações face à cobertura noticiosa do sucedido. O JPN falou com jornalistas e especialistas para entender o papel do jornalismo numa tragédia nacional.
Ainda durante o fim de semana e após a confirmação de 19 mortes no sábado à noite, vários órgãos de comunicação social portugueses viajavam nas horas seguintes para o distrito de Leiria, onde já alguns correspondentes e media regionais, estavam desde a tarde, a reportar as primeiras horas do incêndio. António José Teixeira, diretor adjunto de informação da RTP, confessa que a tarefa de mobilizar recursos para Pedrogão Grande não foi fácil. “A principal preocupação, não só da RTP, mas também de toda a comunicação social, foi a de estar próxima dos acontecimentos, de poder relatar na sua amplitude”, diz ao JPN.
À necessidade de estar presente, vinha uma série de problemas de logística, agravados pela falhas na comunicação que se registavam há bastantes horas. “Do ponto de vista logístico foi difícil: em poucas horas à noite, colocar no terreno, meios suficientes para dar a atenção devida a um acontecimento desta dimensão”, explica o jornalista.
A imagem foi um dos principais elementos que levou a ERC a levantar um processo de averiguações. Até esta segunda-feira, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social recebeu mais de 100 queixas relativas a uma reportagem televisiva emitida no telejornal da noite na TVI. Essas mesmas participações de cidadãos “contestam o plano televisivo em que aparece um dos cadáveres da tragédia”, lê-se no comunicado. No mesmo documento, é referido que a ERC, “consciente do estado de choque em que o País se encontra, sintoniza-se com a sociedade portuguesa e espera que a comunicação social seja de uma sensibilidade profissional a toda a prova, neste momento de luto nacional”.
O diretor adjunto de informação da RTP esclarece que os jornalistas não necessitam de “regras novas” para saber como devem tratar acontecimentos como o incêndio de Pedrogão Grande. Para António José Teixeira, o Código Deontológico do Jornalista é muito claro nesse aspeto. “Não precisaríamos de regras novas para uma situação como esta. A nossa deontologia deve-se aplicar a tudo, até nestes acontecimentos mais difíceis e ‘pesados’. Não é diferente de tudo o que resta”, esclarece.
“Queremos que vejam o nosso trabalho com respeito e isso só acontece, se tivermos o mesmo respeito”, acrescenta António José Teixeira.
Consciente do poder que as redes sociais detêm hoje na crítica aberta aos jornalistas e ao seu trabalho, o diretor de informação adjunto do canal público afirma que tal “não deve condicionar o trabalho”. Quanto a excessos cometidos na cobertura noticiosa em Pedrogão Grande, prefere não comentar. Uma atitude de sobriedade é o que acredita que deve ser a linha guia dos media portugueses no terreno. “Não significa ignorar ou esconder, devemos ter respeito perante as tragédias e não explorar de forma gratuita as imagens mais impressionáveis”, diz.
“Houve uma resposta profissional de jornalistas portugueses”
Também esta segunda-feira, o Sindicato dos Jornalistas (SJ) utilizou a mesma palavra, “sobriedade”, para apelar aos meios de comunicação social o respeito pelas regras éticas e deontológicas do jornalismo, quando estivessem a acompanhar os desenvolvimentos do incêndio em Pedrogão Grande. Em comunicado, o SJ elogiou “o trabalho competente e sério com que muitos dos repórteres têm acompanhado os trágicos incêndios que assolam Portugal”.
São José Almeida, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, explicou isso mesmo ao JPN. Para a jornalista, não há “perguntas proibidas e tudo deve ser noticiado”, no entanto reafirma o cuidado “nas declarações e nas imagens, para não se expor de forma abusiva a morte e o sofrimento”. A par da interpelação e da audácia que um profissional deve ter no terreno e na redação, de modo a fazer chegar a informação aos cidadãos, a ética e a deontologia não ficam na sombra. “Os jornalistas devem ter em conta um princípio deontológico que é a não exploração da dor alheia”, afirma São José Almeida.
Embora reconheça que existiram alguns percalços na cobertura noticiosa de Pedrogão Grande, e os quais “não quer pormenorizar”, a presidente do Conselho Deontológico do SJ faz um elogio genérico aos jornalistas que têm trabalhado sobre o acontecimento. “Os órgãos de comunicação social multiplicaram-se em esforços e presença. Houve uma grande resposta profissional de jornalistas portugueses perante a tragédia”, explica.
“É muito fácil um jornalista emocionar-se e não perceber a linha ténue entre interesse público e voyeurismo“
Suzana Cavaco, professora de Ética e Deontologia Jornalística na Universidade do Porto, também não aponta muitas falhas à cobertura noticiosa de Pedrogão Grande. Mas tal como São José Almeida, reconhece exceções à regra, as quais preferiu igualmente não se pronunciar.
A docente compara o sucedido durante os últimos dias, na vila de Leiria, à tragédia da Ponte Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva, da qual resultou um considerável número de mortes em 2001: cerca de 59 pessoas morreram após o colapso da ponte. Nesse ano, Suzana Cavaco considerou que “o jornalismo não esteve à altura”: “Não vou culpar as pessoas que estavam no terreno, mas não estavam preparadas e estavam emocionalmente muito envolvidas”, diz.
De entre os erros, perguntar aos familiares das vítimas mortais — “Como se sente?” — foi dos mais graves, na opinião da professora de Ética e Deontologia Jornalística. “Essa pergunta pode ser pornográfica, do ponto de vista sentimental. Qualquer jornalista com empatia, pode imaginar o que a pessoa sente. Não precisa de fazer essa pergunta”, explica Suzana Cavaco.
Num incêndio, desta dimensão e com as consequências nefastas que teve, torna-se ainda mais importante reforçar “a linha ténue entre o interesse público e o voyeurismo”. Tal pode ser combatido através da seleção e do enquadramento dos conteúdos, nomeadamente as imagens transmitidas nas fotografias e na televisão. “Eu questiono se faz sentido utilizar tanta labareda, porque os pirómanos focam a sua atenção nas labaredas. Não sei até que ponto essa labareda é interesse público”.
Já quanto à emoção que alguns jornalistas possam deixar transparecer num cenário como o de Pedrogão Grande, a docente é pragmática: “É muito fácil um jornalista emocionar-se e não perceber a linha ténue entre o interesse público e o voyeurismo. Mas um jornalista é um ser humano, ponto”, conclui.
“Tenho em primeiro lugar um grande respeito e uma grande compreensão por eles”
Para Joaquim Fidalgo, professor de Jornalismo na Universidade do Minho e ex-provedor do leitor no jornal Público, não se pode desvalorizar o trabalho de um jornalista num cenário como o de um incêndio. Porém, acrescenta que embora seja mais fácil culpar quem está no terreno, os erros não são muitas vezes atribuídos a quem de direito: “O que muitas vezes acontece é que as pessoas que estão nas régies e nas redações acabam por ser os verdadeiros responsáveis por alguns exageros. Acabam por dizer ‘aguenta isto’, ‘olha aquilo’ nos diretos”.
O professor universitário, que é naturalmente um ávido consumidor de informação, salienta que tem visto conteúdos muito relevantes jornalisticamente. “Acho que as coisas estão a correr bem”, afirma. No entanto, relembra: “Temos de ter respeito pela dor das pessoas, lá pelo facto de ser jornalista, não podemos entrar pelas casas ou vidas delas como se fôssemos os donos”. Para José Fidalgo, o mesmo respeito estende-se aos profissionais, os quais analisa com pormenor e sobre quem reflete todos os dias. “Tenho em primeiro lugar um grande respeito e uma grande compreensão por eles [jornalistas]”, remata.