As flores, à entrada de cada porta, dão as boas-vindas a todos os que entram no Bairro Herculano. Mas são poucos. Este refúgio, no centro da cidade, passa despercebido mesmo a quem passa diariamente pela Rua de Alexandre Herculano ou pela Rua das Fontainhas. O JPN foi conhecer um dos bairros típicos da cidade do Porto.

O Bairro Herculano tem casas de todas as cores, estendais improvisados e tanques para lavar a roupa. As crianças andam de patins em ruas estreitas onde não passam carros e é a jogar às escondidas que percorrem o bairro de uma ponta à outra, sem se cansar. Os gatos partilham da brincadeira e espreitam curiosos, ora por baixo dos tanques, ora dentro dos fogareiros.

Ao passar, ouvem-se conversas por trás das paredes. Mas as portas não estão abertas. Nem precisam de estar. O Bairro Herculano é como uma família em ponto grande. Quem lá vive sabe sempre a que porta bater.

Este bairro escondido atrás da Rua de Alexandre Herculano foi construído no século XIX, mais precisamente em 1886, numa altura em que o Porto se industrializava a passos largos. Com a cidade a crescer, foram muitas as pessoas do Douro, Beira-Alta e Trás-os-Montes que vieram para a cidade trabalhar na indústria. É neste período que se constroem ilhas e bairros operários para albergar todos aqueles que chegavam à cidade. O Bairro Herculano foi um deles, mas era diferente.

Bairro Herculano

O Bairro Herculano é um dos maiores e mais coloridos bairros da cidade do Porto. Foto: Alexandra Denise Pinto

Foram edificadas 129 casas, com um ou dois pisos, organizadas numa estrutura quadriculada, com uma via central que funcionava como rua principal. Mas desenganem-se aqueles que pensam que o Bairro Herculano é uma ilha. Aliás, não lhe chamem “ilha” com moradores por perto.

O bairro foi construído a partir de uma lógica de desenho e de pensamento urbano. Já as ilhas eram criadas de forma orgânica e informal, sem uma organização rigorosa. “Iam-se fazendo”, explica Jorge Ricardo Pinto, coordenador da licenciatura e mestrado em Turismo no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET).

Coisa estranha para as ilhas oitocentistas era também o facto de o bairro ter, como sempre teve, água corrente, uma capela, um jardim, lavadouros e uma mercearia. Para o investigador do ISCET, “era uma espécie de ‘condomínio fechado'”.

Outros bairros foram construídos na mesma época e com o mesmo propósito, mas não com a mesma morfologia urbana. Alguns exemplos são o Bairro do Vilar, o Bairro da Fábrica do Jacinto e o Bairro da Fábrica de Salgueiros, já demolidos. O Bairro Herculano é o único que verdadeiramente sobrevive e não seria o mesmo sem aqueles que mantêm viva a sua história.


O Bairro Herculano tem sete ruas e 129 casas.

As caras por trás de um bairro com 132 anos de história

Maria Laurinda Soares mudou-se para o Bairro Herculano aos 19 anos quando se casou. Desde então, já se passaram 56 e a moradora confessa que não troca a “casa verde” no centro da cidade “nem por um apartamento na Foz”.

Há 20 anos, quando comprou a habitação, decidiu fazer algumas obras e torná-la num “condomíniozinho fechado”. E para Maria Laurinda, “não há casa como esta”. É perto de hospitais, farmácias e os comboios estão “pertíssimo”. “Ali fora, a dois passos, é a Batalha”, refere.

Se ainda hoje as flores são uma imagem de marca, na década de 60 o bairro era ainda mais cuidado e florido. Ainda que muito pobre, a moradora recorda como nunca a aparência das sete ruas era esquecida.

Hoje, há traços dessa época que ainda se mantêm. Os lavadouros, agora utilizados por poucos, fazem lembrar o tempo em que o bairro era mais modesto. E a roupa estendida ao longo das ruas continua a fazer parte do cenário daquele que nos remete para um filme a preto e branco: a “Aldeia da Roupa Branca”.

Aos olhos de quem o vê atualmente, o Bairro Herculano não é mais um lugar desfavorecido. Antes as casas eram antigas, com telhados a ruir, mas, ao longo dos anos, senhorios e moradores têm recuperado as habitações, de forma a melhorar as suas condições.

Hermínio Nobre foi um dos responsáveis por esta mudança, que tornou o bairro mais alegre e movimentado. O morador, natural de Viseu, vive ali há 24 anos e é proprietário de várias casas que colocou ao serviço do alojamento local.

Nos meses mais quentes, os turistas chegam mesmo a confundir-se com os moradores com quem partilham a calçada. As ruas do Bairro Herculano nunca estão vazias. Afinal, não é todos os dias que se pode apreciar o sossego num local tão frenético como a Invicta.

Mas não é só de turistas que vive o Bairro Herculano. Um convite à janela é muitas vezes o mote para conversas ao ar livre que podem durar tardes inteiras. Sair para tomar café ou conversar com os vizinhos não é um privilégio para todos. Alguns deslocam-se todas as manhãs para trabalhar e só chegam ao final do dia. Ainda assim, a receção é tão calorosa que é como se nunca tivessem ido embora.

Olga Silva nasceu no Bairro Herculano e nunca quis ir para outro lugar. A moradora recorda com saudade o tempo em que o convívio se fazia de portas abertas e em que o sossego se misturava com as gargalhadas das crianças. Eram “pobres, mas felizes”, declara.

A fachada de uma igreja, os lavadouros e os tanques, porta sim porta não, ajudam a decifrar como era o bairro há 132 anos. Olga Silva, que o conhece há 56, assegura que ambas as entradas tinham portões, que havia um fontanário e que os bailes aconteciam à volta da “Árvore”, como era conhecida a praça principal, na entrada da Rua de Alexandre Herculano.

Não foi há muitos anos que existiam até duas mercearias no bairro, onde os moradores podiam recorrer sempre que algum alimento estava em falta. Agora, restam-lhes os supermercados mais próximos.

A infância de Olga Silva ficou marcada pelas brincadeiras à luz das velas. A iluminação pública chegou ao Bairro Herculano há cerca de 40 anos e não há morador que não se lembre dos festejos. Os habitantes juntaram-se e não perderam a oportunidade de jantar ao ar livre, pela primeira vez com luz. Segundo Olga Silva, “foram mesas até lá abaixo”, com comes e bebes. “O Bairro Herculano ter luz foi uma coisa bonita”, lembra.

Sem carros a passar e agora com iluminação pública, o Bairro Herculano parece reunir todas as condições de segurança. Os mais novos não poderiam estar mais de acordo. Já os mais velhos lembram os tempos em que o bairro era mais resguardado.

Há alguns anos, as ruas estreitas na escuridão não assustavam Maria Laurinda, que conhecia os quatro cantos do bairro. Hoje é com alguma tristeza que vê o ambiente do bairro que conheceu há meio século a mudar.

Ao contrário de Maria Laurinda, Hermínio Nobre acredita que o bairro continua a ser um lugar seguro para as crianças brincarem. Algo que, hoje em dia, é difícil encontrar noutros locais da cidade.

Nas ruas movimentadas da Invicta, os pais agarram os filhos pela mão e temem os carros e a multidão. Mas entre as duas entradas do bairro, as crianças são livres. Tudo graças à vizinhança que nunca as perde de vista.

A oportunidade de obter um bom rendimento levou Hermínio Nobre a apostar no alojamento local e é ele o proprietário da primeira casa que serviu esse efeito. Desde então, “largas dezenas” de turistas usufruíram desta experiência.

A localização no centro da cidade é um dos principais fatores que leva os turistas a optarem pelo bairro. É, como afirma, “o local que tem tudo o que o turista procura”. Está no centro de tudo. Tão perto que nada é desculpa para não andar a pé.
Hermínio Nobre pode cobrar entre 50 a 70 euros por noite na época alta e cerca de 30 euros na época baixa. Um rendimento que considera ser muito superior ao de um arrendamento mensal e onde o papel do turista é crucial.

Maria Laurinda, moradora com 75 anos, acredita que os turistas são essenciais no dia a dia deste local. As excursões “dão vida” ao Bairro Herculano e os guias são já caras conhecidas de todos. Aliás, não há guia que não conheça a “casa verde”.

Para alguns, o turismo anima as ruas do bairro. Outros, não conseguem ficar indiferentes à sua presença. É o caso de Olga Silva. Sabe que o Porto está na moda, mas lamenta que o bairro perca os moradores mais antigos.

Nem tudo é mau. A moradora reconhece que o turismo trouxe algumas vantagens. Se antes passava despercebido, agora o Bairro Herculano até “já vem no mapa”.

E por isso mesmo, nunca foi tão “solicitado por turistas” como agora: “entram uns, saem outros, entram uns, saem outros”, comenta.

Apesar de todas as mudanças, Olga Silva admite que não trocava o Bairro Herculano por nada. Foi na casa onde habita que foi criada com os seus seis irmãos e não esquece os bailes que a família organizava à volta da “Árvore”.

“O melhor São João da cidade é aqui”

De 23 para 24 de junho, as ruas da Invicta enchem-se de miúdos e graúdos de martelo na mão. O cheiro a sardinha assada e os balões de ar quente cobrem o céu da noite mais longa do ano.

Embora os festejos tenham crescido um pouco por toda a cidade, há portuenses que não trocam as Fontainhas por outro local. No Bairro Herculano, ali perto, vive-se o São João mais popular.

Há fogueiras, alhos-porros e manjericos com versos caricatos. As decorações a cada porta convidam a entrar. Mas ninguém está em casa. A festa é nas estreitas ruas do bairro e nem a música nos Aliados ou o fogo de artifício à beira-rio convence os moradores a abandonarem o refúgio atrás da Rua de Alexandre Herculano.

O Bairro Herculano é “o último da sua espécie”

Situado entre a Rua das Fontainhas e a Rua de Alexandre Herculano, o bairro teve como promotores Maria Augusta Pinto Basto Martins e o marido, Manuel Lopes Martins, coproprietário da Nova Companhia de Viação Portuense, uma empresa de transportes.

Os dois proprietários, herdeiros da família Pinto Basto, desejavam aproveitar o terreno que haviam recebido por legado familiar para criar um novo bairro para a classe operária. Contraíram três empréstimos à banca, entre 1880 e 1886, com hipotecas sobre as propriedades, com os quais edificaram 129 casas, lavadouros, uma mercearia, uma capela e um jardim, proporcionando condições de habitabilidade melhores dos que as que eram oferecidas nas ilhas, explica Jorge Ricardo Pinto, autor do livro “O Porto Oriental no Final do Século XIX”.

Como relata o investigador do ISCET, o Bairro Herculano, com um traçado harmonioso, era composto por 13 pequenos quarteirões, ocupados por casas construídas costas com costas, separados por sete ruas. De entre os sete arruamentos, alinhados numa disposição ortogonal, um destacava-se como o principal e ligava as duas entradas, cortando uma praça central, onde se localizavam os equipamentos de apoio.

Bairro Herculano

Nem em dias de chuva, as ruas do Bairro Herculano ficam vazias. Foto: Alexandra Denise Pinto

Segundo Hélder Pacheco, historiador do Porto, a estrutura inovadora do Bairro evocava algumas das primeiras formas de aglomeração para a classe trabalhadora nos subúrbios de grandes cidades britânicas como Bessbrook (1846), na Irlanda, ou Saltaire (1852), na Inglaterra; mas também as francesas, em Mulhouse; as alemãs, como a colónia de trabalhadores da Krupp (1870); ou as americanas, como o plano para a Pullman City, perto de Chicago (1867).

O Bairro Herculano acabou por ser um fracasso imobiliário, conduzindo o seu promotor à ruína, com a Companhia Geral de Crédito Popular Português a executar legalmente as hipotecas, em 1888.

As razões insucesso residem nos salários miseráveis da classe trabalhadora portuense, que não tinha disponibilidade financeira para pagar as rendas que poderiam rentabilizar o negócio. Hélder Pacheco conta que as mensalidades oscilavam entre os 2$000 e os 5$000 réis. Ora, em muitas ilhas das proximidades os alugueres mensais rondavam os $600-$800 réis. Já as classes intermédias, que tinham disponibilidade financeira, também não o ocupavam, porque a burguesia olhava para o bairro como uma ilha, pelo que habitar naquele espaço significava uma perda de estatuto social.

Bairro Herculano

Os gatos fazem também parte da paisagem do Bairro Herculano. Foto: Alexandra Denise Pinto

A posição entre um espaço operário e novos arruamentos burgueses, bem como a qualidade elevada da construção, foram incompatíveis com a mentalidade social do Porto e com a disponibilidade financeira da classe trabalhadora. “Ele no fundo é construído como um bairro para operários, mas muitos não podiam viver nele”, comenta  o historiador Hélder Pacheco.

Ainda assim, o Bairro Herculano perdura no tempo e é considerado por Jorge Ricardo Pinto como especial e “último da sua espécie”, sobrevivendo às mutações sentidas ao longo dos anos na cidade.

Queiramos quer não, o Porto mudou e com ele a sua gente. O barulho, a azáfama e a confusão pintam de cinzento uma cidade agora metropolitana. O dia passa mais rápido e são cada vez menos as conversas e festas entre vizinhos e amigos. Alguns culpam o turismo. Outros, as gerações. O motivo, o tempo. Mas esse não pára.

A Maria Laurinda, Hermínio Nobre, Olga Silva e a tantos outros conforta a certeza de que a identidade do Bairro Herculano prevalecerá como uma das mais autênticas da Invicta.