Uma criança começa a dar os primeiros passos. Põe-se de pé e, de repente, cai no chão. Tem uma perna partida. Começou assim no caso de Fátima Gil. Ao longo da infância, sofreu múltiplas fraturas. Chegou a partir as duas pernas e os dois braços. Na altura, o pai levou-a ao hospital de São João. Fátima soube logo. “Disseram-me que tinha uma doença rara”, recorda.
Os médicos também sabiam. Estavam perante uma situação desconhecida. Só havia uma certeza. O problema não tinha cura. Apenas o tratamento podia ajudar. Mais tarde, chega a primeira pista. É uma doença hereditária. Fátima conseguiu ter cinco filhas. Só a mais velha nasceu saudável. As outras, sabia-se, tinham a mesma patologia da mãe. Mas a situação não foi detetada à nascença. Descobriu-se durante o crescimento das crianças. Fraturavam os ossos ao mais pequeno acidente.
A cor dos olhos também denunciava o problema. As quatro meninas tinham as escleras azuladas. Tal como a mãe. Os médicos admiravam-se. Uma equipa de profissionais do São João chegou até a fotografar Fátima e as filhas. “Eles precisavam de estudar o nosso caso. Por isso, tiraram a fotografia. Era para saberem que tínhamos todas a mesma doença. Menos a minha primeira filha”, explica Fátima.
E o dia tão esperado lá chegou. Tarde ou não, o problema foi descoberto. Fátima e as quatro filhas tinham – e têm – a “doença dos ossos de vidro”. A osteogénese imperfeita (OI), na gíria médica. O nome diz tudo. Há uma formação defeituosa dos ossos. Quebram ao menor trauma. Estávamos nos anos oitenta. Fátima conta que “nem os médicos conheciam a doença”.
“Todas as doenças raras têm o problema do desconhecido”
É um problema típico das patologias raras, afirma a presidente da Associação Portuguesa de Osteogénese Imperfeita (APOI). Para Maria do Céu Barreiros, “todas têm o problema do desconhecido”. E ainda hoje é assim. O caso da OI não é diferente. É fundamental a troca de informações entre os médicos e a criação de núcleos de interesses” para promover o conhecimento, realça.
Em Portugal, não há sequer um número exato de doentes com a patologia. Os especialistas ficam-se pelas estimativas. “Pelo menos 600”, avança Céu Barreiros. E “muitos doentes nem estão diagnosticados”. Há três décadas, compreende-se, discutia-se pouco e sabia-se ainda menos. Mas, no caso de Fátima Gil e das filhas, o diagnóstico chegou.
Havia uma família grande para sustentar. Mas Fátima não podia. Não com a doença. A solução foi a pré-reforma aos 34 anos. Hoje, aos 67, Fátima felicita-se. Conseguiu escapar a uma vida mais complicada. Mas nem por isso consegue evitar os efeitos da patologia. Dores diárias, constantes, e uma coluna encurvada. Sinais da idade, diriam algumas pessoas. Errado. A osteogénese imperfeita, por si só, causa o encurvamento dos ossos. Lento e progressivo.
“Tenho muitas dores na coluna. Ando à rasca. Tenho dificuldades a dormir e a virar-me na cama. As pernas prendem-me. Já fui ao médico e disseram-me que era a coluna. Agora estou à espera para ser operada. E já fui operada antes, à anca. Tenho uma prótese”, desabafa. Apesar do mal-estar crónico, Fátima não vive a dor de uma fratura há três anos. Graças ao pamidronato. O fármaco fortalece os ossos.
O tratamento parece estar a dar frutos, mas é preciso mais. A precaução continua a ser a máxima. A carta guardada na mala de Fátima é a prova. “Certifica que, se cair na rua, tenho de ser levada de imediato para o hospital de São João, que é onde estou a ser seguida”, conta. Fátima nem pensa em deixar o documento em casa. É a garantia de uma resposta médica mais rápida.
Ao lado de Fátima estão três das cinco filhas. Paula, Eva, ambas com OI, e Luísa, sem a doença. Também falaram ao JPN. Eva é a primeira a dar a palavra. Tem 32 anos. Recorda fraturas no braço, num dedo e num pulso. E na perna. O fémur partiu mal deu o primeiro passo. Hoje em dia, felicita-se por conseguir viver sem tratamento. As fraturas já passaram. Agora não há dores.
A vida continuou sem problemas. Conseguiu engravidar e tudo correu bem. Nasceu a Vitória. Só não houve um parto normal, como Eva queria. “A médica disse-me para nem pensar nisso, porque a Vitória podia vir mais gordinha e eu partir a coluna, por não ter corpo suficiente”. Eva não queria acabar numa cadeira de rodas. A alternativa viável era a cesariana. E assim foi.
A própria Vitória obrigou os médicos a redobrarem os cuidados. A menina herdou a doença da mãe. Podia fraturar algum osso ao sair do útero. Não aconteceu. “Disseram-me que o problema dela era mínimo”, conta a mãe. Mas o caso veio a revelar-se mais grave. Vitória partiu um fémur ao começar a andar.
O problema passava com normalidade. Vitória até recuperava bem. Mas voltava sempre à estaca zero. Tirava o gesso e vinham mais fraturas. Sofreu cinco só na perna esquerda. Agora os cuidados são muitos. Até porque, com 6 anos, a menina já tem mais noção da doença. “Ela própria reconhece que não pode fazer certas coisas”, explica a mãe. “Não pode correr tanto, porque pode cair e partir um osso”. E já aconteceu. “A minha filha, por um pequeno tombo, só por bater com o rabo no chão, partiu a tíbia”, conta.
Há um termo para explicar tais situações. “Fraturas patológicas”. É a expressão usada por Anabela Bandeira, médica pediatra responsável pelo caso de Vitória. “Estamos a falar de fraturas por traumatismos minor, ou seja, aquilo que causa a fratura não é suficientemente forte para tal numa criança saudável. Ninguém está à espera de ver uma criança partir um osso por pequenas quedas na relva”, exemplifica a especialista do Hospital de Santo António.
“A Osteogénese Imperfeita é uma patologia muito heterogénea”
A doença não é nova para Anabela Bandeira. É das poucas profissionais de saúde com conhecimento de causa. Acompanha várias famílias com o problema. E faz questão de salientar que cada caso é um caso.
Com maior ou menor gravidade, explica Anabela, “a osteogénese imperfeita dói”. “A maioria dos doentes tem uma dor óssea crónica. E dói quando fraturam algum osso. É errado pensarmos o contrário. Há também uma agravante. Os ossos podem ficar deformados e impossibilitar a marcha. É por isso que temos doentes com canadianas ou cadeira de rodas”.
Vitória não tem o mesmo problema. Anda pelo próprio pé. A mobilidade não ficou afetada com as fraturas. Mas também toma pamidronato. A ideia é evitar futuras complicações. Tratamentos à parte, Vitória e a mãe podem respirar de alívio. A menina tem uma vida como qualquer criança. É verdade, as sentinelas estão sempre ligadas. Na escola, em especial, é preciso muita atenção. “Mas os meninos nunca colocam a Vitória de lado”.
Focamos a atenção em Paula Gil e surge uma curiosidade. “Já parti muitos ossos. Fui a que parti mais”, conta a senhora de 44 anos. Mas o tom é de descontração. Nos últimos tempos, não tem havido complicações. Paula toma cálcio e mostra-se bem. A maior dor de cabeça era o joelho. “Já fui operada três vezes. Tinha parafusos, mas já mos tiraram”. Já passou, diz com alívio. Paula é seguida no São João e tudo corre pelo melhor.
Pode dizer-se o mesmo em relação ao neto, o Santiago. Sim, também nasceu com a doença. Mas, em dois anos de vida, nunca partiu nenhum osso. Uma conquista para quem vive a infância com OI. Agora avizinha-se a próxima etapa – o infantário. As educadoras, garante a avó, vão ficar de sobreaviso. “Têm de andar mais em cima dele”.
Na escola ou em casa, todas as ajudas são bem-vindas. Luísa Gil está cá para tal. “Sempre que puder, ajudo”. Foi a única a esquivar-se da bala da OI. “Sinto-me privilegiada, porque não nasci com essa doença. Mas custa-me muito ver a minha família assim”, remata. É quase inevitável. A osteogénese imperfeita não afeta apenas os doentes. A família também atravessa momentos de dor e luta, sobretudo quando há crianças envolvidas. Os planos da vida idealizada têm de mudar.
A família Batista, mais um caso de luta
Outro exemplo está na família Batista. A rotina de Nuri mudou por completo. O filho, agora com 2 anos, nasceu com OI. O caminho para a descoberta da doença foi duro. “Começamos a desconfiar ao longo do tempo por causa das fraturas”, diz a mãe. A primeira aconteceu na clavícula. Passou. Quando tinha um ano e meio, surge a segunda. Cândido parte o fémur de forma inesperada. Aí, sim, Nuri ficou com a pulga atrás da orelha. O diagnóstico de OI chega com a terceira fratura, no pulso direito. “Foi a confirmação”.
Os sucessivos episódios de ossos partidos são difíceis de gerir. E, nalguns casos, a situação torna-se mais complicada nos próprios hospitais. Alguns médicos, menos sensibilizados para a questão, chegam a acusar os pais de maus tratos.
“É um problema com o qual as famílias têm de lidar, sobretudo se for o primeiro caso da doença”, explica Céu Barreiros. Mas Nuri nunca se deparou com situações do género. “Temos sido muito bem tratados”. É assim e o caso do filho é mais raro. Não há um histórico familiar do problema. Mas a doença bateu à porta na mesma. De resto, Nuri quer saber porquê. “Vamos fazer um estudo genético ao Cândido para perceber de onde é que isto vem. Preciso de saber por todos os motivos e mais algum. Até porque o Cândido também pode transmitir aos filhos. E temos adiado a decisão de ter filhos, porque podem nascer com a doença”, desabafa.
“As pessoas com OI são perfeitamente inteligentes e capazes de se integrarem na sociedade”
Nuri teme pelo futuro do filho. Há o medo do desconhecido, sentimentos de confusão e até de culpa. São preocupações normais, segundo a presidente da APOI, mas cair em excessos é desnecessário. “Se bem que a OI pode ser incapacitante do ponto de vista físico, as pessoas não são afetadas em nada do ponto de vista intelectual. São pessoas perfeitamente inteligentes e capazes de se integrarem na sociedade”, explica.
As dificuldades poderão surgir nas formas mais graves da doença. “Por vezes, a aparência fica francamente alterada e isso é muito estigmatizante. A sociedade é pouco aberta a pessoas diferentes”. O acesso ao emprego também é uma preocupação, para Céu Barreiros. É preciso arranjar transportes adaptados e adequar os próprios locais de trabalho aos doentes. Começa logo por aí. “Com rampas para quem anda numa cadeira de rodas e com casas de banho próprias”, avança.
Para os familiares, o maior desafio é aprender tudo de novo. Céu Barreiros costuma usar uma analogia para esclarecer. Os pais planeiam uma viagem a Itália, mas o avião aterra na Holanda. Tudo é novo e mais complicado. Nem sabem falar holandês. Mas podem aprender e conhecer a terra. É só um lugar diferente. No final, não trocam a Holanda por nada. É assim mesmo no caso das doenças raras, no geral, e da OI, em particular.
Há uma primeira fase mais complicada, de “luto” pela perda da criança idealizada. Mas a adaptação à nova realidade chega sempre. Mais tarde ou mais cedo. A própria Nuri tem o exemplo do filho. “É uma criança muito feliz”.
As fraturas causam os maiores sustos, mas também fazem parte. Céu Barreiros resume numa frase: “É só uma fratura. Mas pode ser uma fratura muito pior se não mantivermos a calma”. Dói. Custa. “Mas a osteogénese imperfeita é só mais um desafio na aventura da vida”, remata.
A origem: um gene doente
A osteogénese imperfeita não surge ao longo da vida. A doença nasce connosco e nós nascemos com a doença. É genético. Para perceber como, importa ter em conta um termo-chave – colagénio. “O colagénio é uma proteína existente no esqueleto. No fundo, é o alicerce, o cimento dos ossos, porque dá rigidez”. A explicação vem de Patrícia Dias, geneticista da Sociedade Portuguesa de Genética Humana.
Tal como todas as proteínas, o colagénio é codificado por genes. Os genes dizem às nossas células como devem trabalhar e quase sempre funcionam como é suposto. Mas, por vezes, ocorrem as chamadas “mutações”. São mudanças que interferem com o normal funcionamento dos genes.
No caso da OI, ocorre uma mutação num determinado gene codificador do colagénio. O gene sofre um defeito e dá instruções erradas às células. As células passam a fabricar colagénio deficiente ou pouco colagénio, como refere Patrícia Dias. O resultado é uma estrutura óssea pouco saudável. Os ossos são mais frágeis, pouco densos e mais propensos a fraturas.
E, além de genética, a doença é hereditária. Pode ser transmitida de pais para filhos. “A informação genética que diz como o nosso colagénio deve ser sintetizado – produzido – vem dos nossos pais. E se os pais tiverem um gene defeituoso, com informação errada, há cinquenta por cento de probabilidade de passa-lo para os filhos”, afirma Fátima Godinho, reumatologista. Aconteceu na família Gil.
Em situações mais raras, a osteogénese imperfeita é contraída em famílias sem história da doença. “Há um erro na passagem de informação dos nossos pais para nós, mas não quer dizer que a deles esteja errada. Só que ocorre uma perturbação num gene e isso dá origem a uma mutação de novo”, diz a médica.
Usar o humor contra a doença
Transformar a debilidade em força é uma forma de combater a OI. No caso da família Simões, o humor é a arma forte. Mãe e filhos rejeitam o rótulo de “coitadinhos” e lembram as fraturas com gargalhadas. Maria Beatriz Simões, a mãe, ainda hoje se admira com uma história caricata. Chegou a partir uma costela e não sabia. Só tinha dores quando tossia. “Quando vi o raio-x, até disse que não era meu. Nem sei como parti a costela, mas acho que foi a apanhar uma bacia de roupa”, conta.
A filha, Rute, ri-se quando recorda a fratura num pé. “Fui tomar uma injeção, queria fugir às agulhas, dei um pontapé na enfermeira e fraturei o pé”. O irmão, Tomás, também se juntou à risada. Partiu um braço enquanto entregava um trabalho à professora. “Estava distraído, tropecei no caixote do lixo da sala de aula e parti o braço”. De sorriso sempre presente, Maria, Rute e Tomás fazem da adversidade um motivo para a galhofa.
A Osteogénese Imperfeita em livro
Os dias não são maus. São apenas menos bons. “Temos ossos frágeis e um espírito inquebrável”. As palavras são de Ana Simão. A escritora falou ao JPN a título próprio, mas vê nos doentes com OI uma força natural. A prova do alento está reunida nas 192 páginas do livro “A Menina dos Ossos de Cristal”. É um testemunho de esperança e otimismo.
Artigo editado por Filipa Silva