Cheira a madeira quente e alcatifas luxuosas. As paredes são parte da Invicta, vestígios da Muralha Fernandina que caiu para abarcar mais cidade. Veste-se de ouro e mobílias com mais de 100 anos de história, do arquiteto José Marques da Silva. A cada virar de esquina impera o silêncio na altivez de um edifício que é sagrado pelo que alberga: a arte.

O Teatro Nacional São João abre as portas e despe-se de segredos no dia que comemora a arte de vestir peles alheias. O átrio é o epicentro e o espelho que divide o edifício em duas partes simétricas que confundem, facilmente, quem não estiver familiarizado com o espaço dos artistas.

Sobem-se degraus frios, embelezados de bordeaux e dourado e abre-se, diante dos olhos fascinados dos curiosos, o Salão Nobre. Imaginam-se festas e banquetes, a ter lugar num tempo que ficou para lá da arte, acompanhados de música a pintar a época. Falar-se-ia, provavelmente, de indumentárias “chic a valer” ou, então, de negócios do Brasil e de África.

Do salão para o bar, o ambiente mantém-se. Sabe-se que este era o espaço privado do rei e dos seus mais próximos. Hoje, o local é amplo e de convívio ocasional e pequenos concertos. Mas nem por escassos instantes perde o encanto de outrora.

Há medida que se sobe perde-se a riqueza. E, assim, a estrutura do teatro vai contra a lógica da estrutura social. Nos andares superiores já não abunda folha dourada e também não há espaço para os grandes vestidos e chapéus que ornamentavam o piso inferior.

Provavelmente, nunca chegaram tão alto no edifício grandes vestidos e chapéus de penas, mas a plebe também tinha direito a ir ao teatro. Não entravam pelas portas grandes, abertas de par em par. Subiam, por escadas de ferro, situadas nas laterais do teatro, diretamente ao único local que lhes estava destinado: o galinheiro.

Continua-se em direção ao céu. “Medo de alturas, alguém tem?”, pergunta o guia do Teatro Nacional de São João aos amantes de uma das artes mais antigas de que há memória. Aí já todos estavam a 18.5 metros do palco, numa das seis varandas de manutenção.

A magia acontece nos bastidores. Há a teia, suspensa sobre o palco, panos e varas – 44, e de pesos diferentes, para ser mais preciso. Os panos pretos, bambolinas, escondem o que o artista quiser e iludem quem está do lado da plateia. Sim, artista. Também os técnicos são artistas na arte de brincar com a verdade a mentir.

Antigamente eram marinheiros a manobrar telas e cordas. A destreza do mar sempre ajudou em terra firme. E com os pés em terra, os atores vão rompendo em explosões dramáticas por entre panos e luzes e cenários amovíveis ao mínimo assobio.

Já não há mais escadas a subir. A arte divina não está na mão dos comuns mortais. Agora desce-se. Desce-se à memória do incêndio que devastou partes do edifício a 11 de abril de 1908. Uma vela que ardeu mais do que o tempo desejaria, deixou quase intacto o grande fresco no teto – a remeter para 2500 anos a.C. – bem acima da “caixa do público”, em frente ao palco.

Depois, deixaram-se as velas que iluminavam os espetáculos e as salas, passou-se pelo azeite e pelo gás. Hoje é a eletricidade que, de tão cara, se nota ausente durante as peças. E assim se descobriu que a escuridão também ilumina os palcos.

O Teatro Nacional São João é um dos teatros da cidade do Porto, mas é único pela História de que se reveste e pelo bilhete de identidade que o define: a boca de cena. Esta limitação entre o palco e o público é revestida de ouro, madeira e figuras que conduzem os olhares ao teto onde, nos dois vértices, se pode ler “poesia” e “música”.

Na música, há sete notas musicais para mentir. Na poesia, há combinações de letras e palavras. No teatro, há o sentimento que derrama do palco e submerge toda uma plateia.

No final, há aplausos e rosas que caem aos pés do artista; fecham-se as cortinas até ao próximo espetáculo.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro