gé·ne·ro, substantivo masculino: Conjunto de propriedades
atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo
dos indivíduos.
Mafalda sempre se sentiu revoltada com os papéis de género. Ter cabelo curto e vestir roupas mais largas são formas de recusar o que é pedido, tradicionalmente, às mulheres. Hoje, acha que é essencial dar espaço às crianças para explorarem a sua própria identidade de género, com o peso dos rótulos fora dos ombros.
A conceção de género nunca fez muito sentido para Xavier. Acha que é uma construção social, independente do sexo biológico, que só serve para limitar a ação de cada indivíduo. No dia a dia, sente a falta de representatividade nos media e diz que é preciso pesquisar muito para se chegar à conclusão de que o "agénero" existe.
Tiago sente o preconceito assim que põe o pé fora da faculdade, por assumir opções associadas a um género diferente do seu sexo. Há dias em que o olhar incomoda. Noutros, prefere entendê-lo como somente curiosidade. Acredita que, com tempo e paciência, as coisas vão encaminhar-se para o lugar certo.
Para Isabel, não é assim tão fácil falar da questão do género. Foi um caminho complexo, que durou vários anos, e que agora encontrou casa na definição de genderqueer. Mas Isabel evita rótulos. Fala num espetro. Não em dois pólos, mas num género fluído, não estático. Já teve medo de nunca se conseguir encaixar. Agora, isso mudou.
Só uma pequena parte dos seus amigos sabe que Mikimizi é não-binário. Já só conta a quem sabe que vai procurar compreender. Diz que há perguntas incómodas, mas o que falta é discussão. No fundo, é preciso que os pais, as escolas e os media ensinem a abertura e não o preconceito.
Fora do padrão. Zara sentia-se assim. Só há pouco tempo, quando descobriu o termo "não-binário" se apercebeu que isso estava relacionado com o género. Que estava relacionado consigo. Mas explicar-se às pessoas, "partir pedra", é demasiado cansativo. Ainda há muita desconstrução a fazer.
João Oliveira defende a abertura do espectro de género
João Oliveira, investigador de ‘Estudos de Género’ do ISCTE - IUL, aborda as narrativas sociais do género. Da binariedade - masculino ou feminino - até à não-binariedade das pessoas que contrariam esse modelo dual.
O investigador refere-se a si, linguisticamente, de forma não genderizada, e é apologista de casas de banho sem género atribuído.
A partir dos anos 40, começou a ser possível fazer cirurgia para mudança de sexo. E, nessa época, surgem as primeiras questões sobre o modelo não-binário.
"Ninguém sabe o que é uma mulher ou um homem", afirma o investigador para quem "aquilo que cada pessoa determina para si, é aquilo que ela é". João Oliveira explica que a identidade definida de uma forma binária (masculino/feminino), como acontece na nossa sociedade, leva-nos "a um conjunto de gavetas que são pequenas demais para a personalidade de um humano".
Contudo, o investigador ressalva que "o género não é uma coisa negativa". E o não-binarismo é a única maneira de nos "autodeterminarmos".
A política pode ajudar à integração de pessoas não-binárias. Este ano o Governo português aprovou uma proposta de lei da identidade de género.
As crianças são obrigadas a uma definição precoce do género. As princesas esperam ser salvas por personagens masculinas e, raramente, são usadas outras expressões de género nas histórias infantis, fora o binarismo clássico.
Há ainda familiares que exercem o "policiamento do género", situação que, como relata o investigador, influencia a expressão individual. O uso da violência - física, psicológica ou verbal - é frequente.
O investigador do ISCTE-IUL questiona: "Porque é que nos temos de identificar apenas com um género? É possível a ‘desidentificação’ de género", na sua opinião. Assim, defende a teoria de "trânsitos de género" - cada um circula por onde quer.
Daniela Bento no Centro LGBT de LisboaÉ um dos rostos da luta pelo combate à discriminação sobre a identidade de género e a segunda mulher transgénero na direção da ILGA Portugal. Daniela Bento procura dar resposta às dúvidas de quem se procura. É no Centro LGBT de Lisboa que conhece as muitas histórias e os muitos medos dos utentes: pessoas de género binário, de género não-binário e agéneros.
A aproximação a estas experiências levam-na a acreditar que se tem assistido a um "boom de representatividade, nos últimos anos". "Por todo o mundo, muitas pessoas se têm assumido como não-binárias porque encontram alguém com quem se identificam", conta. No entanto, Daniela lembra que o panorama português é diferente.
Onde, quem e como procurar quando as dúvidas se tornam um peso é ainda uma questão pouco sólida e muitas vezes respondida com silêncio. Daniela reconhece que a falta de exploração das questões não-binárias ao nível terapêutico se deve à ausência de reconhecimento legal.
Nas escolas portuguesas, a identidade de género não faz parte das discussões. Complica-se, depois, a tarefa de levar a conversa para casa e o que não se ensina, na incompreensão se perde.
Não há muitos Estados que vejam o género como um espetro. E nem todas as inclusões de uma terceira classificação se relacionam diretamente com as pessoas não-binárias ou agénero. Desde proteger as pessoas transexuais de discriminação a impedir que as crianças intersexo sejam sujeitas a cirurgias, os avanços culturais e legislativos têm tido muitas intenções diferentes. Para além disso, a maioria dos Estados ainda utiliza frequentemente género e sexo como sinónimos.
A lei portuguesa não contempla um terceiro género.
Em relação às pessoas trans que querem mudar legalmente para o género oposto, a partir de 2011, com a chamada Lei da Identidade de Género, foi criado um processo para a mudança de nome e sexo no registo civil. Até aí tinha de se interpor uma ação contra o Estado, e a decisão judicial era feita caso a caso.
Era um processo demorado, no qual os próprios juízes admitiam as lacunas na lei. Não havia definições legais de género nem de sexo.
Por vezes, a mudança era tratada como se tivesse ocorrido um erro no registo civil à nascença. Mas o argumento começou a ser recusado com base na ideia de que a anatomia da pessoa tinha, na altura, correspondido ao sexo com que foi feito o registo. Passou-se, então, a ter de provar que a pessoa possuía agora todas as caraterísticas físicas e psíquicas de outro sexo, e que os dados que estavam registados não lhe correspondiam.
A Lei da Identidade de Género de 2011 veio regular e simplificar o processo, mas não o estendeu a menores e ainda tornava imperativo o diagnóstico de "perturbação de identidade de género" a quem pedisse a mudança. Também não regulava a imposição de cirurgias a pessoas intersexo e não estabelecia terceira classificação de sexo ou género.
A nova proposta de lei da autodeterminação de género foi aprovada em abril em Conselho de Ministros e vai ser debatida na generalidade a 19 de setembro de 2017, juntamente com dois projetos de lei do PAN e do BE sobre o mesmo assunto. Vai mais longe do que a lei antiga. Se aprovada, elimina a necessidade de documentos médicos para o pedido de alteração do registo civil e baixa a idade mínima para dezasseis anos.
O diploma do Governo adiciona ainda que "salvo em situações de comprovado risco para a sua saúde, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo ou das características sexuais da pessoa menor, não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género". Ou seja, ficam impedidas as cirurgias a crianças intersexo até que expressem a sua identidade de género.
Não há, no entanto, possibilidade de escolha de um terceiro género, nem mesmo para as crianças intersexo. A lacuna chegou a ser alvo da desaprovação do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida no projeto de lei do Bloco de Esquerda (BE), que lhe chamou uma "violação do direito à identidade de género que se pretende acautelar", mas a proposta do Governo não a retificou.
Na exposição de motivos da proposta de lei, é explicado que não se estabelece um género neutro por isto poder "reforçar a pressão em efetuar tratamentos ou intervenções cirúrgicas para normalizar os órgãos genitais de crianças e bebés intersexo".
As pessoas não-binárias também não veem a sua identidade de género reconhecida na nova proposta de lei. A exposição de motivos da projeto de lei do BE faz referência às pessoas de "género diverso", mas o projeto em si não enquadra nenhum género não-binário. O mesmo acontece no diploma do governo, que também não reconhece nenhum género para além do masculino e feminino.
"Um filme que eu gosto muito é o Transamerica, por falar sobre transexualidade, que é um assunto muito interessante. Moda agénero: Há artistas que realmente mexem comigo. Sou muito fã de moda japonesa. Sigo muitos modelos e artistas de moda genderless, que é aquela ideia de que a moda não tem género. Isso é o que me inspira mais. Porque são pessoas que saem à rua com uma vanguarda – com uma roupa que não é feita nem para homem, nem para mulher. Ajuda-me a pensar que não sou o único a acreditar nisto."
"Há um livro da Virginia Wolf, que estou a ler agora, que se chama Orlando. É sobre um homem que acorda um dia e está num corpo de uma mulher, mas mentalmente continua a ser a mesma pessoa. Essa pessoa está completamente na boa, não tem problema nenhum, são só aspetos físicos. Mas depois também explora a forma como a sociedade o passa a tratar por se apresentar de uma certa maneira e... Coisas que tem que fazer, coisas que não tem que fazer."
"Em relação a não-binário mesmo, nunca vi nenhum filme. Vi sobre crianças trans, pessoas trans já adultas... Vi também sobre homossexuais – sei que não tem nada a ver, mas pela sociedade eu sou, supostamente, homossexual... Mas realmente falta representatividade do mundo não-binário."
"No "Laurence Anyways", ele trata do género de uma pessoa transexual, mas o universo cinemático dele gira em torno de questões LGBTQ+. Talvez tenha sido isso que me levou depois a instruir-me mais sobre todas estas questões de género e da não existência do género. Sobre o que realmente tudo isto era.
David Bowie: David Bowie, o grande amor. Na letra da música "Rebel, Rebel", ele diz "You've got your mother in a whirl / She's not sure if you're a boy or a girl". Todo esse universo do Bowie também ajudou a entrar nessas questões."
"Aquilo que mais inspirou, na verdade, foi o trabalho de ativistas. E ler muitos, muitos textos e relatos pessoais de pessoas que se sentiam de formas diferentes: diferentes da minha, parecidas com a minha, iguais à minha. Isso é o que me inspira mais."
"Talvez um artista: Antony and the Johnsons."