Um painel de três mulheres e um homem e uma audiência de maioria feminina encheram o Auditório Mariano Gago do Instituto de Investigação e Inovação da Universidade do Porto (I3S) para debater a desigualdade de género na Ciência e na Academia. A iniciativa promovida pelo movimento HeForShe – que chegou a Portugal em janeiro de 2017 e ganhou representatividade no Porto em junho – reuniu os investigadores Lígia Amâncio, Alexandre Quintanilha, Maria Inês Almeida e Maria José Oliveira.
A desigualdade de género na ciência esteve em pauta, mas outros temas juntaram-se à conversa. Lígia Amâncio, professora catedrática do Departamento de Psicologia Social e das Organizações (ECSH) e investigadora integrada do Centro de Investigação e de Intervenção Social, lembrou que há um enquadramento histórico que explica a chegada tardia das ideias feministas a Portugal.
A especialista em psicologia social explicou que a guerra colonial, nos anos 60, conjugada com o contexto de fluxos migratórios dos homens portugueses, conduziu à abertura do mercado de trabalho para a população feminina. “Em situações de guerra, os estereótipos dissipam-se” – notou Lígia Amâncio.
Portugueses têm “uma atitude de negação generalizada” quanto à discriminação
Ao contrário do que aconteceu nos países Aliados, em França e Inglaterra, nos quais a população feminina foi forçada a voltar a casa, quando a II Guerra Mundial terminou, em Portugal não houve recuo na situação profissional que as mulheres conquistaram. A diferença deve-se ao facto de a guerra colonial ter terminado com o 25 de Abril.
Na opinião de Lígia Amâncio, que é partilhada pelos três restantes investigadores, os portugueses têm “uma atitude de negação generalizada” quanto à existência de discriminação por género. O que acontece, explica a investigadora de psicologia social, é que a negação do problema é apoiada pela “omissão das evidências da desigualdade”.
Todos os oradores denunciaram que as instituições portuguesas não publicam estatísticas relativas ao género, quer ao nível da categoria de carreira académica, quer ao nível da área científica e dos órgãos de decisão.
“Há uma censura informal que torna o problema muito mais invisível”
“Há uma omissão das estatísticas binárias nas instituições. É uma coisa estranha, não sei o que queremos esconder. Há uma censura informal que torna o problema muito mais invisível” – foram as palavras de Lígia Amâncio, para descrever um cenário de conivência dos trabalhadores com o sistema que lhes é imposto.
A investigadora relembrou, ainda, que as diretrizes europeias estão a ser desrespeitadas e que as normas da Comissão Europeia prevêem a transparência na divulgação da proporção de mulheres no ambiente de trabalho.
Por outro lado, a especialista lamentou a ausência de um discurso reivindicativo por parte das mulheres,que diz ser causada pela conquista, sem retrocessos, do acesso ao mercado de trabalho nos anos 60. Nos restantes países europeus, foram os movimentos feministas os responsáveis pela luta pela igualdade de oportunidades. Já em Portugal as conquistas femininas foram fruto da necessidade e das contingências da Guerra Colonial.
Ainda existem “fileiras do ensino superior consideradas femininas e outras masculinas”
Apesar de o problema da desigualdade relacionada com o sexo ter sofrido melhorias, ainda existem “fileiras do ensino superior consideradas femininas e outras masculinas, fortes obstáculos à progressão das mulheres na carreira académica e ausência de mulheres no exercício do poder nos órgãos de decisão das instituições do ensino superior e de investigação”, de acordo com a professora catedrática.
A taxa de atividade feminina em Portugal é muito elevada e ultrapassa a média europeia, de acordo com o estudo de Lígia Amâncio sobre a representatividade laboral feminina. O mercado de trabalho é praticamente paritário – com 51% de homens e 49% de mulheres. Também as estatísticas relativas à frequência de universidades são animadoras para o setor feminino da população. No entanto, Lígia reforçou que “as pessoas se escondem atrás destes grandes números para negar a desigualdade de género”.
Da parte da audiência, a intervenção de um ex-estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto fez reacender o debate sobre as formas de exercer pressão sobre as universidades para que se inclua estudos de género no currículo académico. A professora catedrática Lígia Amâncio incentivou os estudantes universitários a exigirem os relatórios e estatísticas relativos à constituição quanto ao género nas áreas administrativas e pedagógicas.
“Estas pessoas têm medo das represálias, têm medo de falar”
Na opinião da oradora, a atitude de reivindicação dos estudantes poderá fazer emergir questões e suscitar nas instituições a consciência para “formar os seus estudantes e habilitá-los a participar nas políticas públicas dos seus países”.
Maria Inês Almeida, investigadora na área da biologia celular, pôs em discussão o tema da maternidade. Na opinião da cientista, o direito a constituir família é “incondicional” e não é respeitado “em muitas instituições”, que colocam em causa a posição das mulheres que planeiam engravidar.
Nestes casos, notou Maria Inês, não existe um órgão específico para onde as mulheres se possam dirigir e denunciar a situação, ou, pelo menos, existe falta de informação quanto às atitudes a tomar. “As queixas têm de ser confidenciais e, geralmente, estas pessoas têm medo das represálias, têm medo de falar” – referiu a investigadora.
“Prolongar a utilização da licença [de maternidade] coloca a mulher numa posição igualmente frágil”
O assédio sexual foi, também, apontado como um dos problemas que afetam as mulheres no local de trabalho, uma vez que contribuem para um ambiente de receio.
Outro dos tópicos em discussão foi a predominância de homens nos cargos de chefia. Para Maria Inês Almeida, muitas vezes, as mulheres também se privam de concorrer à liderança, porque não se sentem capazes ou incentivadas.
Maria José Oliveira, investigadora do I3S, reforçou as preocupações de Maria Inês Almeida, mas criticou, também, a utilização abusiva de licenças de maternidade nos cargos públicos. Para a oradora, os dois extremos são perigosos. “Prolongar a utilização da licença coloca a mulher numa posição igualmente frágil” – disse.
Do ponto de vista da investigadora, o trabalho doméstico deve ser discutido em paralelo. A investigadora considera que a divisão de tarefas domésticas é importante para criar mais condições de a mulher atingir sucesso ao nível profissional.
“Eu conheço muitas mulheres que desencorajam o discurso da igualdade”
Além disso, Maria José Oliveira lamentou que, em 15 universidades, apenas duas tenham uma reitora mulher – a Universidade de Évora e a Universidade Católica Portuguesa – e que nas páginas online das instituções ambas as reitoras estejam referenciadas com o título de “reitor”.
A luta pela igualdade de direitos não deve ser, para Alexandre Quintanilha, apenas uma causa feminina. O deputado do Partido Socialista e professor jubilado do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade do Porto evidenciou que as vitórias femininas recentes ainda são muito frágeis e referiu o exemplo de Malala Yousafzai, que foi baleada apenas por demonstrar vontade de ir à escola.
Quintanilha tem uma visão pessimista relativamente à adoção de políticas de igualdade nas universidades, uma vez que as mulheres também rejeitam os ideais feministas.
“Eu conheço muitas mulheres, até professoras catedráticas, que desencorajam o discurso da igualdade. Por exemplo, quando digo que sou jurado nos prémios das mulheres na ciência, algumas mulheres sorriem e dizem que é uma forma de discriminar o sexo feminino” – exemplificou o investigador.
Quotas: Muitas mulheres “bem colocadas na hierarquia” recusam a medida
Em pauta esteve também o tema das quotas de género. Os oradores são a favor da política para “forçar a mudança, numa fase de transição”. No entanto, Alexandre Quintanilha disse que muitas mulheres “bem colocadas na hierarquia” recusam a medida, por receio de que se pense que a boa colocação se deva ao género e não ao mérito, opinião que “entristece” o deputado socialista.
No fim do evento, Lígia Amâncio realçou que a luta pela igualdade de género é a luta pelo mérito e convidou a audiência a refletir “se o mérito tem alguma coisa que ver com uma proporção de 80% de homens catedráticos e 20% de mulheres”.
Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro