O Bloco da Carvalhosa, construído em 1945 entre os números 571 e 573 da Rua da Boavista, em plena cidade do Porto, foi a primeira grande obra projetada pelos arquitetos Arménio Losa e Cassiano Barbosa. O edifício está classificado, desde o início do mês, como Monumento de Interesse Público.

Na Europa dos anos 30, o recrudescimento dos regimes fascistas foi acompanhado de uma crescente repressão de todas as vanguardas culturais, em benefício das visões mais conservadoras.

Nesse clima político, social e cultural instável, que em Portugal foi muito além do final da II Guerra Mundial, Arménio Losa, que tinha trabalhado na Câmara Municipal do Porto, no gabinete de urbanismo, foi muito influente no desenho e planeamento da cidade.

Losa associou-se a Cassiano Barbosa e juntos planearam um edifício de habitação coletiva, que também encerrava uma conotação política.

A habitação coletiva

Este tipo de habitação era uma forma inovadora de organizar as pessoas na cidade, pois implicava a reunião das mesmas, o debate de ideias e a discussão da atualidade, ideais que o regime temia. Este, por sua vez, promovia a individualidade, bairros de baixa densidade e até a própria denúncia.

Os arquitetos, por sua parte, na linha das correntes mais vanguardistas da época, defendiam que as pessoas deveriam ser aglomeradas em grandes espaços coletivos, com grandes espaços verdes.

A dupla de arquitetos introduz, assim, a arquitetura moderna a uma sociedade tradicional.

O recuo do edifício face à rua gerou alguma polémica na forma como foi intepretado. Os próprios arquitetos justificaram a opção com o facto da rua ter na altura muito trânsito de pesados e elétricos, que causavam enorme ruído e trepidação. Deste modo, acharam que afastar o edifício permitia reduzir o nível de vibração, de ruído e daria mais luminosidade à fachada norte.

“Hoje, quando se desce a rua, sente-se, de facto, que há aqui um respirar mais amplo”, nota o arquiteto António Neves.

Uma nova hierarquia dos espaços

O Bloco da Carvalhosa carateriza-se por ser um edifício com uma orientação solar desfavorável para construção habitacional, pois tem as frentes viradas a norte e a sul.

Contudo, os arquitetos demonstraram uma preocupação com a orientação solar, tentando fazer um edifício muito adaptado ao sítio onde foi construído. Assim, este edifício apresenta o contrário do que era executado na altura, ou seja, concentra todas as zonas de serviço na fachada norte e vira para a fachada sul, para o silêncio e para o sol, tudo o que são quartos e zonas de descanso.

A sala, sendo um compartimento mais amplo, é aberta para os dois lados (norte e sul). Isto permite que tenha maior dimensão, uma transparência muito interessante e ao mesmo tempo que vá buscar a luz norte através de envidraçados e varandas, recebendo sol direto do lado sul.

Esta forma de organizar o edifício é ainda hoje defendida pela arquitetura sustentável, ou seja, virar os serviços e zonas onde é produzido o calor para norte, diminuindo as aberturas nas mesmas e abrir as zonas de lazer e descanso para sul.

António Neves é arquiteto e professor na FAUP. Foto: Rita Marques

António Neves destaca este aspeto inovador face ao que se fazia na altura: “a organização dos edifícios da época era muito pouco hierarquizada.”

Outra caraterística bastante vanguardista, nomeadamente ao nível do pensamento arquitetónico, era a organização da planta do apartamento em três áreas distintas: a área privada, de dormir, a área social, com as salas e a área de serviços com uma organização muito racional, com as zonas das águas.

O Bloco da Carvalhosa apresenta alguns aspetos relativamente novos como uma lavandaria coletiva, condutas para o lixo – posteriormente desativadas -, libertação do espaço traseiro para espaço de lazer, garagem individual fechada por cada apartamento, com uma cobertura utilizável, virada a sul, onde os moradores podiam realizar tarefas ao ar livre, e a dimensão do átrio de entrada, que rompe com conceções arquitetónicas da época.

Os promotores pensavam neste espaço como um ponto desfavorável do edifício, que se deixava de vender, pois era habitual os edifícios terem um átrio que ocupasse o mínimo espaço possível, que permitisse apenas chegar ao elevador ou as escadas, conta-nos o professor da FAUP que estudou aprofundadamente a obra destes arquitetos.

Losa e Cassiano Barbosa também conseguiram implementar a ideia de pôr a escada na traseira do edifício, permitindo que este recuperasse o espaço “perdido” de frente para a rua. Atualmente esta ideia seria banal, no entanto, em plena década de 40, este conceito era muito inovador.

Para António Neves “os dois arquitetos [Arménio Losa e Cassiano Barbosa], em conjunto, transcendem-se”.

Tudo pensado ao pormenor

Outro aspeto considerado disruptivo e moderno à época por António Neves  é o facto de todo o edifício ter sido desenhado e pensado ao pormenor, desde o detalhe do puxador, ao dos interruptores, botões de campainha com o respetivo lettering, desenhado pelos próprios arquitetos, esculturas encomendadas a grandes artistas da época, até ao desenho da porta da entrada do Bloco. “É inspirado por um arquiteto francês, absolutamente artesanal, não existe mais nenhuma porta como esta na cidade do Porto”, explica António Neves.

Os arquitetos promoveram, por cada apartamento, a construção de um solário, ou seja, um jardim suspenso, uma espécie de sala exterior, aberta. Posteriormente, a Câmara obrigou-os a fecharem esses espaços. Os arquitetos consideraram que fechar os terraços iria estragar a verdadeira conceção do edifício, no entanto foram obrigados a envidraçar esses espaços abertos, dando-lhes um caráter de um pátio fechado, o denominado saguão, espaço de que a arquitetura não gosta.

O grande lema dos dois arquitetos em todas as suas criações era “espaço, verdura e luz”. Estes pretendiam conciliar a cidade e as vantagens da vida e do convívio urbano com a relação com o exterior, ou seja, com os jardins, com os espaços verdes e com a natureza.

O Bloco da Carvalhosa foi uma inovação na arquitetura da época a todos os níveis que um objeto arquitetónico pode estabelecer: urbano, disciplinar, linguístico e até com ressonâncias cívicas e políticas.

Interior do Bloco Foto: Rita Marques

No entanto, este edifício também possui algumas caraterísticas que não se adequam aos dias de hoje, tais como o número de casas de banho em cada apartamento, a qualidade acústica, o ruído proveniente da rua, aspetos que na opinião do arquiteto podem ser facilmente revistos: “o primeiro ato de sustentabilidade é usar o que temos melhorando-o, reabilitando-o”.

O edifício continua a ser muito atual na sua organização espacial, na sua orientação solar, na forma como faz o aproveitamento máximo possível do lote em que está inserido. Apesar de representar um símbolo e ser património de interesse publico, António Neves realça que “a Câmara é bastante impositiva no alçado que dá para a rua mas bastante tolerante no que dá para o logradouro, o que eu acho uma pena, porque o que foi classificado foi o conjunto do edifício e, neste caso, a fachada traseira é absolutamente essencial e não devia ser destruída.”

Losa e Cassiano Barbosa com a edificação do Bloco atingiram uma enorme notoriedade – os dois já faleceram -, lançando para as luzes da ribalta o escritório da dupla de arquitetos e atingindo uma grande aceitação por parte de uma camada mais culta da população e da comunidade de arquitetos.

O Bloco da Carvalhosa funciona como um elemento representativo do movimento moderno arquitetónico português, sendo que até outros arquitetos da época levavam os seus clientes a ver o edifício como “amostra” do que poderia ser feito de “mais moderno” na altura em Portugal.

Artigo editado por Filipa Silva