“Um Muro no meio do Caminho” é o que Julieta Monginho não quer que o ser humano encontre, sempre que bater à porta da compreensão do outro. Escritora, leitora, Procuradora da República e defensora dos direitos humanos, acredita que as possibilidades são múltiplas quando se vê o mundo como uma biblioteca.

A mais recente obra de Julieta Monginho não é uma transcrição da realidade, porque só a ficção lhe interessa, mas vive em torno das suas vivências como voluntária no campo de refugiados de Chios, na Grécia.

Numa conversa sobre as estórias dentro da História, sobre o singular e o múltiplo do ser humano, a escritora explica como são os livros que nos salvam.

JPN – Como acontece com a maior parte dos escritores, há vários fatores que a devem ter levado à escrita, não? O dom, a inquietude, a necessidade… O que sentiu primeiro? Ou anda tudo entrelaçado?
Julieta Monginho – A escrita e a leitura, para mim, estão completamente entrelaçadas desde criança. Eu quase não me recordo de não querer escrever ou de não ler. Recordo-me da época em que aprendi a ler, com histórias infantis, tinha ainda quatro anos. O meu pai era escritor, era poeta. Tinha uma grande biblioteca em casa e comprava-me aquelas histórias de encantar. Foi com um livro desses que aprendi a ler: “A Gata Borralheira”.

Ao aprender a ler, a escrita veio naturalmente. O meu pai já escrevia e parecia tudo muito normal, muito natural. Além disso, o meu pai frequentou, nos anos 50, meios muito ligados à poesia, como o Café Gelo, com o Herberto e Mário Cesariny, e fazia parte dessa tertúlia. Eu cresci assim. Eles eram os meus heróis. Os meus heróis eram os escritores.

Cresci a ouvir o meu pai dizer poesia, sobretudo versos de Herberto Helder. Talvez até antes de aprender a ler, eu aprendi a dizer versos de cor. Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue… [declama].

Também me recordo de, aos cinco ou seis anos, ter ficado vidrada em Florbela Espanca e de ter tentado escrever sonetos à maneira dela. Mas não eram sonetos e eu ainda não era escritora…

Mais tarde, porque tinha muito respeito e admiração por esse mundo, durante muito tempo, já na idade da razão, não me atrevia a escrever. Fazia ensaios, isto é, fazia tentativas, mas todas me pareciam absolutamente ridículas e paupérrimas.

“Um escritor sem uma voz própria pode arremedar, pode fazer coisas à maneira de, mas isso não é escrever. Quando se tem uma voz própria, sim, já se pode dizer que se é escritor”

Tinha medo de fracassar?
Não era medo, era a noção de que estava a fracassar. Sabia que aquilo não era bom.

Não era uma autocrítica exacerbada?
Não creio, não creio. Eu acho que nós sabemos quando encontramos uma voz própria. Um escritor sem uma voz própria pode arremedar, pode fazer coisas à maneira de, mas isso não é escrever. Quando se tem uma voz própria, sim, já se pode dizer que se é escritor.

Já se é herói?
Para as outras pessoas, sim.

“Isso é uma coisa que eu respeito e que assumo como minha: a responsabilidade como cidadã. Por outro lado, se tenho uma voz, se tenho uma forma de expressão privilegiada, não posso desperdiçá-la”

Ainda não se considera heroína?
Nem sequer me considero muito escritora. Não sei se me falta alguma coisa, ou se me sobra, mas ser escritor é um estatuto e eu não gosto muito de estatutos. Sou uma pessoa que escreve e que gosta de escrever. Estou neste universo da escrita. Não estou a dizer que não assumo a minha qualidade como escritora, seria tontice dizê-lo…

Em todo o caso, o estatuto fixo de escritora, não sei… Não gosto do que está à volta do ser escritor, sobretudo com a construção que agora existe de que o escritor é uma personagem famosa e fabulosa. Isso não me diz grande coisa.

No entanto, em entrevista ao “Jornal de Letras”, falou na responsabilidade. E isso é algo em que crê… A responsabilidade de quem encontra essa voz própria…
Isso é uma coisa que eu respeito e que assumo como minha: a responsabilidade como cidadã. Por outro lado, se tenho uma voz, se tenho uma forma de expressão privilegiada, não posso desperdiçá-la. Não quer dizer que tenha sempre o registo que tive neste livro [“Um muro no meio do caminho”], que até é quase um acidente – um bom acidente – no meu percurso literário. Não estava previsto escrever sobre este tema.

O que me motivou na minha ida à Grécia, ao encontro dos requerentes de asilo, não foi a escrita, não foi a minha faceta literária, foi a minha faceta cidadã, foi o meu sentido de responsabilidade. Pode ou não ser dissociável da escrita. No meu caso, não é.

Quando voltei, senti um apelo irresistível e pensei: Tens a voz, tens o instrumento e tens a cabeça num turbilhão, por causa desse universo. Um universo que para mim ficou incompleto com o estar lá e que eu, de certa forma, completei com a escrita deste livro. E penso que também completei as pessoas com quem me cruzei por lá tão fugazmente… Ficaram mais inteiras.

“É como escreveu Jorge Luís Borges: estes atalhos que se bifurcam são o infinito. É a biblioteca. A biblioteca é o universo, o universo é a biblioteca”

Usou a palavra instrumento. O que é que este instrumento pode fazer por si e pelos outros?
Por mim não quero que faça nada, não tenho esse objetivo. Não quer dizer que não goste de escrever, claro que gosto, e, como é agradável, o que faz por mim é dar-me esses momentos em que consigo estar de bem com o que estou a fazer.

Mas, pelos outros, espero que seja uma comunicação que proporcione um encontro para ampliação de mundos, assim como a leitura ampliou o meu mundo de forma exponencial. O mundo tal qual o vemos e sentimos é tão exíguo comparado com aquele que podemos conhecer através da leitura e nada a substitui, parece-me. A leitura proporciona múltiplos caminhos. É como escreveu Jorge Luís Borges: estes atalhos que se bifurcam são o infinito. É a biblioteca. A biblioteca é o universo, o universo é a biblioteca.

A minha ambição, como a de qualquer escritor, é ter um olhar simultaneamente microscópico e macroscópico relativamente à natureza humana, a este mistério incrível que é o facto de termos uma raiz tão comum, de sermos tão irmãos na humanidade, tão iguais na humanidade, e, ao mesmo tempo, de sermos tão singulares, tão iguais a nós próprios.

Eu acho que a literatura serve para interrogar. Para além disso, essa possibilidade de alargar os mundos, de pôr as pessoas a questioná-los… Um livro que nos deixa com mais certezas do que interrogações não é um livro muito interessante. Poderá ser um bom passatempo, mas não é a leitura mais aliciante. No fim, os livros que nos causam mais intranquilidade talvez sejam aqueles que mais nos marcam.

“O percurso é tão ou mais importante que a foz de um rio. Apesar de a junção do mar com o rio ser aquela imensidão que nos maravilha, o percurso é mais importante”

Suponho que também tenha os seus momentos de revelação quando escreve…Também a vão construindo enquanto pessoa? Sente que esses momentos se vão fundindo na esfera pessoal?
Sim, é mesmo difícil separar as duas realidades. Eu não sei se cresço, mas fico com cada vez mais interrogações e isso é bom. Eu gosto de ter interrogações, de não ter certezas, de estar sempre à procura de caminhos, sabendo que eles são múltiplos e que vale a pena tentá-los todos. O percurso é tão ou mais importante que a foz de um rio. Apesar de a junção do mar com o rio ser aquela imensidão que nos maravilha, o percurso é mais importante.

Veja-se por exemplo um livro como “O Coração das Trevas”, que nos remete para todo o caminho rumo a uma realidade que é terrível. Todas as minhas respostas acabam em referências literárias, não pela citação, mas porque o universo é uma biblioteca.

E porque, no fundo, os livros a ajudam a compreender a realidade?
Sim, e porque cada um tem a sua biblioteca, assim como cada um tem a sua vida.

Mas é mais difícil a vida quanto mais vasta for essa biblioteca? Essa tentativa tão incessante de compreender tudo pode não ser um caminho de placidez?
Questionar nunca é uma coisa confortável. O conforto mora nas certezas do nosso dia a dia, mas também é pobre. A vida é tão preciosa que reduzi-la ao que já conhecemos, àquilo a que temos acesso tão facilmente não interessa.

“A cultura é o contrário da rejeição e da discriminação. Se estivermos do lado da hostilidade ou da indiferença, não estamos do lado da cultura”

Há uma intenção sua de dar voz ao que não é ouvido no espaço mediático?
No caso deste livro, sim, porque me choca bastante a relativa – e digo relativa porque não gosto de absolutos – indiferença que as pessoas vão adquirindo relativamente a estas realidades que nos interpelam a todos.

Custa-me aceitar que as pessoas não percebam que são os seus valores. Os valores, que foram sendo construídos ao longo do tempo e que nos fazem viver esta liberdade magnífica, podem estar em causa. Se a queremos tanto para nós, como podemos deixar o outro à nossa porta? São pessoas com uma confiança tão grande neste nosso sistema de liberdade… Claro que a geografia também os obriga a fugir, porque o abrigo deles estende-se para lá dos países fronteiriços, que também estão a ser destruídos. Eles não têm escolha, não têm vida lá. Não têm vida, só têm morte.

Como podemos assistir aos últimos ataques na Síria e não nos sentirmos interpelados? Como não perceber que são pessoas como nós, que são pessoas que precisam de nós e que nós poderíamos estar nessa situação?

A grande matriz da cultura, tal como a construímos e temos vindo a construir desde a Antiguidade Clássica, desde a Grécia Antiga, é o acolhimento do forasteiro, não o oposto. A cultura é o contrário da rejeição e da discriminação. Se estivermos do lado da hostilidade ou da indiferença, não estamos do lado da cultura.

Quando regressei deste trabalho, que foi apenas um trabalho cidadão, surgiu-me naturalmente, porque tudo em mim é ficção. É o meu registo natural. Mas, por outro lado, foi uma forma de prolongar aquelas vidas, de as libertar simbolicamente. Queria que as conhecessem de forma a que se revissem naquelas pessoas, tão parecidas connosco na sua essência. Pessoas que até gostam das mesmas músicas, que têm os mesmos anseios… São culturas distintas, mas isso é apenas uma diferença que enriquece.

Eles não são terroristas, que não se confunda. Isso é uma ideia que nos incutem de forma a que as pessoas sejam movidas pelo medo e não pela solidariedade.

“Um romance não é um programa, não tem que ter um objetivo”

Que outras questões sociais a estão a inquietar neste momento?
Sempre me inquietaram várias questões. Eu colaboro em alguns projetos relativos a outros problemas que também me interpelam muito enquanto cidadã. Recentemente fiz parte de um projeto de apoio aos sem-abrigo, no livro “As Vozes do Silêncio”, que é uma ideia que reúne experiências de diferentes escritores, fotógrafos e ilustradores, com sem-abrigo.

Sempre fui muito ligada a esse tipo de intervenção social e, sempre que me pedem, estou disponível para o fazer, o que não significa que eu restrinja a minha escrita a estes temas. Um romance não é um programa, não tem que ter um objetivo. A ficção toca tudo o que é humano, nada do que é humano nos é estranho.

No fundo, o escritor pode assumir essa responsabilidade, mas não tem que se esperar que o romance seja isso tudo? Pode simplesmente existir, ser arte, estar ali?
Naturalmente. Não se pede a um escritor que confunda os dois planos. Pede-se a um escritor que não se alheie do mundo em que vive. Também se se alhear e fizer bons romances, estamos muito bem.

Há imensas obras literárias escritas por pessoas ligadas a ideologias muito duvidosas. Céline foi um génio da escrita e era nazi. Mas a obra é uma coisa, a pessoa é outra. O escritor é uma coisa, o homem é outra.

Um romance é um universo e pode caber lá tudo. Aliás, tem de caber tudo e ainda mais alguma coisa.

O escritor pode não escrever? A Julieta pode não escrever?
Eu creio que neste momento já não posso. Não posso, porque sinto falta. Não é por uma questão de responsabilidade por já ter publicado e pelas expetativas dos outros.

Acho que houve um momento na minha vida em que eu podia optar por não escrever, mas o apelo estava lá. Por isso, continuei a insistir. Houve um momento em que desbloqueei e depois já não houve mais regresso.

“Há uma tendência infeliz para se começar a escrever a partir do nada, como se cada universo não estivesse ligado a tudo o que veio antes”

Ao “Jornal de Letras”, falou de “histórias, todas vindas do mesmo lugar primordial, onde nascem as histórias que o tempo vai contando”. Que lugar é esse? Como o descreveria?
Para mim, há uma grande fonte de formação, que são as histórias populares. As histórias populares têm muitas semelhanças por todo o mundo. No espaço europeu, por exemplo, têm raízes muito próximas. Os contos populares portugueses fizeram parte da minha formação e vim a descobrir que têm imensas parecenças com o imaginário italiano, que vim a rececionar.

Essa vontade de contar não sei como nasceu, mas acho que o Homem, desde sempre, teve necessidade de contar a sua História.

Chios, a ilha onde eu estive neste trabalho humanitário, é o lugar onde se diz que Homero andou. Não se sabe se Homero existiu ou não, mas foi com esse nome que foram recolhidos os primeiros contos que foram conhecidos em livro nesta parte do mundo. A Odisseia é ainda a narrativa primordial.

E, a partir daí, tenho a sensação de que todas são uma busca, são uma viagem. A viagem e a procura são sempre temas literários, senão mesmo o tema literário.Também temos as referências da Idade Média, como a da Távola Redonda.

Outra coisa que me fascina nos contos ancestrais é a convivência do real com o absurdo, da realidade com a fantasia. Isso é algo que me interessa muito e que espero conseguir transmitir com os meus livros. A mistura de tudo é muito enriquecedora e essa indivisibilidade é a matéria mais interessante. Não é o mesmo que verosimilhança. Eu acho que aquilo que aconteceu pode acontecer e que aquilo que nunca aconteceria mas pode acontecer na nossa imaginação se entrelaçam e convivem bem.

Que escritores e obras destacaria nesse processo e nessa busca que também fez através da leitura?
Eu tive muitíssimas fases e há livros que me foram marcando ao longo do tempo. Tudo o que seja heterodoxo na literatura me apela. A minha formação foi muito anárquica e heterogénea, por isso, é difícil dizer quais foram os escritores da minha formação.

O meu pai disse-me: Já que lês tudo, agora vais ter que ler os clássicos. Eu li os clássicos e, inclusivamente, li um livro que se chama “Porquê Ler os Clássicos?”, de Italo Calvino. Sem a visão do que é a história literária, não vale a pena começarmos a escrever.

Há uma tendência infeliz para se começar a escrever a partir do nada, como se cada universo não estivesse ligado a tudo o que veio antes.

“É o escreviver. Vida e escrita como uma coisa só. Escrever a vida e viver escrevendo”

Sem história, como escrever histórias?
É isso mesmo. Não faz sentido. Uma coisa é um arroubo de juventude, aquele registo diarístico – é muito natural e não sou contra isso -, outra coisa é literatura. Não se pode confundir, a não ser que estejamos a falar do domínio da genialidade.

Depois dos clássicos, talvez a minha maior pancada literária tenha sido Emily Bronte. Mais à frente, George Perec, que despoletou em mim o atrevimento literário. Quando eu fazia as minhas tentativas, tudo me parecia muito fragmentado. E eu olhava para aqueles monumentos literários e pensava que nunca seria capaz de escrever nada dessa forma; com princípio, meio e fim tão definidos.

Quando lia Perec, pensava: Isto funciona tão bem em fragmentos. Tenta, fragmentos já são o teu domínio. Foi assim que eu me atrevi, pelos meus fragmentos, até à montagem de um livro. Apesar disso, cada um dos meus livros tem uma forma distinta de narrar e uma estrutura própria.

Gostaria de perguntar alguma coisa aos escritores que lê, ou tem um sentimento de profunda identificação com eles? Ou o que lê é tudo o que precisa de saber deles?
Uma boa pergunta essa, e difícil. Eu gosto de não perceber tudo e de poder voltar a um livro e ver coisas novas, de que não me tinha apercebido antes.

Certamente que faço perguntas enquanto leio. Eu tenho um grande fascínio por pessoas que fazem da literatura a sua vida, que confundem a vida com a literatura. Gostaria de estar, por momentos, na cabeça de alguém para quem o universo literário fosse confundível com a vida vivida, como por exemplo, Maria Gabriela Llansol. É o escreviver. Vida e escrita como uma coisa só. Escrever a vida e viver escrevendo.

Neste momento, não me ocorre nenhuma pergunta. Gostava de lhe perguntar qual o interesse que tem em entrevistar-me…

“O que não quero é que se pense que o escritor é um ser etéreo, que está lá, naquele pedestal, e que não tem nada que ver com o que se passa no mundo”

Sobretudo as suas preocupações, o facto de se assumir como uma pessoa que não é imune ao chão que pisa. Muitos escritores se isolam dessa responsabilidade de se posicionarem…
O que eu não gostaria que se difundisse é a ideia de que, por se ser escritor, se está imune.

Apesar de que o que o escritor faz, mesmo não tocando essas questões sociais – de alguma forma, até acaba sempre por as tocar -, já é uma contribuição…
É sempre uma voz. Cada um utiliza como entender. O que não quero é que se pense que o escritor é um ser etéreo, que está lá, naquele pedestal, e que não tem nada que ver com o que se passa no mundo.

Aliás, ao longo da História, não foi isso que se passou. Os escritores, de uma forma geral, até foram seres muito participativos na sociedade.

A literatura, até mais do que a História, conta-nos tempos. Aprendemos tanto sobre os tempos através de grandes obras literárias… Porquê desdenhar isso? A atitude de desdém perante a vida, tal como ela é, é que me choca, estranho-a.

Artigo editado por Filipa Silva