“Estou sempre a brincar que é para não chorar”. É assim que João Soares encara a vida agora que a possibilidade de trocar de rotina se torna cada vez mais próxima da realidade. João Soares é alfarrabista e tem 72 anos. Vive no Porto mas passa os dias na loja número 40 da Rua das Flores. Pelo menos é onde se sente em casa. A livraria abre perto das onze de segunda a domingo. “Estou sempre aqui”, confessa João Soares com um sorriso rasgado no rosto.

A livraria já existe há 21 anos, mas a sua paixão pelos livros não tem data de fundação. “Eu abri a livraria porque já não tinha onde pôr os livros”. João Soares comprou o primeiro livro em outubro de 1955 e, até hoje, já conta com quatro mil obras.

É de volta dos livros que se sente em casa, mas a aventura como alfarrabista pode ter os dias contados. “Estou aqui como um condenado à morte” desabafa.

O pesadelo começou no final do ano passado quando foi notificado de que os proprietários queriam vender o prédio em que está instalado há mais de vinte anos. “Queriam que eu saísse a 31 de dezembro e eu não tinha essa possibilidade, porque os livros são muito mimalhos, não é arrumar tijolo”.

“Não sei pescar, não sei jogar às cartas e percebo muito pouco de futebol”

O despejo foi adiado para 31 de janeiro mas, até ao momento, ainda não se realizou. O novo regime de arrendamento urbano fez com que João Soares passasse a pagar dez vezes mais pelo mesmo espaço. A renda de 85 euros passou para 850. “Eu sei que estou condenado, se não for hoje é no máximo daqui a oito anos”.

A livraria mantém-se aberta, mas não se sabe por quanto tempo. O alfarrabista de 72 anos vai tentar manter o negócio, mas uma renda de 850 euros torna a tarefa mais complicada: “Se não der para assumir, vamos buscar à reforma. Se com a reforma não der vamos para outro abrigo”.

Segundo João Soares, aquela que foi a sua companhia de segunda a domingo vai ser substituída por “um comércio de comes e bebes, souvenirs ou de aluguer de quartos”. Mais do mesmo. “Este negócio não é investimento para ninguém e as pessoas, hoje em dia, estão deslumbradas pelo dinheiro”, afirma João Soares com visível tristeza.

“Quando eu sair daqui vou deixar ficar uma grande parte de mim”. Para o ex-bancário, o espaço é muito mais do que uma loja: “Isto tem muita história” e promete: “Eu vou teimar, por uma boa causa vale a pena ser teimoso”.

“Se eu arrumar com isto, eu vou fazer o quê?” Questiona-se. “Não sei pescar, não sei jogar às cartas e percebo muito pouco de futebol. Eu sou um tipo meio esquisito, é que nem de futebol eu percebo”, responde em tom de brincadeira.

Foto: Maria Branca Ramos

No interior da loja o alfarrabista tem livros em promoção para ver se facilita a venda: “Vamos ver se me consigo escapar. Se não der 50%, passa a 60 ou 70%”. O que é certo é que os residentes compram pouco, mas ainda assim são os que compram mais.

Os turistas levam sobretudo postais e gravuras, porque são mais leves e ocupam pouco espaço: “Um livro é capaz de pesar tanto como uma garrafa de vinho do Porto e as pessoas optam por levar uma garrafa de vinho e deixam ficar o livro”.

Clientes são poucos, mas “frequentadores”, como lhes chama João Soares, não faltam. “Entra muita gente, mas não vêm todos comprar”. O ex-bancário acrescenta ainda que muitos se dedicam a apreciar os livros. Na livraria de João Soares não precisam de comprar livros: “podem até levar um livro emprestado para ler, não tem mal”, avança.

“O empréstimo é uma instituição que eu adoro, porque já tenho vendido livros à custa de empréstimos”, diz João Soares com um riso estampado no rosto. Na loja número 40 da Rua das Flores aparecem pessoas à procura de livros para completar uma coleção ou para encontrar outros relacionados com a sua juventude.

“Com 20 e tal anos era um bom fumador, dividia o dia em três partes: a manhã, a tarde e a noite e em cada uma delas eu fumava um maço de cigarros”.

João Soares tem dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que ajudam o pai no negócio. A filha passa todos os dias pela loja e o filho é “da área das matemáticas e das engenharias”, mas tem interesse por antiguidades. “Pode ser que deem continuidade. Se não derem ponto final, venha outro senhor”.

Antes de ser alfarrabista foi bancário. O banco onde trabalhava estava “a aliviar alguma carga de pessoal” e João Soares aproveitou a deixa para sair do banco e se dedicar aos livros.

O ex-bancário chegou a frequentar feiras de livros: “Carregava o carro à sexta à noite e descarregava-o ao domingo à noite”. “De repente dei comigo a passar os fins de semana ocupados”, admite.

“Com 20 e tal anos eu era um bom fumador, dividia o dia em três partes: a manhã, a tarde e a noite e em cada uma delas eu fumava um maço de cigarros. Mas havia duas circunstâncias em que eu não fumava, a primeira quando estava a dormir e a segunda era quando estava a ler” avança João Soares ao JPN.

O livreiro tem quatro mil livros. Não os leu todos, mas sabe o conteúdo de cada um deles: “Passei-lhes os olhos e sei onde os vou colocar, mas se o livro for mesmo muito interessante sou capaz de lê-lo”.

João Soares é alfarrabista e com orgulho: “Para mim é uma alegria estar aqui, porque estou a fazer aquilo de que gosto”.

Desde os seis anos que os sapatos do alfarrabista já percorriam a calçada da invicta e assim continuará até ao dia em que não tenha mais motivos para gastar sola.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro