Foi impróprio para cardíacos. Fiel aos livros das páginas douradas do futebol português. Inserido numa casa esfomeada de conquistas, onde o calor humano quebra todos os climas gélidos anunciados por dezembro. À primeira vista, duas balizas virgens não devem ter muita história para recordar. O clássico (0-0) desta sexta-feira provou o contrário e fez notar que a guerra dos pontos pelo título ainda vai nas trincheiras.
Acordar e inverter a marcha
A espiral encarnada nos grandes palcos europeus tem sido nefasta. Muito pelo contrário, os últimos raides na terra de Camões têm oferecido algum fôlego ao voo da águia. No anfiteatro portista havia, portanto, contas a ajustar e dúvidas por esclarecer. Sem novidades de relevo no papel, o Benfica subiu ao relvado com a fórmula do 4-3-3 ativada. E não se deu nada mal.
Durante vinte minutos os encarnados instalaram-se no meio-campo adversário, para controlar as rédeas do encontro. A irreverência não significou grande ascendente – Jonas foi dos que mais se ressentiu pela efémera presença dos companheiros no seu raio de ação –, mas garantiu posse à medida das botas de Krovinović, secundado por Pizzi e Salvio. Nascido num hospital croata e cultivado nas margens do Rio Ave, o médio está feito um senhor jogador no reino da Luz. Um feiticeiro de bola colada ao pé.
Já a turma portista mostrava-se desconfortável. Quase desconectada com um perfil simétrico ao ideário de Conceição. José Sá tremia nos duelos aéreos e contagiava os restantes companheiros de setor. Lá na frente não havia gestão na pressão ao portador da bola. Só um par de contragolpes inconsequentes potenciados por Marega na direita.
Com tanto alarme a soar, o dragão lá acabou por acordar. Na verdade, muito galvanizado pelos seus apoiantes, que tornaram a lotar a casa do vice-campeão nacional. As linhas azuis subiram, sem revelar muitas oportunidades até ao intervalo –Danilo Pereira disferiu um pontapé acrobático por cima do travessão (24’), antes de Herrera (31’) e Alex Telles (35’) voltarem a ameaçar. De resto, a tática aprisionou a criatividade.
Para nunca mais acertar com a baliza
Na etapa complementar, os dragões fizeram da área encarnada a sua casa. Entre muita vontade e alguma precipitação, a asfixia ao adversário foi efetuada à prova do tiro à águia. Em alguns momentos cheirou a massacre, muito embora tenha pecado num grave inconveniente, chamado ineficácia.
A calculadora não mente. Uma mão completa de ocasiões soberanas justificava um triunfo pintado de azul e branco. Marega foi denominador comum em três delas (58’, 86’ e 90+3’). Cedeu à ansiedade e provou que há noites em que o melhor é ficar sentado no sofá. Pelo caminho, a agilidade de Bruno Varela assinou nova exibição colossal, na linha do que fizera pelo Vitória FC na última visita ao Dragão.
O Benfica foi emoldurando uma imagem insegura sem bola e amedrontada a atacar. Prova disso foi a dança das substituições: Vitória preferiu apertar a malha e estancar crateras, Conceição esteve mais compenetrado na intenção de ganhar. Não aconteceu. As razões erguidas pelos dragões, à boa moda nacional, devem ficar reservadas à atuação da equipa de arbitragem.
Sejamos claros: o FC Porto tem, de facto, razões de queixa em dois lances capitais: a fechar o primeiro tempo, Luisão intercetou a bola com o braço dentro da grande área e ficou um penálti por marcar; já na segunda parte, Jorge Sousa foi mal-auxiliado num fora-de-jogo tirado a Aboubakar, travando um golo iminente de Herrera.
No futebol português, os árbitros são mais escrutinados do que qualquer outro interveniente. O árbitro da AF Porto tentou governar as emoções de todos. Nunca seria tarefa fácil num jogo em ebulição. O problema é que nada lhe saiu bem. Desde o critério largo dos minutos iniciais ao benefício dado ao infrator nos momentos finais, atravessado um critério disciplinar inconsistente – Živković que o diga. Em suma, muitas decisões erradas num ambiente de cortar à faca. Contudo, a culpa nunca pode morrer solteira. Afinal, por estes dias, o vídeo-árbitro está para o futebol como o SIRESP está para os incêndios: desativado.
As duas equipas mais concretizadoras do campeonato acabaram a zeros. O FC Porto, tal como em Alvalade, voltou a mostrar superioridade sem resultados práticos. Por sua vez, os lisboetas saem vivos do Dragão, provavelmente conscientes de que têm de produzir mais e melhor. No fim, fica a sorrir o Sporting pela liderança partilhada com os azuis e brancos. Temos campeonato, meus senhores!
“Chega a um ponto que é demais”
Sérgio Conceição não gostou da arbitragem de Jorge Sousa nem do vídeo-árbitro. “Chega a um ponto que é demais, porque já tivemos seis ou sete penaltis por assinalar esta época. Em cinco dias, são quatro pontos. É quase um ponto por dia. Fica difícil”.
Jogo é jogo e o técnico azul e branco reconheceu a entrada forte do adversário nos primeiros minutos. Contudo, garante que dada a superioridade portista no resto do encontro “se hoje o jogo acabasse 4-1 ou 5-1 não era escândalo para ninguém”. O empate a zeros e um “balneário que está revoltado” foi o que restou de uma noite de clássico.
Amanhã é outro dia e a determinação dos homens de Conceição não mudou. “Temos uma fome muito grande de ganhar o campeonato”.
“Se somos tetracampeões por alguma coisa foi”
Para Rui Vitória, o nulo em casa do rival portuense soube a pouco: “Não digo que estou totalmente satisfeito, mas também não estou triste”. Ainda assim, o técnico encarnado reconheceu que houve um equilíbrio de forças nas quatro linhas com “uma primeira parte mais nossa, uma segunda parte mais do Porto”.
Da consistência se fez a distância de três pontos. “Não estamos nem vamos estar a oito pontos do Porto. Não estamos mortos. Estamos bem vivos e vamos continuar”. Para o Benfica, o caminho é traçado “sempre com uma postura humilde, determinada. Se somos tetracampeões por alguma coisa foi”.
Artigo revisto por Filipa Silva