Na manhã em que escrevemos, o escritor norte-americano Philip Roth já não está entre nós. Morreu em Nova Iorque, na segunda-feira, vítima de insuficiência cardíaca, aos 85 anos.
Murray Ringold, personagem de “Casei com um Comunista”, poderia falar-nos sobre isso. No mesmo tom, com a mesma leveza com que comentou o seu despedimento do cargo de professor de Literatura, na época do macarthismo, que o obrigou a abraçar uma nova profissão, a de vendedor de aspiradores: “quando a manhã chega, uma pessoa levanta-se e faz o que tem a fazer”.
Roubamos a Murray o seu pragmatismo para um primeiro olhar ao que resiste. Ele também nos ensinou que a resistência se faz de pensamento crítico. “Na sociedade humana – dizia-nos Mr. Ringold – pensar é a maior de todas as transgressões”.
Aqui o exercício passa por saber o que fica depois do desaparecimento de um homem. Um homem que assinou mais de vinte romances ao longo de uma carreira que iniciou em finais dos anos 50 e que se prolongou até 2010, quando decidiu que era tempo de parar de escrever.
Questionamos dois jornalistas e um escritor sobre as obras de Philip Roth que mais os marcaram. Eis as respostas.
A experiência judaica
Richard Zimler, escritor norte-americano a residir em Portugal há quase três décadas, confesso admirador de Roth, escolhe “Casei com um Comunista” (1998), “O Teatro de Sabbath” (1995) e “A Pastoral Americana” (1997) como obras mais marcantes.
“Penso que em cada um destes livros, Roth consegue explorar a história americana através da vida do seu protagonista”, escreve o autor de “O Último Cabalista de Lisboa” ao JPN.
“O primeiro é o meu preferido porque fala de um período que me interessa muito: os anos 50 e as perseguições do Senador McCarthy. Explora os efeitos dessas perseguições sobre a comunidade judaica”, acrescenta o autor.
A experiência judaica no seio da sociedade americana é dos temas fundamentais da obra de Roth, nascido em Newark, Nova Jérsia, em 1933, filho de judeus americanos de primeira geração.
Em resumo, diz Zimler, é “uma história fascinante e muitíssimo bem contada” de um autor cuja “maneira de escrever está muito ligada à cultura americana”.
O humor e a sexualidade
Tiago Dias, jornalista da Agência Lusa, destaca outras características basilares da obra de Roth. O humor e a ousadia.
“Uma pessoa chega a certo ponto na vida em que pode sorrir e rir-se muito, mas dá poucas gargalhadas. Poucas coisas são autênticas e a gargalhada é um bom teste do que é a sério. O primeiro livro que li de Philip Roth foi o que mais me fez rir da sua autoria: ’Teatro de Sabbath’”, conta-nos.
O livro, que data de 1995 [está editado em Portugal pela Dom Quixote, como aliás grande parte da obra do autor] mostra, na opinião de Tiago Dias, “um Philip Roth já multipremiado e no pleno comando daquilo que procura”.
“Dotado de um sentido de humor enorme, mas seletivo, Roth possuía uma disciplina de trabalho como poucos pares”, nota ainda. “Tinha pouca paciência para sensibilidades – que não as suas”, observa o sub-editor de cultura da agência portuguesa de notícias.
E depois, a ousadia.
“’Arrojado’ talvez fosse outro adjetivo adequado a quem redige uma personagem que se masturba para cima da campa de uma amante já morta enquanto sussurra ‘mamas, mamas, mamas, mamas’. Talvez.”, atira.
“Era, na minha opinião, o maior escritor norte-americano vivo, em conjunto com Cormac McCarthy, por muito diferentes que sejam os dois. Ficará, em conjunto com John Updike e Saul Bellow, para sempre na literatura do século XX daquele país e do mundo, com ou sem Nobel”, conclui Tiago Dias.
A América
Das escolhas de Miguel Conde Coutinho consta outro título que fez do arrojo a essência. A primeira obra polémica do autor, um exercício de exploração da sexualidade masculina, que foi o quarto livro de Roth: “O Complexo de Portnoy” (1969), livro cuja importação chegou a ser proibida na Austrália.
A este, o jornalista junta “O Animal Moribundo” (2001) e “A Conspiração contra a América” (2004) no conjunto de obras favoritas.
“São apenas três exemplos de uma obra imperdível”, refere o editor de Cultura do “Jornal de Notícias” ao JPN. Do autor faz a seguinte síntese: “é libertação e obsessão, nem verdade nem imaginação, antes sobreposição do real ao que podia ter sido. Ou ao que pode acontecer. E ao que acontece. Sobretudo na América de perigos e medos, o país dos sonhos desfeitos, de pessoas normais e as vidas que as prendem à vontade de querer ser mais do que podem.”
O Nobel que não chegou e o que ainda há-de vir
Se o facto não ter sido Prémio Nobel concederá vida mais curta à sua obra, é coisa que em boa verdade ninguém pode dizer. Ou pode, mas não sem uma dose de arbitrariedade de juízo. A verdade é que o eterno candidato ao galardão da academia sueca recebeu muitos prémios, dentro e fora dos Estados Unidos.
Ganhou por duas vezes o National Book Award, o Man Booker International Prize, o PEN/Faulkner Award por três vezes, o Prémio Príncipe das Astúrias e também um Prémio Pulitzer com “A Pastoral Americana”, outra das suas obras mais emblemáticas.
Algumas das suas obras foram também adaptadas a filmes. E para os fãs há um trabalho a causar grande expectativa. “A Conspiração contra a América” (2004), tão badalada na América pós-Trump, vai ser adaptada numa mini-série de seis episódios pela mão do escritor e produtor norte-americano David Simon, responsável por séries de culto como “The Wire” e “Treme” ou, mais recentemente, “The Deuce”.
Na última entrevista que concedeu nos EUA, em janeiro, ao “The New York Times”, Roth disse sobre a atualidade política norte-americana: “quão naif eu era em 1960 para pensar que era um americano a viver tempos absurdos!”
Para Roth, comparado com Charles Lindbergh – que é retratado em “A Conspiração contra a América” como um herói da aviação com simpatias nazis que chega à presidência dos EUA – o atual presidente dos EUA não passa de “uma fraude massiva, a soma maligna das suas deficiências, desprovida de tudo menos da ideologia vazia de um megalómano”.
Philip Roth deixou de escrever em 2010, depois de lançado o seu último livro, “Nemesis”. “Foi quando tive a forte suspeição de que tinha feito o melhor do meu trabalho e que qualquer coisa mais seria inferior”, confessou na mesma entrevista.
Entretanto, dedicou o seu tempo à leitura – sobretudo de História – e à supervisão de alguns trabalhos, como a sua biografia autorizada que está a cargo de Blake Bailey e que ia, à altura da entrevista, nas 1.900 páginas de anotações. O livro final deverá ter cerca de metade.
“Ler um romance em mais de duas semanas não é ler realmente o romance.”
Ateu convicto, escritor realista, narrador brilhante, explorador nato na busca incessante pelo conhecimento e compreensão – de si, da América e dos judeus de classe média que nela habitam -, Roth não ficou imune a críticas ferozes, sobretudo de alguns judeus e mulheres que consideravam ser objetificadas na sua obra, mas também de críticos literários. “Era acusado de escrever quase sempre o mesmo livro baseado em questões de identidade, onde as questões sexuais e políticas eram muito marcantes”, explicou Pedro Mexia à TSF a propósito da notícia da morte do autor.
Richard Zimler, por seu turno, e à mesma rádio, vaticinava que Roth será lido “durante décadas”, mas o próprio tenderia a desconfiar.
Numa entrevista que concedeu em 2009 ao “Daily Beast“, Philip Roth estimava que em 25 anos a leitura de romances se tornará uma atividade “de culto”: “Eu acho que as pessoas continuarão a lê-los mas será um grupo pequeno de pessoas. Talvez mais pessoas do que aquelas que hoje leem poesia Latina, mas qualquer coisa por aí… Ler um romance requer uma certa dose de concentração, foco, devoção à leitura. Ler um romance em mais de duas semanas não é ler realmente o romance. Por isso acho que esse tipo de concentração e foco e atenção é difícil de conseguir”.