“Hoje vamos fazer barulho, vamos incomodar”, prometeram. E foi uma promessa de artistas e de todos os que consideram que a cultura é um bem que merece pelo menos 1% já no próximo Orçamento de Estado.

A Praça Carlos Alberto, no Porto, foi voz, corpo e personificação da “união” e “organização” do setor artístico. Mas a cidade do Porto foi apenas um dos pólos de manifestação por todo o país. Também Lisboa, Coimbra, Beja, Funchal e Ponta Delgada se uniram às 18h00 de ontem para que as palavras dos que criam chegassem longe, para lá das salas de espetáculos.

“1%, já neste Orçamento” foi o grande imperativo gritado em uníssono. Outro dos grandes objetivos do manifesto era a reposição da dotação orçamental do Programa de Apoio Sustentado às Artes para os valores de 2009. Mas o “viva à cultura” também foi ouvido e sentido, numa atmosfera de apelos cúmplices e insatisfação coletiva.

Uma a uma, as companhias discursaram e apontaram duras críticas aos sucessivos governos: “Os resultados conhecidos dos concursos para apoio às artes revelaram mais um longo episódio de descalabro da política cultural das últimas décadas e colocam em causa o desenvolvimento sustentado do país e da própria democracia”.

Os cartazes erguidos foram também unânimes e perentórios: “O apoio às artes é uma responsabilidade do Estado”. A luta dos últimos dias, prometeram também, vai continuar. “É preciso protestar, reivindicar, gritar, espernear. É preciso incomodar” foram as palavras de ordem.

E protestaram, reivindicaram, gritaram. Houve até espaço para a música e para a encenação. A Banda Sinfónica Portuguesa tocou “A Portuguesa” e “Grândola, Vila Morena”, lembrando que a luta pela cultura é de todos, é uma “luta nacional”. Mas também não se inibiu de se afinar com as palavras que vinham da multidão: “1%, já neste Orçamento!”.

Para a companhia CENA, “a Troika transformou a cultura numa nota de rodapé governamental” e houve “cortes esmagadores de financiamento entre 2011 e 2017”. Outro dos problemas apontados é a “extinção do Ministro da Cultura, que foi reduzido a Secretário de Estado”.

E o representante da companhia refletiu: “Foram tantas as esperanças colocadas nas eleições de 2015, já que o partido que formou Governo assumiu a cultura enquanto prioridade, durante a campanha eleitoral e no próprio programa governativo…”.

Miguel Loureiro, ator e encenador, explicou, ao JPN, que foi até à manifestação “em solidariedade com o meu trabalho, com o dos meus colegas e do setor”. Para o manifestante, “os concursos têm de ser simplificados. Nós não somos burocratas, somos artista, não somos uma folha de excel”.

“São tão complexos que acabam por ser uma forma de apenas dificultar o processo para todos nós”, concluiu o encenador.

Quanto às críticas que muitas vezes são feitas às atividades culturais, de que são subsidiodependentes, Miguel Loureiro respondeu: “Isso é um cliché que foi sendo perpetuado, até considero um insulto. A cultura é uma atividade que tem de ser apoiada pelo Estado. A ópera, por exemplo, se não for sustentada, é um espetáculo caríssimo”.

A perspetiva de Mariana Cevila, estudante de teatro, é semelhante. “Nós não somos dependentes de subsídios para criar. Nós podemos criar a partir do lixo. Mas nós precisamos de subsídios para levar a arte à sociedade”, argumentou.

“Um país sem cultura não funciona. Acima de tudo, um povo precisa de cultura para pensar e poder questionar o que está a acontecer”, lembrou Mariana Cevila.

Para a estudante, os mais recentes aumentos de financiamento do Governo a 43 entidades “são uma boa forma de calar. Daqui a três, cinco anos, volta a acontecer o mesmo. Não nos vamos calar, porque pensamos no futuro”.

A instabilidade do setor artístico é uma das grandes preocupações de Mariana Cevila. A atriz em formação acrescentou que o futuro dos artistas está comprometido: “Nós estudamos teatro e, às vezes, temos de escolher se comemos ou se nos alimentamos de arte”.

Quanto aos objetivos reivindicados durante a manifestação, a estudante de teatro acredita serem exequíveis: “Se nós investimos milhões em estádios, quando também estávamos em crise, então parece-me que é o exequível e o que é justo”.

Já Mário Moutinho, do Bloco de Esquerda, salientou, ao JPN, a importância da luta “nacional e tranversal a todos os setores culturais”.  Para o também ator e encenador, a atitude do Governo “é um desnorte total, uma ausência de conhecimento da realidade”.

Para Mário Moutinho, “a cultura é tão importante como a saúde e a educação, é um direito fundamental previsto na Constituição”.

“Não há subsidiodependências, há apoios do Estado a estrututas cujos problemas o Estado não consegue resolver diretamente, em áreas em que o Estado não consegue intervir”, defendeu o manifestante.

“O que está a acontecer não é um insulto aos artistas, é um insulto ao povo português. Estamos a falar de uma verba residual de 0,2%”, frisou o bloquista.

Ilda Figueiredo, da CDU, é consentânea nas preocupações relativas à “democratização no acesso à cultura por parte de todas as pessoas”.

“A maioria da população portuguesa, infelizmente, não tem condições económicas para pagar a Cultura. Então, é fundamental que o Estado invista na Cultura para que todos tenham acesso a ela. A democracia implica que haja acesso à Cultura pela generalidade da população”, sublinhou.

Entre gritos e apelos, cartazes e laços verdes ao peito, ainda se ouviu “Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”, versos acusatórios de uma das canções de Zeca Afonso, um dos maiores símbolos da democracia.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro