Há um ano que o Centro Gis luta contra a discriminação, a homofobia e a intolerância. Há 12 que Gisberta foi assassinada. A mulher transgénero em cujo nome o centro se inspirou, marcou o ponto de viragem na comunidade LGBTI em Portugal. Mais de uma década depois, Gisberta está mais viva que nunca.
Uma mandala colorida recebe-nos depois de aberta a porta do Centro Gis, localizado no antigo edifício da Câmara Municipal de Matosinhos. As cores vivas traçam o retrato de um espaço onde a diversidade é sinónimo de força, coragem e energia positiva. O centro de resposta à comunidade Lésbica, Gay, Bissexual, Transgénero e Intersexo (LGBTI) nasceu em memória de Gisberta, no dia 9 de janeiro de 2017.
A ideia foi de Catarina Marcelino, então secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade. Criar estruturas de atendimento específicas para pessoas LGBTI, com o acompanhamento de profissionais especializados na área, era uma falha que precisava de ser colmatada.
O convite foi feito e a ILGA Portugal e a Casa Qui abriram centros de atendimento em Lisboa. Já a Associação Plano i (APi), não esqueceu o norte do país e, com o apoio da Câmara Municipal de Matosinhos, abraçou o projeto.
Hoje, o Centro Gis apoia mais de 165 utentes, de todas as idades. Em apenas um ano de funcionamento, foram realizados mais de mil atendimentos, focados no apoio psicológico, psicoterapêutico, médico e jurídico, para além de consultas de endocrinologia. Foram ainda criados dois grupos terapêuticos: um para pessoas gays e outro para transgénero.
Os utentes recorrem ao centro pelas mais diversas razões. Se as pessoas transgénero procuram apoio no seu processo de transição, as pessoas cisgénero – cidadãos que se identificam com o género designado no nascimento -, dirigem-se ao centro sobretudo por questões LGB, “ora porque são lésbicas, gays ou bissexuais e precisam de algum tipo de apoio, nem tanto em lidarem com elas próprias, mas sim com situações às quais são sujeitas pela sua orientação sexual”, explica Paula Allen, coordenadora do Centro Gis, ao JPN.
“A mudança tem de vir pela educação”
O trabalho do Centro Gis é cada vez mais reconhecido. Os pedidos para ações de sensibilização chegam um pouco por toda a parte, embora nem sempre na hora certa. “Sinto que quando nos chegam estes pedidos é porque precisam de um efeito calmante ou de um bombeiro”, conta Paula Allen.
Para a responsável do centro, “o ideal seria fazer uma coisa concertada dentro do ano letivo e para todas as turmas, fazer algo bastante mais estruturado”. Atuar no sentido de prevenir e não de remediar é uma das mensagens mais importantes que o centro pretende transmitir, a todos aqueles com quem se cruza.
Ao JPN, Paula Allen acredita que “a mudança tem de vir pela educação”. O Centro Gis defende que a mudança de mentalidade deve ser incutida no sistema educativo desde o pré-escolar. O desejo é que os jovens do futuro passem a encarar a diferença com normalidade e que a educação leve à aceitação.
Muitas vezes, as crianças só tomam conhecimento das questões de orientação sexual e de identidade de género durante a adolescência. “Aos 16 ou 17 já será difícil, com 50 minutos, mostrarmos por A mais B àqueles jovens que o seu comportamento não é ajustado quando eles tiveram uma educação homofóbica anterior”, justifica a responsável pelo Gis.
Este efeito agrava-se nos adultos. Se existe uma relativa facilidade em chegar aos jovens, nos professores e pessoal não docente esta situação não se verifica, ora por falta de tempo ora porque o programa é longo.
Centro Gis
Edifício da Antiga Câmara Municipal de Matosinhos
Rua de Brito Capelo, nº 223, Loja 40
Contacto: 966 090 117 (24 horas)
Apoio presencial das 09h00 às 18h00
No entanto, Paula Allen, coordenadora do centro, confessa que era preciso “uma equipa a dobrar ou a triplicar” para alargar a resposta do centro. Afinal, “não há mais ninguém para o fazer” no norte do país. A grande novidade do Gis neste capítulo é o facto de estar prestes a ter na estrada uma unidade móvel de atendimento.
Portugal está de parabéns, mas ainda há muito a fazer
Gisberta, mulher transgénero brasileira, viveu no Porto durante 25 anos. Era seropositiva, sem-abrigo, trabalhadora sexual e imigrante ilegal e, aos olhos da sociedade, tornou-se um símbolo de discriminação. A sua morte, a 22 de fevereiro de 2006, foi provocada por um grupo de 14 jovens com idades entre os 12 e os 16 anos. Durante dias, Gisberta foi “violentada, agredida, magoada”, conta Paula.
Ainda que fora da primeira página dos jornais, o caso chocou a sociedade portuguesa, despertando a população para os direitos humanos também associados a questões de género. Prova disso é que, em junho do mesmo ano, se realizou no Porto a primeira marcha de orgulho gay, que resiste até hoje, como nota a coordenadora do Centro Gis.
A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o reconhecimento legal dos processos de co-adoção foram algumas das alterações legislativas que surgiram desde então.
Ainda assim, há muito por fazer. Permitir que homens gays recorram a barrigas de aluguer para poderem ser pais biológicos, facilitar o processo de mudança de género e de autodeterminação e repensar as questões intersexo, de forma a proteger os recém-nascidos, são algumas das leis que a também coordenadora da APi acredita estarem em falta para a comunidade LGBTI.
“Não tendo um terceiro sexo ou neutro, acabamos por ter de utilizar uma definição binária e definir logo à partida se é menino ou menina e isto é muitas vezes feito de forma errada. Porque não aguardar por uma idade em que se consiga perguntar ao jovem se se sente um rapaz ou uma rapariga?”, questiona Paula Allen.
Gisberta, a mulher que morreu nas mãos do preconceito
“É tão pequena a queda e o amor é tão longe”. É assim que termina “Balada de Gisberta”, uma homenagem de Pedro Abrunhosa à transgénero assassinada há 12 anos no Porto. Quando partiu rumo a Portugal, Gisberta trouxe consigo uma mala cheia de sonhos, mas a distância até ao fundo foi tão pequena, que “com sedas” matou e “com ferros” morreu. “Trouxe pouco” e levou menos. O fim veio buscá-la com 45 anos, descreve o compositor na letra.
Paula Allen, coordenadora do Centro Gis, não deixa que o que aconteceu caia no esquecimento. “Todos nós acarretamos culpa, sente-se isto”, recorda. Num seminário realizado em novembro, que se debruçou sobre questões transgénero, a balada de Pedro Abrunhosa foi música de fundo “e as pessoas sentiram o peso, as lágrimas caíam”.
Francisca Solange, transgénero e utente do centro, é advogada e uma voz ativa na luta pela igualdade. É casada há 37 anos e tem três filhos. Durante “anos e anos a fio”, travou uma luta interna em busca do seu verdadeiro “eu”. “A partir daí, desse dia, jurei a mim mesma nunca mais regredir, voltar ao passado”, lembra.
Quando conheceu o Centro Gis, no início de janeiro, “foi uma boa surpresa”. “Todos nós, sobretudo as pessoas mais fragilizadas, precisamos de ter alguém ao nosso lado que sintamos que nos poderá ajudar caso haja necessidade”, afirma.
“É um apoio, um centro amigo que eu tenho à minha disposição se precisar de alguma coisa”
É assim mesmo que olha para o Gis. “É um apoio, um centro amigo que eu tenho à minha disposição se precisar de alguma coisa”, conta ao JPN a advogada de 59 anos.
Para Francisca Solange, o sucesso do centro passa pela divulgação do seu trabalho: “não basta ser uma organização conceituada, com pessoas excelentes na direção, se nós não divulgarmos todos os géneros de ajuda que nos podem dar”.
O papel do centro é crucial no processo de mudança de identidade, que, apesar de moroso e difícil, é um desejo há muito ansiado: “é como um renascimento, é como se a pessoa anterior tivesse desaparecido e é isso mesmo que acontece. Há uma nova pessoa, uma nova identidade que reaparece”, revela Francisca, que passou pela experiência.
O impacto de Gisberta na população foi tão forte que permitiu a criação de centros como o Gis, que agora mantêm viva a memória da outrora diva transexual. Gisberta “já morreu, mas continua a marcar” todos aqueles que não viram a cara ao preconceito, em prol de um mundo mais justo.