Foi antes de um encontro na Biblioteca Pública de Perosinho, em Vila Nova de Gaia, que João Tordo esteve à conversa com o JPN. Num “triálogo” descontraído, o autor falou sobre o seu processo criativo, o tríptico começado em 2015  e finalizado este ano – em maio –  e sobre o que é a vida de um escritor galardoado.

Os seus últimos livros – “O Luto de Elias Gro” (2015), “O Paraíso Segundo Lars D.” (2015) e “O Deslumbre de Cecilia Fluss” (2017) – foram o ponto de partida: narrativas independentes, mas com pontos comuns que criam uma atmosfera em tudo semelhante e distinta, com personagens  semelhantes a nós, cenários comuns e um enredo bem diferente do que os leitores estavam habituados.

JPN: Depois de receber o prémio José Saramago, em 2009, sentiu alguma pressão para escrever mais e melhor do que até ali?
João Tordo:
Nessa altura, eu só tinha publicado três romances. Era um escritor que ainda estava a tentar encontrar o seu ritmo e a sua voz. Portanto, quando recebi o prémio, era relativamente novo – tinha 33 anos -, e os meses seguintes foram complicados para mim. O ano seguinte, aliás. Porque, depois de um prémio desses, eu não sabia bem como haveria de corresponder. Há uma certa expectativa para o que tu vais fazer a seguir… Mas acho que, com o tempo, fui encontrando uma narrativa na qual me sinto bem, fui encontrando as minhas personagens e os livros também foram acontecendo organicamente. Claro que demorei algum tempo, porque, de todos os prémios literários em Portugal, o prémio Saramago é o que tem mais visibilidade. Para já, é atribuído a escritores com menos de 35 anos, por isso a juventude está muito associada ao prémio, e depois porque, por alguma razão, é um prémio que catapulta os escritores. Depois do prémio, há dez vezes mais leitores.

Já ganhou vários prémios e foi finalista em vários concursos literários. Considera mais importante o reconhecimento pelos pares ou o reconhecimento do público?
A importância do prémio Saramago é essa: é que, apesar dos outros prémios, é sempre o prémio Saramago de que me falam. Mas sinceramente acho que não tem muito a ver com reconhecimento, tem mais a ver com perceber que há um público que gosta de ler os meus livros, que se consegue identificar com as situações e com os temas que estão ali a ser tocados… E acho que isso é muito mais importante do que o reconhecimento pelos pares. O reconhecimento pelos meus pares dependerá sempre de várias coisas, como os livros que eu estiver a escrever então, alguma sorte, o facto de haver ou não, nessa altura, escritores que também sejam reconhecíveis e premiáveis. Por isso, é sempre uma coisa um bocado aleatória.

Mas, quando compreendes que tens um público e que esse público gosta muito daquilo que tu fazes, isso, sim, é mesmo importante, porque eu não vivo dos prémios. Eu vivo de as pessoas gostarem dos meus livros e comprarem. Isso é muito mais importante para mim.

João Tordo esteve na Biblioteca de Perosinho para um encontro literário. Foto: Miguel Ângelo Afonso

Quais são as grandes dificuldades em escrever uma trilogia?
Para já, não se trata bem de uma trilogia, porque, embora tenha sido publicitado assim, acaba por ser uma espécie de tríptico. São três livros cujo tema é o mesmo, mas são três narrativas independentes, por isso não lhe consigo chamar trilogia.

Mas as dificuldades de escrever o tríptico foram: quando eu lancei o primeiro livro, não sabia quanto tempo ia demorar. Tinha aquelas três histórias que eu pensei que fariam parte de uma só obra. Depois percebi que aquilo não podia ser assim, que não tinha espaço num só livro para contar tudo. Então dividi em três: decidi qual seria o início, o meio e o fim. E eu digo que é um tríptico porque, quando chegas ao fim do último livro, estás no mesmo espaço físico que o primeiro. Estás no mesmo sítio, no mesmo sítio emocional, quase. É circular, portanto a maior dificuldade era essa: fazer com que tudo aquilo fizesse sentido e a sensação de que, lendo só um dos livros, não se perde nada, mas que, ao ler os três, se ganha alguma coisa. É quase um paradoxo, mas essa foi a dificuldade.

Claro que houve, também, a dificuldade do tempo. Eu queria fazer isto num espaço de três anos e não sabia se conseguia, porque depois houve dois livros a sair em 2015 e, em 2016, não saiu nada. Este último só saiu agora. Foi uma gestão de tempo um pouco estranha, mas consegui concluir em três anos e isso foi bom.

“Eu não vivo dos prémios. Eu vivo de as pessoas gostarem dos meus livros e comprarem. Isso é muito mais importante para mim.”

Ou seja, os três livros já estavam delineados num primeiro momento de criação…
Estavam, em alguns aspetos relativos às personagens e o que eu ia tratar, também. Ir ao fundo do problema foi aquilo que me foi motivando depois.

Havia um conjunto de regras que estabeleci que não eram fáceis de obedecer. Uma era que os livros não teriam geografia. Todos os meus outros romances têm uma geografia muito vincada, sabes onde as coisas se passam, consegues imaginar por completo o espaço. Estes, ao não terem geografia, já eram um problema. Não é nada fácil escrever sem referências. A segunda regra é os nomes não terem origem, ou seja, podiam ser portugueses, podiam ser suecos, ou franceses. Essas condicionantes já tornavam o desafio difícil.

Mas manter o tom durante três livros, manter o problema de fundo, sempre ali a tentar escavar um bocadinho mais… Isso foi uma grande dificuldade.

“Quando eu comecei a ler livros e quando me apaixonei pelos romances, o que me mantinha ali era o facto de perceber que, na minha solidão, eu não estava sozinho”

Havia algum objetivo por detrás da regra de não existir referência temporal ou geográfica?
A razão é… Eu queria fechar ali uma porta qualquer. Quando eu comecei a escrever “O luto de Elias Gro”, eu quis entrar naquele mundo, mas entrar como se eu também fosse uma personagem naquele lugar. Não me interessava nada situar geograficamente a história, isso iria cortar-me o leque de possibilidades. Ao não situar a história, ao deixar todas as possibilidades em aberto, foi um alívio, quase. Depois de se escrever sete livros que eram muito geográficos, muito vincados territorialmente, foi uma lufada de ar fresco para mim.

Falar deste tríptico é falar do ser humano e do que existe de mais recôndito nele. Acha que as pessoas não fazem essa busca, esse olhar-se por dentro, e é isso que os livros pretendem?
Não acho que seja isso, porque isso também é cansativo. Mas, quando eu comecei a ler livros e quando me apaixonei pelos romances, o que me mantinha ali era o facto de perceber que, na minha solidão, eu não estava sozinho. Não sei se isto faz sentido para os outros, mas, para mim, fazia imenso sentido.

Quando comecei a ler romances e a apaixonar-me pelas personagens, percebi que havia uma identificação muito forte entre a forma como eu me sentia e a forma como as personagens se sentiam. Era isso que me mantinha preso.

Quando eu comecei a escrever, foi porque a experiência humana, com 50% de dor e 50% de prazer, era um binómio que podia ser encontrado na solidão. Eu acho que os livros têm esse condão de nos acompanhar, no sentido de fazer mesmo companhia, mas não concordo muito que um livro tenha de nos deixar intranquilos ou desassossegados. Não sei se é bem assim. Acho que o que eu faço é usar aquelas personagens, que têm as suas dores muito particulares, e vê-las caminhar no sentido da tentativa de resolução dessas dores.

“Se calhar os meus livros são mais para quem tem a experiência de perder, de sofrer às vezes, para quem a dor é uma coisa complicada e difícil”

Então, a preocupação com o ser, com o existencial de que é que parte?
Se calhar, parte dos meus estudos, da Filosofia. Quando entrei para o curso, tinha 18 anos, é muito precoce e a abordagem começou muito cedo. E, depois, quanto mais eu ia lendo, e mesmo quando eu comecei a escrever, descobri que o lugar onde me sentia bem era um lugar que tinha muito mais que ver com a condição humana do que com a preocupação social ou política. Há muitos escritores que primam sobretudo por colocar as suas personagens em certos cenários político-sociais e depois “aquilo” move-se tudo “ali”. Eu sou mais um escritor de passo atrás, não estou tão interessado nesses cenários, estou mais interessado no cenário humano. O que é que é isto de estar aqui… Por que é que há momentos da vida em que “isto” não me causa perplexidade… Acordar todos os dias e estar cá, às vezes causa-me perplexidade, outras vezes dá-me algum consolo, noutras causa-me tristeza.

Sobretudo estes últimos livros serviram muito para perceber o que é que está “aqui” a acontecer.

O que é que é mais desafiante em escrever sobre perda? Escrever ajuda a encará-la com mais normalidade?
Não ajuda a encará-la, mas ajuda a aceitá-la, se calhar, não sei… Depende do que te vai acontecendo na vida. Quer dizer, se fores um organismo feliz, que tem muito pouco sofrimento, cuja vida corre normalmente bem… Quer dizer, toda a gente perde a certa altura, não é? Mas há pessoas que lidam bem com isso… Então acho que os meus livros não são para ti, se fores esse tipo de pessoa. Se calhar os meus livros são mais para quem tem a experiência de perder, de sofrer às vezes, para quem a dor é uma coisa complicada e difícil….

Estes três romances, em particular, são romances que se concentram muito na experiência humana de estar aqui, de estar a sofrer. “O Luto de Elias Gro”, por exemplo, que retrata o processo de uma perda: como é que eu atravesso um luto? – que é o que aquela personagem faz, com um toque de humor e tal. Acho que tem muito a ver com a maneira como somos constituídos e há pessoas para quem a vida não constitui um grande problema; há pessoas para quem a vida é um problema enorme; e há pessoas no meio, que às vezes sofrem, outras vezes não. A tentativa destes livros não foi escrever ensaios nem chegar a conclusão nenhuma. Foi colocar as personagens nestas situações que eu acho que são importantes e ver como é que elas se desenrolam, para onde é que elas vão.

No segundo livro [“O Paraíso Segundo Lars D.”] dá voz a uma mulher conformada e ao mesmo tempo inconformada com uma separação. O sentimento, esta pele, foi algo difícil de vestir?
Foi complicado. Foi mais difícil de escrever porque sou um homem, não é? Tenho 42 anos, a senhora tem 63 e foi difícil. Começou por ser uma experiência fracassada – escrevia e apagava e escrevia e apagava – e depois aquilo demorou muito tempo até conseguir começar a escrever o livro, até a voz [da personagem] começar a ter alguma naturalidade. Depois, acabou por se desenrolar de outra forma, que foi tentar ver que lado meu queria escrever aquele livro e de onde é que vinha esse lado. E esse lado vem de onde vêm os meus lados todos: vêm de quando és miúdo, das pessoas que tu conheces, das vozes que vão ficando contigo e eu percebi que tinha aqui uma voz muito presente, de uma mulher que tinha aquela idade e queria contar a sua história que era tão parecida com as vozes que eu ouvia quando era criança. As vozes que eu ouvia… parece que sou maluco, que estava a ouvir vozes. Não é isso. As vozes que eu ouvia das pessoas que me rodeavam – não só a minha irmã, a minha avó, as minhas tias, as mulheres todas da minha família – essa voz era muito presente.

Foi o mais complicado de escrever porque era mais difícil chegar lá. E acho que dos três livros é o mais redondo, é o livro mais orgânico dos três. “O luto de Elias Gro” é um livro muito marcante – marcante para mim – no sentido de rasgar com aquilo que eu vinha fazendo, algo completamente novo ou quase completamente novo. O “Deslumbre [de Cecília Fluss]” é muito… Não sei explicar.

No “Paraíso” eu achei o discurso desconcertante, na medida em que a personagem umas vezes está conformada e depois já está inconformada e anda sempre naquela ambivalência…
Sim, é uma história muito… De um casal, uma história de amor, de uma história que chegou ao fim. É uma história sobre o egoísmo, de egoísmo humano, – dele -, do escritor. Também é uma advertência, para as pessoas não se casarem com escritores porque não é uma boa ideia [risos], porque corres o risco de acabar como a personagem no livro: corres o risco de ser abandonado daquela maneira.

“Quando me sento a escrever não tenho nenhum plano, é um mistério para mim também todos os dias”

Há um momento no terceiro livro em que o professor Matias escreve a palavra “Liberdade” no quadro, pedindo aos seus alunos que a definam. A escrita é um sinónimo de liberdade ou de clausura, por ter a necessidade de escrever?
É as duas coisas: a liberdade de eu poder fazer aquilo que gosto, que é uma coisa muito rara neste mundo, grande parte das pessoas não faz aquilo que gosta – eu também faço aquilo que gosto porque conquistei com muito trabalho; e depois é uma prisão. É uma prisão, porque a partir do momento em que publicas livros, e eles vendem e as pessoas gostam, tu ficas preso a uma ideia que as pessoas têm de ti. E muitas das vezes não tem nada a ver com a pessoa que tu és.

É uma prisão. Mas é uma boa… Quer-se dizer, dentro das prisões possíveis neste mundo, é uma prisão agradável. Mas é, é as duas coisas.

No final da sessão, João Tordo assinou vários exemplares. Foto: Miguel Ângelo Afonso

Do João Tordo antes do tríptico para o João Tordo depois do tríptico, notou-se uma grande diferença tanto em termos de escrita como dos temas abordados. A que se deveu essa evolução?
Quando fazes a mesma coisa durante muito tempo, é natural que te sintas um bocadinho cansado às tantas, e tentas inovar, e como é que fazes isso? Fazes isso recorrendo ao aspeto formal daquilo que fazes, porque o conteúdo nunca muda muito e o aspeto formal tem tudo a ver com a aproximação que fazes à escrita, neste caso.

Essa mudança… O livro em que acabei agora, por exemplo, é muito parecido com os livros que escrevia anteriormente, mas tem muitas coisas destes ao mesmo tempo, mas acho que nunca deixarei de ser um escritor muito narrativo, porque a minha paixão é a narrativa: começo aqui, isto vai parar ali, mas não sei como, não é? E ao mesmo tempo aquela coisa de eu não ter mão nisto; eu não planeio nada e quando me sento, tenho assim uma ideia, tenho uma ideia assim daquela personagem e deixo que aquilo ande comigo durante muito tempo antes de me sentar a escrever. Quando me sento a escrever não tenho nenhum plano, é um mistério para mim também todos os dias e é disso que eu gosto.

No outro dia em Lisboa fui ver o Jonathan Franzen, conhecem? É um escritor americano que dizia – e eu concordo mesmo com ele – que a razão de a vida ter algum sentido para um escritor, muitas das vezes, é o facto de acordar e aquilo estar ali à minha espera: eu vou lá, sento-me e aquilo está lá à minha espera. É algo que tenho para fazer. Se eu não tivesse isto para fazer, acho que enlouquecia, sinceramente. Acho que enlouquecia; não me consigo a imaginar a fazer mais nada, não tenho talento para mais coisa nenhuma. Ou então arranjava um trabalho qualquer, das nove às cinco. Mas o facto de eu ter aquilo ali à minha espera, é uma razão para estar vivo, como qualquer outra.

Qual é o patamar que um escritor quer chegar?
Se perguntares a qualquer escritor que seja honesto, ele quer ganhar o Nobel; quer ser um gajo super famoso, ou vender livros a todo o mundo… Realisticamente, estamos em Portugal, não é? Um país com poucos leitores, um país com uma tradição literária muito grande, mas que hoje em dia está a ser um pouquinho desbastada pelo afã da novidade, do novo e do escritor feito a correr, que é muito do que vês hoje em dia. Isso é muito desgastante, às tantas. Mas, no meu caso, eu fico muito feliz de escrever os livros que eu escrevo e os meus livros ainda são publicados noutros países, isso é uma coisa que me dá alguma felicidade, mas não tenho assim nenhum patamar. Tenho um patamar que é: se eu não descer não é mau, okay? Se eu não descer: se eu não perder qualidade, se eu não perder memória, se não perder imaginação, se não perder capacidade… Isso já não é nada mau. Agora, com o tempo a minha escrita vai ficando um bocadinho mais refinada, um bocadinho mais complexa, e portanto acho mesmo que o patamar é tentar não descer. É estúpido, eu sei [risos], mas é a verdade.

Sobre o que lhe falta ainda escrever?
Há pouco vinha no carro e vinha a pensar numa coisa que gostava de escrever, mas depois percebi que seria muito complicado. Depois pensei noutra coisa… Não sei. Eu não tenho assim temas. As ideias vão-me surgindo e o que eu faço é: tento ver que ‘ah, tu não prestas’ e não sei quê. E a ideia fica aqui um pouco descontente. E há uma grande parte delas que desaparecem; 99% das ideias não sobrevivem a este escrutínio. A ideia que sobrevive, é aquela sobre a qual eu quero escrever. São imensas ideias e eu vou-as afastando, depois há uma que permanece, que está sempre lá, insistente, insistente, insistente, mesmo que eu a queira desmontar e desequilibrar. Portanto, é um bocado exclusão de partes.

Artigo editado por Filipa Silva