O ambiente era intimista, quase familiar. Perante uma plateia de 20 a 30 pessoas, numa pequena sala, a meia-luz, Luca Argel ‘desfraldou’ esta sexta-feira, no Porto D’Artes, o seu mais recente álbum, “Bandeira“.

O trabalho é um hino à doce subtileza, tipicamente brasileira, com que uma guitarra aconchega as palavras que flutuam entre um poema e a letra de uma música.

Umas horas antes do concerto, depois de terminado o teste de som, Luca Argel sentou-se com o JPN para falar do trabalho musical e poético, dos planos para o futuro, de Portugal e do Brasil.

O crédito que dá à arte está próximo do que a história de “Beto sem Braço” nos ensina sobre o samba: “O que espanta a miséria, é a festa”.

JPN: Como define, musicalmente, o “Bandeira”?
Luca Argel: O “Bandeira” é um disco de sambas. Acho que é um projeto que explora a linguagem do samba pelo seu lado poético, mais ligado à palavra cantada. É um disco muito simples em termos instrumentais, a sua formação é só de voz e guitarra, justamente para dar um destaque quase que total à parte poética das canções. Sempre dentro da linguagem do samba.

JPN: O que significa para si o álbum?
LA: O álbum significa, para mim, uma espécie de afirmação do meu próprio trabalho enquanto músico e poeta. O meu álbum anterior, o “Tipos que tendem para o silêncio”, é um álbum instrumental e é o meu primeiro álbum, que assino com o meu nome. Assim, pode dizer-se que o “Bandeira” é uma estreia minha, uma nova estreia com outro tipo de linguagem. Talvez o “Bandeira” seja o mais próximo que eu consegui fazer até agora de uma relação entre a poesia e o que eu acredito em termos de música.

JPN: Pode falar-nos um pouco melhor das diferenças entre o “Bandeira” e o “Tipos que tendem para o silêncio”?
LA: O “Tipos que tendem para o silêncio” é uma espécie de álbum de divórcio. Antes do “Bandeira” e muitos antes até de vir para Portugal, já tinha livros de poesia publicados no Brasil. Tenho três livros de poesia publicados no Brasil e mais três agora em Portugal, dois vão sair este ano. Esse meu início de trabalho artístico é muito ligado à poesia, quase exclusivamente ligado à poesia. Ainda assim, eu já tinha o interesse de me afirmar como músico desgarrado da poesia, digamos assim. O “Tipos que tendem para o silêncio” é essa afirmação. Aliás, é por isso que é um disco instrumental, é um disco em que a palavra não existe. Apesar do instrumental também não deixar de ser um gesto poético, o disco é essa afirmação. Com o disco senti que o meu campo de atuação é maior do que a poesia escrita ou a poesia em performance, senti que me afirmei como músico ou dentro daquilo que o senso comum entende como música. O “Bandeira” já é uma reconciliação com a poesia. Fui até ao outro extremo com um disco instrumental eletrónico e agora estou a fazer o caminho de volta para a poesia. O “Bandeira” é um passo nesse sentido.

Luca Argel tem dois álbuns e vários livros de poesia publicados.

JPN: Pode dizer-se que é um homem das artes, já que faz da arte um modo de vida. Que peso atribui à arte no funcionamento social?
LA: Não sei… Boa pergunta. Eu sou um pouco pessimista em relação à capacidade da arte de transformar o mundo positivamente, no sentido político da palavra. Aquela questão da arte ser responsável por revoluções sociais ou conquistas sociais efetivas… Não sei se a arte vai até aí. Acho que a arte, como a cultura – já que a arte e a cultura estão interligadas -, são importantes se conseguirem ser uma espécie de dispositivo que faça a dureza da vida um pouco mais fácil. Acredito que a arte consegue ser esse dispositivo e já desempenha um papel muito importante. Se consegue algo mais… Não sei, mas tendo a achar que não.

 “Acho que a arte e a cultura são importantes se conseguirem ser uma espécie de dispositivo que faça a dureza da vida um pouco mais fácil.

JPN: É licenciado em Música pela UNIRIO. O percurso académico foi decisivo no trabalho?
LA: Para mim foi muito decisivo, mas não é para todas as pessoas. Conheço muitos músicos que não passaram pelo ensino formal de música, não estudaram na universidade nem na escola de música mas aprenderam sozinhos, são autodidatas. Hoje são músicos profissionais tão bons como os que fizeram todo o percurso formal universitário. Quando se decide trabalhar com música, existem muitos caminhos que podem levar alguém à profissionalização. A academia é um desses caminhos e talvez ofereça coisas que outros caminhos não oferecem. Por exemplo, na academia aprendi coisas que, embora não use muito no meu trabalho, me permitem ter uma noção de tudo o que há para conhecer ao nível de história da música, ao nível de leitura musical ou até alguns conhecimentos mais técnicos. Por outro lado, há muito conhecimento prático que a academia não dá nem consegue dar. Esses conhecimentos só se conseguem adquirir em cima de um palco tocando ou cantando, por exemplo. Outros conhecimentos que fazem muita falta a um músico que têm a ver com fazer gravações, montar equipamentos de som, conhecer a realidade do mercado musical… Nada disso é coberto pela academia, pelo menos a minha não cobriu de maneira nenhuma. No fundo, o terminar um curso superior de música não significa, de todo, o terminar de um ciclo de aprendizagem para um músico.

JPN: Depois da licenciatura em Música, vem o mestrado em Literatura na Universidade do Porto. Quando é que sentiu que a literatura era o passo a seguir?LA: Senti que a literatura era o passo a seguir assim que terminei o curso de música. Eu acabei o curso farto, não queria mais estudar música. Já era professor de música mas não havia mais nenhuma área que eu gostasse de aprofundar. O curso que eu fiz de música era bem puxado, eram muitas horas de aulas, sete cadeiras por semestre, licenciatura de cinco anos… Eu senti que o meu interesse por música tinha esvaziado um pouco e, em paralelo, sempre tive um grande interesse por literatura que cresceu com o meu temporário desinteresse musical. Comecei a estudar poesia, fiz cursos ainda no Brasil, publiquei um livro. Mais tarde, abriu-se a oportunidade de eu tentar um mestrado em literatura aqui em Portugal, acho que no Brasil isso não era possível. No Brasil, as licenciaturas são muito aprofundadas e ninguém segue o seu caminho em áreas diferentes. Como aqui em Portugal o mestrado é praticamente um complemento da literatura, o meu nível enquanto aluno não era assim tão afastado do dos meus colegas. Assim, fiz o meu curso tranquilamente sem sentir muito a dificuldade de não ter feito um percurso em Letras. Na minha cabeça fazia sentido a literatura. Era uma área de interesse que eu queria aprofundar.

JPN: Porquê o Porto?
LA: Isso foi por acaso. Eu vim para Portugal muito estimulado por um amigo meu que já estava em Portugal há dois anos. Esse meu amigo, o Pedrinho, já voltou para o Brasil. Ele tinha vindo para Chaves em 2010 dar aulas de guitarra e esteve lá até 2012. Nesses dois anos, eu falava muito com ele e ele sempre me puxou para Portugal. Em 2012, fui para o Porto e ele também foi de Chaves para o Porto. Acabámos a morar juntos. Na verdade foi mais uma escolha dele e eu acabei por ir atrás. Mas correu muito bem e ainda bem que vim.

 JPN: Depois do tempo que passou cá, qual é a relação com Portugal?
LA: É uma relação de casa. Já vivo em Portugal há cinco anos e já me sinto mais em casa aqui do que no Brasil. Com isto não quero dizer que me sinto menos brasileiro ou mais português. Não perdi a ligação que tinha ao Brasil, mas ganhei uma ligação nova com Portugal.

“Acho que há uma relação engraçada entre a maneira de ser das pessoas do Porto e dos cariocas”

JPN: Com que região se identifica mais?
LA: Eu identifico-me mais com os do Norte, sem dúvida [risos]. Aliás, acho que há uma relação engraçada entre a maneira de ser das pessoas do Porto e dos cariocas. Já li isso até em textos antigos de brasileiros que também conhecem o Porto. Li isso a primeira vez num texto de 1908 do João do Rio. Ele fez uma viagem ao Porto e achou que o ambiente que se vive entre as pessoas: extrovertido, comunicativo e simpático até, era muito parecido com o que se vivia no Rio de Janeiro.

 JPN: O que podemos esperar do Luca Argel no futuro?
LA: Podem esperar mais trabalhos, mais concertos, mais projetos. Eu não consigo fazer projeções para além de um ano, que já é bastante. Para 2018 tenho projetos mais coletivos em mente e não tanto os individuais como em 2017. Tenho o Samba sem fronteiras, que é uma banda da qual faço parte desde que estou em Portugal, que já está há muito tempo para lançar um disco de originais. Acreditamos que 2018 pode ser o ano. Outro grupo em que participo que é o Bamba Social tem o mesmo plano de lançar um álbum em 2018. Ao mesmo tempo tenho um projeto com a Ana Deus, que é uma cantora aqui do Porto – já fizemos um concerto este ano juntos na Casa da Música – cuja ideia é cantar poemas do Fernando Pessoa ortónimo. Estamos a preparar isso já para o finalzinho do ano e, se correr bem, fazer esse espetáculo mais vezes para o ano.

JPN: Para terminar Luca, como explica o caos político que o Brasil está a atravessar?
LA: Eu penso que o caos político que o Brasil vive hoje, ao contrário do que as pessoas dizem, não é porque o projeto de sociedade que foi traçado pelo Brasil não esteja a resultar. Aliás, eu penso que esse projeto está a resultar e muito. Ao longo dos últimos 500 anos, o Brasil tem vindo a ser construído como uma espécie de massa de riqueza a ser explorada e descartada continuamente. A história do Brasil tem sido feita muito à base deste ciclo. A riqueza produzida pelas populações exploradas é dirigida a uma elite, que é sempre a mesma. O plano sempre foi esse e, hoje, resulta melhor que nunca mas é óbvio que é um plano que, a longo prazo, não se sustenta nem socialmente nem economicamente nem ecologicamente. Os projetos mais virados para a justiça e igualdade social começaram timidamente no primeiro governo do Lula há 15 anos atrás e ganharam quatro eleições seguidas mas não agradaram a essa elite. Agora, nos últimos dois anos, parece que as pessoas perceberam que esse rumo desumano e esclavagista talvez tenha ido longe demais. Como se diz no Brasil: “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Ninguém sabe o que vai acontecer mas não estou nada otimista. Ainda assim, para não terminar num tom demasiado pessimista… Sabe-se que essa situação de precariedade no Brasil foi sempre a regra e nunca a exceção, mesmo nas cidades mais ricas e, apesar disso, as manifestações culturais brasileiras como o samba sempre floresceram de forma quase que clandestina. Eu acho que essas formas de manifestação não vão deixar de existir e vão sempre estar em luta contra uma miséria que não é fácil de superar.

Artigo editado por Filipa Silva