Este é um artigo sobre a escrita. É por isso que começa in media res, ou, por outra, no possível início da história que tem os escritores como protagonistas, coisa rara e conseguida desta vez no auditório do Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim.

“Um romancista tem uma noção de tempo diferente. O tempo da escrita é muito diferente do tempo de vida cronológico. Um romancista mede o tempo pelo seu relógio emocional”, disse João Tordo, enquanto tentava explicar que os três conceitos principais do seu percurso literário eram “o tempo, o medo e a aceitação”.

O medo veio primeiro. O medo de errar e de não se fazer compreender. “O medo que eu tenho de falar fez com que a escrita se tornasse um refúgio”, começou por partilhar o escritor com a plateia. Também confessou o nervosismo que sentia perante um auditório cheio: “Eu tenho uma dificuldade acrescida, porque sou gago”.

“Um escritor é, acima de tudo, um observador estupefacto desta disfunção ou desta membrana de perturbação que existe entre si próprio e o mundo”

“Ser gago proporcionou-me a escrita, porque a comunicação oral, em criança, para mim era estranha e difícil. Eu descobri que a escrita me convinha mais. A respiração que a escrita me traz e o tempo que a escrita me dá transmitem-me a calma e a paz que a comunicação oral nunca me transmitiu”, atirou João Tordo.

João Tordo sublinhou que tentou contrariar o mote do encontro literário: O que escrevo atormenta o que sou. “Eu tentei reverter o tema: Aquilo que eu sou atormenta o que eu escrevo“, admitiu.

O autor do mais recente Ensina-me a Voar sobre os Telhados – que tem lançamento marcado para março – falou, ainda, da condição de escritor que, na sua perspetiva, não é um estatuto social desejável: “Um escritor é, acima de tudo, um observador estupefacto desta disfunção ou desta membrana de perturbação que existe entre si próprio e o mundo”.

[Os escritores] “tendem a ser solitários, bêbedos, ressentidos, mentirosos, manipuladores, suicidas, melomaníacos, narcisistas, aldrabões e pelintras”

As dores e as feridas são a matéria-prima da criação literária, segundo o escritor, o que faz do contador de histórias um ser disfórico: “Sem feridas, os escritores poderiam ser cidadãos, de certo modo, ajustados, e membros úteis desta sociedade, bons filhos, excelentes amantes, jogadores de golf, presidentes de várias associações. Mas não. Eles tendem a ser solitários, bêbedos, ressentidos, mentirosos, manipuladores, suicidas, melomaníacos, narcisistas, aldrabões e pelintras”.

João Tordo  resumiu o complexo da escrita como uma tentativa de “reunir num só volume esta fragmentada experiência humana” e projetou alguns exemplos das suas primeiras aventuras pelo mundo da escrita. Nas suas palavras:”a tentação de um miúdo de tentar agrupar o caos”.

"Este é o meu primeiro romance. Estávamos em 1982 e eu tinha 7 anos", contou João Tordo. Foto: Catarina Vasconcelos

“Este é o meu primeiro romance. Estávamos em 1982 e eu tinha 7 anos”, contou João Tordo. Foto: Catarina Vasconcelos Foto: Catarina Vasconcelos

As tentativas de vencer os monstros interiores começaram na infância. O escritor disse que as imagens ilustravam o início de tudo: “Como começou em mim a literatura”.

"A personagem principal desta história era o Super Amendoim, que andava atrás de um bando de formigas ladras" Foto: Catarina Vasconcelos

“A personagem principal desta história era o Super Amendoim, que andava atrás de um bando de formigas ladras” Foto: Catarina Vasconcelos Foto: Catarina Vasconcelos

Apesar da dor que diz sentir e das “feridas” que auxiliam e inspiraram o percurso literário de João Tordo, o escritor acredita que o gosto pela criação artística tem de estar patente: “Eu também tenho prazer a escrever, mas, se não escrever, a minha vida é um desgoverno de ideias e emoções e de sentimentos confusos e baralhados”.

Por outro lado, Afonso Cruz confessa ser um “não apologista da dor”. Ainda assim, e porque o ato criativo assim o exige, o escritor não se revelou imune ao sofrimento. “Adoro escrever, tenho prazer em escrever e, se não tivesse, não escreveria, o que não quer dizer que por vezes não me magoe”, admitiu.

“Há sempre uma rutura com aquilo que somos, com as nossas ideias, com os nossos preconceitos, porque senão não seria criação. E essa rutura implica sempre alguma dor”, explicou o escritor que ainda não sabe para onde vão os guarda-chuvas, mas que encontrou um pintor debaixo do lava-loiças.

“Flaubert, quando escrevia sobre a Madame Bovary, sentia o sabor de arsénico na boca, e, quando acabava de jantar, vomitava”

Afonso Cruz partilha da opinião pessimista de João Tordo acerca da essência do ser-escritor e exemplificou com autores que sofreram as dores das personagens que criaram.

“Flaubert quando escrevia sobre a Madame Bovary sentia o sabor de arsénico na boca e quando acabava de jantar vomitava. Havia uma identificação muito grande com as dores da sua personagem, ele sofria com elas. Mais tarde, ele acaba por dizer ‘Madame Bouvary, c’est moi’ “.

O escritor lembrou ainda a célebre frase do pintor Francis Bacon: ‘O cheiro a sangue não me deixa os olhos’ e sublinhou que a dor é objeto de toda a criação artística. Para demonstrar a teoria, Afonso Cruz projetou imagens do quadro Coroação de Espinhos, de Bosch.

"Eu acho que este é um quadro sobre a dor", disse Afonso Cruz, sobre a pintura de Hieronymus Bosch. Foto: Catarina Vasconcelos

“Eu acho que este é um quadro sobre a dor”, disse Afonso Cruz, sobre a pintura de Hieronymus Bosch. Foto: Catarina Vasconcelos Foto: Catarina Vasconcelos

“O que me intrigou neste quadro foi a folha de carvalho a enfeitar um chapéu tão luxuoso, um chapéu de burguês”, começou por explicar.

"O corte de um cerebelo é uma folha de carvalho. Parece uma folha de carvalho. O cerebelo situa-se, mais ou menos, onde está a folha de carvalho", continuou o escritor de Jesus Cristo Bebia Cerveja. Foto: Catarina Vasconcelos

“O corte de um cerebelo é uma folha de carvalho. Parece uma folha de carvalho. O cerebelo situa-se, mais ou menos, onde está a folha de carvalho”, continuou o escritor de Jesus Cristo Bebia Cerveja. Foto: Catarina Vasconcelos

Segundo Afonso Cruz, o pintor Bosch acreditava que o cerebelo era o centro da dor e a pintura demonstra que o sofrimento está sempre associado à cabeça, o que justifica os objetos de tortura que os protagonistas do quadro têm junto ao cérebro.

“Vamos agora observar a Criação de Adão da Capela Sistina”, convidou o orador.

Afonso Cruz mostra o quadro "Criação de Adão". Foto: Catarina Vasconcelos

Afonso Cruz mostra o quadro “Criação de Adão”. Foto: Catarina Vasconcelos Foto: Catarina Vasconcelos

O escritor disse ainda: “A Criação de Adão é um corte do cérebro humano”. Segundo Afonso Cruz, toda a criação artística está recheada de simbologia que pode escapar aos olhares mais desatentos.

"A Criação de Adão é um corte do cérebro humano", reforçou o escritor. Foto: Catarina Vasconcelos

“A Criação de Adão é um corte do cérebro humano”, reforçou o escritor. Foto: Catarina Vasconcelos Foto: Catarina Vasconcelos

“Viver num vale de lágrimas” é o habitat natural do artista, mas o que a criação artística conta, ao longo da História, é que “o vale de lágrimas, este tormento todo somos nós”, rematou Afonso Cruz.

Outro dos autores que aceitou falar do tema “O que escrevo atormenta o que sou” foi Sandro William Junqueira. Uma “forte e bíblica chuva de sapos”, Mark King, o “homem mais alto que já vira chorar”, um poema de Billy Collins, que perdera um grande amigo e todas as manhãs lia o jornal, e outras personagens, como Paul Thomas Anderson, fizeram parte de um discurso feito de imaginário e emoção.

O escritor confessou que desejava ter escrito textos que outros assinaram, mas que lhe faltou o “rasgo e o talento”: “Não é poeta quem decide querer, é preciso antes sê-lo”.

“Porquê insistir escrever, depois de tudo o que já foi escrito? Talvez este seja o tormento maior”

Sandro William Junqueira propôs-se “falar da escrita e de todos os fantasmas e tormentos que dela resultam”. Para o escritor, a dor é também parte indissociável do processo criativo e vive em todas as personagens geradas.

“Não sei se existe uma clara diferença entre o escritor que tento ser e o que sou, se respondo com as escritas aos socos que a realidade me dá, se as dores de que padeço durante o processo de escrita não passam, também elas, a fronteira entre ficção e realidade para se infiltrarem e contaminarem a minha vida. E como, e porquê, insistir escrever, depois de tudo o que já foi escrito? Talvez este seja o tormento maior”, refletiu Sandro William Junqueira.

A ausência de Hélder Simbad, escritor angolano, na mesa do Correntes d’Escritas foi atenuada pela presença do poeta Lopito Feijóo que aceitou substituí-lo. Lopito Feijóo leu as palavras que Hélder Simbad deixou escritas.

“A palavra é uma força oculta que se move secretamente”

“As palavras envergonhar-se-iam do corpo que as escreve. Seria, provavelmente, a maior ironia do mundo dos homens. Um ser nunca é digno de ser maior do que as suas palavras. O que escrevemos é sempre maior do que nós. O que tendemos a ser é o que a realidade nos pede. Ser é apenas uma prerrogativa dos deuses e alguns homens são geralmente incompreendidos. Somos tão pequenos ante o que escrevemos e só por isso o que se escreve nos atormenta porque, por vezes, se escreve mesmo”, leu o angolano.

Hélder Simbad, para além de escrever “o avesso das coisas”, acredita que “a palavra é uma força oculta que se move secretamente”.

A apresentação do escritor como pessoa de carne e osso perante a audiência “pouco importa”, até porque, como escreve, “o que sou pouco importa, o que importa é o que escrevo”.

“Sou cúmplice absoluta da história e de tudo o que se esconde atrás dela”

Karla Suarez trouxe, ao Correntes d’Escritas, uma visão diferente do processo criativo. A escritora cubana, que vive em Espanha, resolveu falar dos leitores: “É o leitor que me salva deste tormento da escrita. Os leitores são o final de todo o processo”.

O que escreve atormenta o que Karla Suarez é, mas são os leitores que lhe aliviam as dores. “Enquanto o texto não existe, não há leitor possível. O único leitor são os meus olhos”, disse a escritora.

Por isso, enquanto escreve, a história é outra: “Sou cúmplice absoluta da história e de tudo o que se esconde atrás dela”. A autora revelou, ainda, que o seu crescimento e o da história é mútuo e entrelaçado. “A história e eu alimentamo-nos do mesmo. Vivemos uma da outra”, atirou.

“O ponto final também pode ser um ponto de partida”

O ato de escrever pode assemelhar-se a um “exorcismo”, segundo a autora, porque “tudo está por descobrir, em texto”.

As diferentes vozes da mesa falaram para uma sala cheia, na última sexta-feira. As palmas ditaram o ponto final de uma história de partilha. Mas, como Karla Suarez lembrou, “o ponto final também pode ser um ponto de partida”.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro