Se eu largar, eu sinto a sua falta
Se eu agarro, ela perde a cor
Ela não é dos meus dedos…
Três passos do palco e a canção já é outra. Voa como uma “borboleta” e “sublima-se” em conversas ruidosas dos amigos de sempre, em risos cúmplices e abraços, visíveis e invisíveis, que se repetem ano após ano. Estão ali, perante a orelha projetada de Manel Cruz, grande e colorida, que se atreve como uma nota (musical) mental para irem sempre prestando atenção, para viverem o tutano da vida com os cinco sentidos.
E há outros recados, decibéis abaixo, algumas vezes já captados pelo canal auditivo, recebidos pela membrana timpânica e amplificados no ouvido médio. Fala-se de Luís Lima, o protagonista de quem poucas vezes se dá pela ausência, de quem se perdeu o rasto físico, como a uma “borboleta” que nunca perdeu as cores. De orelha a orelha era também o tamanho do seu sorriso.
A morte de Luís Lima, em 2012, iniciou o efeito “borboleta” de amor e levou os amigos e os pais a dar asas às imaginação para criar a homenagem que é o Party Sleep Repeat. Depois de cinco anos a enfrentar o cancro, o extenso grupo de amigos de Luís achou que as cerimónias fúnebres eram redutoras e que não faziam justiça ao espírito “alegre e expansivo” do jovem de São João da Madeira. Afinal, um funeral é uma despedida e o Party Sleep Repeat é um reencontro.
No último sábado, o festival comemorou a sexta edição e deu palco a artistas como Solar Corona, Stone Dead, Throes + The Shine, Zulu Zulu, El Señor, Go’el, Cosmonauta17, Adão, Le Cirque du Freak e, claro, Manel Cruz, que deu a conhecer algumas das músicas novas do álbum a lançar em maio. O local escolhido foi a Oliva Creative Factory, mas, para o pai de Luís Lima, Luís Quintino, a homenagem vive sempre no “lugar eterno” que é o amor.
O Party Sleep Repeat deixa-se guiar todos os anos pelas motivações solidárias de Luís Lima, que se dedicou a causas sociais nos últimos tempos da sua vida. Nesse sentido, as receitas da bilheteira revertem a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro e da Associação de Jovens Ecos Urbanos.
Gonçalo Antunes, de 29 anos, é um dos muitos amigos de Luís e ocupa-se da comunicação do evento. Está envolvido no projeto desde o início, altura em que o Party Sleep Repeat teve contornos bastante diferentes.
“Pensámos ‘Vamos lá convidar amigos que tenham bandas que gostavam muito do Luís para participarem num momento único’. A primeira edição foi muito diferente do que é o Party Sleep Repeat hoje. Foi uma coisa muito privada e pessoal. Teve dois momentos diferentes. O momento da tarde era fechado, era para familiares e amigos. Foi um momento muito intenso, porque teve várias intervenções de amigos, desde dança e vídeos a cartazes, passando pelo design. Nós quisemos envolver toda a gente que gostava do Luís, cada um com a sua maneira de se expressar. E o momento da noite era aberto. Culminou no concerto da Capicua, dos Sensible Soccers e dos The Black Chakra, que eram todas bandas amigas do Luís”, recordou Gonçalo Antunes.
Hoje em dia, os amigos de Luís Lima estão espalhados pelos quatro cantos do país, não são remunerados financeiramente pelo empenho no Party Sleep Repeat e trabalham nas mais diversas áreas, mas continuam a acreditar que o esforço conjunto de organizar o festival todos os anos valerá sempre a pena.
O músico Emanuel Botelho, que atuou com o projeto Cosmonauta17 refletiu sobre a mais importante marca do evento, a amizade: “Este grupo de amigos mantém uma união muito forte. São amigos há muito tempo e mantêm essa relação de proximidade muito bonita e muito pura, quase de irmãos. Quando perdemos a presença material do Luís, acabou por se reforçar muito, porque havia uma marca muito intensa de experiência humana que era preciso manter e eles fizeram um esforço muito bonito para a preservar”.
Honrar o espírito de Luís Lima é, para Tiago Valente dos Santos, um compromisso para com um amigo, para consigo mesmo e com o público: “Eu nem sei porque faço isto, mas eu sei que tenho de fazer isto”.
“O espírito do Luís acontece aqui”, é Emanuel Botelho que reflete, mas há um uníssono geral quanto à personalidade única de Luís Lima. “Sempre que falamos dele é com um sorriso na cara. É celebrar o Luís, porque não temos uma única fotografia dele em que ele não estivesse a sorrir. A regra era o sorriso”, acrescentou Sérgio Costa, de 33 anos, relembrando o amigo.
Nas fotografias do Party Sleep Repeat também se repetem sorrisos, beijos e abraços, um legado que foi inspirado pelo exemplo de Luís. “O Luís era uma espécie de chamariz. A forma de ele estar na vida convidava todas as pessoas a gostar dele. A cada ano fico mais convencido de que o espírito do Luís está presente no festival e que se vai fortalecendo”, salientou Pedro Batista, de 29 anos, presidente do Conselho Fiscal da Associação Cultural Luís Lima e amigo do homenageado.
O Party Sleep Repeat nasceu do momento da morte do jovem de São João da Madeira, mas ganhou vida própria. Na sexta edição, centenas de pessoas se mobilizaram para prestar uma homenagem “à música, à vida, ao amor e à amizade”, porque reconhecem um ambiente muito próprio no recinto, porque se sentem em casa.
“É difícil sentir-me tão feliz como quando estou aqui no festival a ver toda a gente a divertir-se. O Party Sleep Repeat é a parte do ano em que eu me sinto mais próximo do Luís”, reforçou Pedro Batista. A opinião é partilhada por Pedro Amorim, um dos membros fundadores da Associação Cultural Luís Lima. “No dia seguinte, as pessoas acordam a pensar no Party Sleep Repeat com amor no coração e esse é o nosso maior presente para elas. É um legado”, explicou.
Para Miguel Lestre, vocalista da banda Prana, homenagear o Luís faz mais sentido em formato musical: “A música é o que resta dele”. “Ele mostrava-me uma música e dizia ‘ouve isto’. Aquilo soava-me a algo que nunca tinha ouvido e, passados três meses, essa banda começava a ter sucesso, explodia. Ele tinha um dom especial para perceber isso antes de acontecer”, continuou.
No entanto, Luís Lima não poderia adivinhar, antes de bater asas, a revolução de amor que iniciaria. “O Luís era como um sol. Ele era uma pessoa muito sedutora e ele movia muita gente sem querer. O Luís liderava sem liderar”, atirou Tiago Valente dos Santos.
E Luís continua a liderar e a inspirar, à distância, um grupo de amigos que se ama como “família”, uma família cada vez mais extensa que ultrapassa hiatos geográficos e qualquer tipo de barreiras. A música é veículo, é linguagem universal e a história que se conta ganha capítulos felizes, ano após ano.
Luís Quintino, pai do jovem de São João da Madeira, vê nos amigos do filho um prolongamento de Luís Lima e assume-se comovido pela extensão do amor que têm por ele.
A sublimação da dor é transformá-la “em algo de bonito, de útil, num movimento de aproximação em relação aos outros”, explicou Luís Quintino, que, para além de estar envolvido na organização do Party Sleep Repeat, também já escreveu dois livros depois da morte do filho.
As lágrimas choradas no Party Sleep Repeat são uma celebração da memória e, na perspetiva de Luís Quintino, as memórias fazem parte do caminho para o futuro. O movimento Party Sleep Repeat nasce do Luís e o efeito borboleta que ele iniciou ainda terá “muitas manifestações”, muitos voos.
Vê que o sol ainda brilha
Ainda tem por onde arder
Não é mau, não é bom
São razões para viver
Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro