Com 70 anos de vida e 50 de linhas de memórias, Eric Nepomuceno não escreve para salvar o mundo. O escritor falou disto e muito mais na última quinta-feira, no Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim. Nessa sessão do Correntes D’Escritas foi-lhe oferecido um globo terrestre, simbólico, mas que pairou sobre a cabeça do escritor quando veio dar a entrevista ao JPN e se esqueceu do mundo dentro da sala.

“Onde está o meu mundo?”, disse, “Depois tenho de ir buscar ele [o mundo].” Acende o cigarro.

Como se treina a memória num mundo tão veloz?

Eric Nepomuceno: Não sei. Esqueci. (risos) Nunca pensei nisso. Eu tenho memória. Eu lembro, nunca pensei.

Acha que pensar no processo desconstrói o ato de escrever?

(pausa) Fica calculado. Eu acho que a arte é uma coisa em duas etapas. Ela tem de ser espontânea e depois ela deve ser muito bem trabalhada. Uma coisa é a emoção e impulso e a outra é a forma. Eu sou um datilógrafo muito rápido. Hoje não se fala mais em datilógrafo. Mas sou um escritor muito lento, eu demoro muito para ir ao papel. Daí é fácil, aí vem a revisão que é onde o texto fica pronto. Escrever é cortar, armar e remontar.

Isso de cortar palavras vem do jornalismo?

O jornalismo para mim é um género literário com regras próprias e muito mais sacrificado. Eu posso demorar um ano para terminar um conto. Imagina eu chegar no jornal e demorar um ano para terminar um texto.

Era despedido.

(risos) Devia ser [assim], mas não é!

O facto de ter contactado com realidades mais duras, em jornalismo de guerra, fez com que a memória o motivasse a escrever os contos?

Também. Eu acho que a gente, o ser humano, é o que ele viveu e o que ele vive. Então é evidente que, se eu vivi determinadas situações, isso ficou impregnado em mim. Eu sou isso. (pausa) Numa etapa da minha vida eu (diz, enquanto puxa o tabaco para si e solta o fumo e as palavras) sabia qual era o cheiro da morte, o cheiro do medo. E é claro que isso acaba transcrevendo no que eu escrevia naquela etapa. Hoje não.

Esse cheiro é traduzível em palavras?

Não, mas está no que escrevo, no que eu escrevia naquele tempo. E também no que eu escrevo hoje. Isso não passa. O cheiro não se livra dele.

Ser escritor é um ato solitário, mas o livro faz companhia a alguém. Não se escreve para se salvar o mundo, mas escreve-se para se salvar o escritor e tentar salvar o leitor do livro?

Não, não. Para salvar alguém eu precisava de ser ou bombeiro ou Deus. Eu não sou nem uma coisa, nem outra. Se me salvar está bom.

Então é um ato egoísta?

Não, não. É um ato de desespero. (fuma, novamente, o cigarro e olha nos olhos sem o peso do que acabara de dizer) É diferente. (pausa) Eu gosto de saber que eu quero e faço o possível para proteger meu filho, meus irmãos, meus amigos, meus amores. Proteger é uma coisa. Salvar é outra.

No dia em que o artista estiver salvo e o mundo estiver salvo, já não há sobre o que escrever?

(pausa) O mundo nunca vai estar salvo… Nunca. Nunca.

E o artista?

Esse está salvo, sempre. Se o mundo um dia for salvo, o artista vai contar como é que ele era antes. Mas isso não vai acontecer.

E na tradução? Gosta de traduzir sobre aquilo que o inquieta ou de pessoas que admira, amigos…

Amigos. Eu deixei de traduzir muito escritor que eu admiro muito, respeito, porque não fazem parte do meu universo, da minha “igreja”. Uma vez eu fui traduzir um chileno que eu não conhecia. Fui recomendado por um cineasta, o Walter Salles, cineasta meu amigo, para a editora. Eu para a editora até podia dizer não, para ele eu não queria. Então eu liguei para um outro amigo chileno e falei: Você conhece fulano? Conheço. Vem cá, se eu estivesse em Santiago e ele também você chamava ele para tomar vinho com a gente? Claro! Então eu vou traduzir. É assim.

Onde reside a criatividade na tradução? Ou não é suposto ter marca própria?

A tradução tem uma marca própria. Eu ganhei alguns prémios de tradução, alguns importantes e fiquei muito feliz por causa do cheque. Porque o maior prémio que um tradutor pode ganhar é ouvir de um leitor “nem parece tradução”. Você tem de fazer um esforço enorme para desaparecer. Eu acho que a tradução é uma relação conjugal triangular: todo o mundo tem de ser fiel a tudo. Tenho de ser fiel ao autor, tenho de ser fiel ao idioma dele, ao livro dele e ao meu idioma. O que eu faço é escrever em português do Brasil, o que ele escreveu em castelhano, em chileno, não interessa. Os idiomas são muitos. O humor varia. O humor de um caribenho não tem nada a ver com o humor de um chileno. Então você precisa conhecer isto também.

Traduziu mais de 80 livros dos mais importantes autores hispanoamericanos contemporâneos. Isso valeu-lhe 3 prémios Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro.

É colocar-se na pele do autor?

Absolutamente. Sendo leal a ele.

A si também?

A mim também. Volta e meia dá vontade de dar mexidinha [aos textos]. (risos)

O escritor deve preocupar-se com o que o rodeia? Com a moralidade?

Quem se preocupa com a moralidade é a moral. A arte tem ética, não tem moral. Cada vez que eu oiço alguém falar “isso é imoral”, imoral é ele. Cada vez que eu oiço “como levar um adolescente para ver um nu”, o tarado é ele. O escritor tem de se preocupar com a escrita. O cidadão é outra coisa. Eu me preocupo com a cidadania, claro. Mas o que eu escrevo, não. De alguma forma está, porque a gente é o que a gente escreve e a gente escreve o que a gente é.

Há alguma história que nunca tenha contado a alguém?

Várias, muitas. Senão eu parava de escrever.

E há alguma que possa contar?

Não. Se eu contar não escrevo.

Acabou o cigarro. E foi buscar o mundo.

 

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro